Resumo: Nenhuma discussão sobre RPGs de horror/terror está completa sem incluir Kult. Nenhum RPG é considerado tão depressivo e capaz de lidar de forma tão terrificante com os traumas dos jogadores. Nenhum se propõe tão bem a lidar com sexo e violência ou sexo-violência como Kult.
"The world of Kult is founded in modern western thought, formed by two thousand years of civilization based on Christian ideas. Good and Evil really do exist, in a cosmic sense. There are angels and demons and an absent god who abandoned his children in the terrors of war. In man, there is a desire to wreck and do evil. But there is also light that can drive away the darkness." - Kult 1st
“David Holmberg. 27 anos. Acusado de 47 assassinatos, a maioria de mulheres jovens. Um homem desesperado. Vive nas noites frias, escondendo-se da polícia, do mundo, e especialmente de si mesmo”.
David Homlberg. 27 anos. Sua ficha é limpa. Um rico industrial sueco herdou tudo de seu pai e aumentou em duas vezes a fortuna. Vive em ostracismo, mas é feliz.
Holmberg não sabe o que lhe aconteceu. Ele era feliz, um jovem engenheiro, capaz e com uma vida segura a sua frente. Ele havia acabado de se casar. Sua esposa e ele haviam planejado ter filhos logo.
Homlberg sabe muito bem o que aconteceu. Sua vida era segura, mas ele se via incapaz de liberar seu próprio lado negro. Nunca quis ter filhos, nem se casar. Seus desejos eram outros.
Ambos nasceram no mesmo dia, e na verdade a poucos quilômetros de distância. Sem saber, ambos compartilhavam de um destino em comum, e este só se pôs a funcionar mais de 26 anos depois."
Background
Kult se passa nos dias de hoje. O mundo parece o mesmo, mas não são
ratos que movem-se por dentro das paredes, ou sob o solo a nossos pés,
ou mesmo no canto de nossos olhos. Demônios infiltraram-se nos governos,
entre os militares. Lictos, nossos antigos carcereiros divinos, fazem o mesmo,
com objetivos não muito diferentes. Ambos desejam manter a humanidade
ignorante, manter os 5 bilhões de deuses que somos todos nós,
presos a ilusão responsável por tolher nossa capacidade de alterar
o cosmo.
A cosmologia de Kult busca na Cabala, em conceitos de filósofos gregos, e no próprio gnosticismo, uma conceituação de sua cosmologia e história de sua statosfera. O mundo de Kult nasceu de um "deus", que por motivos obscuros, aprisionou todos seus irmãos no Elísio, ou seja, a Terra. A humanidade foi então aprisionada em u ciclo terrível. Demiurge mantinha-se em sua cidade infinita, Metropolis, onde antes habitávamos, e sua sombra, Astaroth, governava o Inferno. Trabalhando em uníssono, ambos mantiveram a humanidade ignorante por milênios, em um ciclo de morte, tortura infernal até esquecer sua própria identidade, e reencarnação desprovida do conhecimento de sua imortalidade e vidas passadas, ambos trabalhavam para nossa agonia.
Isso mudou ha apenas muito pouco tempo. No universo de Kult, Deus desapareceu a duzentos anos atrás. Sua cidadela em Metropolis desapareceu, em seu lugar sobrou apenas um terrível abismo. Alarmado, Astaroth levou um exército até o abismo e o adentrou, para surgir então, só, e de acordo com alguns, mudado. A nossa "realidade", a prisão criada por Demiurge começou então a se esfacelar. Astaroth então moveu forças para a Terra, para esperar então pelo eminente apocalipse, quando uma guerra haverá entre a humanidade, o Inferno, e o que restou dos habitantes divinos de Metropolis.
Astaroth não coordena tudo só, nem Demiurge (Deus) o fazia. Os Archon (Arcontes) dominavam a humanidade através de conceitos. Justiça, Vingança, Criatividade, Governo..., todos esses conceitos eram reforçados pelos seres/cidadelas que viviam em Metropolis sob o julgo de Demiurge. Com seu desaparecimento, uma guerra se seguiu, e dos dez, 7 restam e tramam uns com os outros, e para manter a humanidade estúpida. Astaroth criou a imagem subvertida de cada um dos Archon, seus Anjos da Morte, que ao contrário de seus similares em Metropolis, possuem forma física através de humanos que eles possuem. Eles pregam a guerra e morte sem sentido, a fome, a destruição, o pai que mata o filho, a falsa ajuda que traz a morte. Seus Razides, demônios que odeiam e deploram a humanidade, são usados como os Archons usam os Lictors, infiltrando-se e dominando a humanidade através de suas próprias organizações.
Grande parte da humanidade vive em ignorância total. Outros comungam com forças do Inferno ou Metrópolis, e mesmo com os Deuses Esquecidos, divindades mortais mais não humanas, que habitam a Terra ou viajam entre os vários mundos e universos. Outros apenas utilizam os segredos mágicos e agem independendo de qualquer dos dois lados que nos escravizam. Apesar de serem apenas humanos, os Conjuradores podem de forma limitada, agir sobre a realidade. Outros, como santos e messias de nossa História, transcendem, percebem seu papel, e tornam-se divinos. Alguns tentam mesmo ajudar a humanidade, pregar a iluminação. Outros apenas preocupam-se consigo mesmo, e apenas querem aprender mais sobre o universo e a realidade que podem alterar de acordo com sua vontade, estes são os despertos.
É um mundo também de grandes horrores, onde maldições são lançadas e perseguem famílias por gerações, onde demônios divertem-se em possuir e torturar mortais que cruzaram seu caminho, onde anjos choram nos esgotos e metrôs por suas asas partidas.
“‘David?’, diz uma voz segura, mas baixa, em direção ao homem alto agachado no chão. Um grunhido surge do amontoado de roupas que proteje o gigante do frio. ‘David, meu nome é Giuseppe’, apresenta-se o pequeno e sério homem moreno a sua frente. David não coordena bem seus pensamentos. Os últimos meses têm sido confusos. Terríveis. Seus pesadelos tornaram-se reais, ele teme ouvir seu nome, ser reconhecido.
Giusepe é cuidadoso. Dá um passo para trás quando o loiro enorme e mal-cheiroso levanta-se a sua frente. Ele segura discretamente uma arma dentro de um dos bolsos de seu pesado sobretudo. Ele odeia o frio, mas seu senhor não lhe deu muita alternativa nesse caso. 'O rapaz vai nos servir bem', disse seu mestre e dono de sua alma e vontade, 'vamos lhe dar alguma compensação em troca...'. E Giusepe deixou a Argélia imediatamente, chegando o mais cedo possível a Suécia.
David levanta-se menos confuso agora. Olha desconfiado para o homem pequeno. O vento frio o faz encolher-se por um momento. Ele entregou suas roupas, vendeu-as, para ter o que comer e beber no frio. Restou-lhe pouco. Sua barba agora comprida lhe esconde o rosto, mas pouco pode fazer contra o frio e neve que cai. Se esse homem não lhe denunciou, não o atacou ou chamou ninguém, pode haver alguma esperança. O desespero vê saídas em tudo, mesmo na ilusão, como não poderia deixar de ser. E David inicia a conversa que vai lhe levar a seu próprio inferno daqui a quinze anos, e a sua vingança em alguns dias..."
O Jogador
Em Kult joga-se normalmente com humanos, mas existem também regras para se jogar com seres sobrenaturais. O sistema é suficientemente flexível para serem feitas variações diversas entre ambos. Porque no entanto eu faço a afirmação acima? Porque Kult dá o melhor de si quando se trata de mastigar a alma das personagens humanas, e simultaneamente do jogador.
Ele não é um jogo para os fracos de coração. A criação de personagem que incorpora elementos de conceito em sua mecânica implica em criar personagens desde "normais", até pessoas vítimas ou causadoras dos mais diversos crimes e abusos, entre eles canibalismo, estupros e assassinatos, são relativamente comuns.
O sistema é algumas vezes similar a GURPS em termos da baixa dificuldade e ainda assim boa complexidade na criação, e com alguns elementos bem originais. Após conceituar a personagem, definindo lugar que vive, fonte de renda, amigos e inimigos, profissão, etc, se distribui pontos em diversos atributos (inteligência, educação, força, reflexos, beleza, etc). Estes por sua vez, definem atributos secundários, como a quantidade de danos (divididos em número de arranhões, ferimentos leves, sérios e fatais), resistência, velocidade e turnos, etc. Os atributos também definem o limite de pontos alocados uma perícia. Estas por sua vez são variadas, sendo a lista bem vasta e abrangente.
O diferencial de Kult encontra-se nos dois elementos a seguir: Nas "vantagens e desvantagens", e nos "Dark Secrets" (segredos sombrios). Sim, em outros sistemas existem vantagens e desvantagens, mas estes se baseiam no princípio de que se o jogador ganha liberdade de ação e bônus em perícias e atributos, isso é uma vantagem, e o inverso ocorre em relação as desvantagens. Em Kult, as vantagens não apenas são coisas que realmente permitem algum benefício, como coisas que tornam a personagem mais inclinada para o "Bem". Código de Honra por exemplo, assim com Altruísmo, são vantagens em Kult, que não concedem bônus algum, servindo apenas para melhor caracterizar a personagem, e para dar mais pontos no "Mental Balance" ou MB (Balanceamento Mental, na verdade uma forma que define se a personagem é mais inclinada para o bem e iluminação se for positiva, ou para o mal e facilmente controlada por forças infernais, se negativa).
Os Dark Secrets entram em jogo de acordo com o resultado do Mental Balance. Se este for positivo, basta ignorar esse elemento, se for negativo, a personagem deve escolher um entre vários Dark Secrets, que incluem desde "Vítima de Experimentos Médicos", até "Pacto com Forças das Trevas". Particularmente, para reforçar o clima de horror, aconselho dar um Dark Secret a jogadores com MB positivo, e dois para jogadores com MB negativa.
Existem também regras para artes marcias e grupos de perícias específicas se a personagem for um praticante. Poderes e Limitações sobrenaturais se a personagem não for exatamente humana também podem ser aplicadas, e genericamente Kult chama tais personagens de "Criança da Noite".
Além disto, se a personagem tiver a Vantagem "Intuição Mágica", ela pode enxergar auras a olho nu, e tornar-se um Conjurador de um dos cinco Conhecimentos: Morte, Tempo e Espaço, Paixão, Loucura, e Sonhos. Dando acesso as perícias correspondentes a cada Conhecimento e magia individual (sim, cada magia é paga separadamente como uma perícia, tornando elas caras e as valorizando).
“David fora bem instruído por Giusepe. Não acreditava em tudo, mas precisava acreditar. Era melhor que crer na possibilidade torturante de ser ele mesmo o monstro assassino e canibal, procurado pela polícia, e execrado pela mulher com quem iria viver para sempre. Ele seguia o outro David. Era parecido com ele a ponto de serem gêmeos, e ainda assim ninguém associava a este outro os crimes”.
David cometera realmente os crimes, mas Giusepe lhe dera uma forma de livrar-se da culpa. Ele não fora o real criminoso, mais um instrumento de uma mente doentia. De um demônio humano que de alguma forma incapaz de ser compreendida por David, pelo menos no momento, pôde entrar e possuir seu corpo para satisfazer seus desejos de sangue, morte. "
Mestre
de Jogo
Kult é um livro completo. Nada de suplementos super indispensáveis.
Os mistérios encontrados no livro não são acidentes ou
ganchos de "compre! compre!", e sim formas de abrir o universo para
o Mestre de Jogo poder criar sobre ele. A escolha dos suplementos lançados
pela Metropolis reflete isso, já que são em boa parte, aventuras.
Legions of Darkness é uma ótima adição e expande
maravilhosamente o cenário, mas não é necessário.
O livro básico tem tudo que o mestre precisa, e isso é ótimo.
Kult foi feito para se criar em RPG, aventuras/histórias como vistas em Hellraiser e A Hora do Pesadelo. As histórias são viscerais e o mestre deve lembrar-se disto. Não é um "arquivo-x" pesado. É um RPG de horror que lida com temas fortes como sexo e violência sendo uma só coisa, canibalismo, drogas, e muita autocomiseração por parte das personagens. O livro destaca o clima muito bem, e não há muitas lacunas nesse aspecto.
As regras não são complicadas, o mestre pode jogar Kult quase que imediatamente, havendo apenas alguns pontos obscuros, como no valor de 'magical intuition' e seu pré-requisito, mas fora isso Não existem erros terríveis. A organizações do livro é fácil de compreender, e não há porque se perder no meio da informação.
A arte do livro é bem evocativa. A arte bizarra, as cores do livro sempre em vermelho, branco e negro, a diagramação simples mas adequada. Tudo conspira paa tornar o livro bem adequado, ao tema. E a capa é simplesmente soberba.
“David não poderia simplesmente matar sua ‘cópia’. Giusepe lhe disse que não seria tão simples. Mas nada mais parecia simples para David. Sua vida tornara-se um inferno. Cada olhar lhe acusava, cada rosto se parecia com uma de suas vítimas.
Ele seguiu as instruções do pequeno italiano de pele cor de oliva. Entrara na casa de David. Um tipo de bruxo, de acordo com Giusepe, um arquiinimigo de alguém a quem ele servia muito longe daí.
David via David agora. Dormindo, sonhando. David sentia seu sócio arrastar-se agora, durante seu sono, para dentro de sua cabeça. Ele então disse as palavras ensinadas a ele, e cortou fundo a carne de seu braço esquerdo. A dor era lacerante, mais o medo de ser dominado, especialmente antes de exigir a única morte a qual teve vontade legítima de executar, fora o suficiente para suportar o sofrimento. E afinal de contas, o pior estava por vir.
David se aproximou de David, e enquanto este dormia, o esfaqueou no coração...Depois ele comeu o canibal, extinguindo qualquer oportunidade deste novamente lhe assombrar..."
Sistema
O uso de um único D20, com testes baseados apenas em uma perícia
ou atributo, e com apenas alguns modificadores, bônus ou redutores,
fazem do sistema de Kult um dos mais rápidos e práticos sem
esquecer do realismo. Resultados devem ser abaixo ou igual ao da perícia.
20 é um desastre, e 1 é um sucesso absoluto.
A personagem deve, por exemplo, manter-se informada e de olho em seus ferimentos e quanto lhe sobra de resistência. Desmaiar quando se está brigando com um Razide por exemplo, não deve ser uma experiência agradável. O sistema contém também regras para viagens, e para vários tipos de danos. No entanto, o grau de complexidade visto nas regras avançadas de GURPS, não se encontra aqui.
"David era o único David agora. Qualquer efeito mágico sobre o outro para tornar-se ignorado pelo mundo, agia da mesma forma no sobrevivente. David agora dirigia seus negócios, vivia sua vida. Apaixonara-se, amara e novamente se casou.
Então voltou o italiano. 15 anos depois veio cobrar sua dívida. David desejava reagir, afinal ele agora sabia tanto de magia quanto seu predecessor, talvez até mais. Mas a dívida era justa, e ele lembrava do fim do outro David muito bem, os pesadelos em que este ainda vivia em suas entranhas e que um dia sairia o comendo de dentro para fora, povoam suas noites. Cada uma delas.
Não havia como desafiar o pequeno homem.
'Como vai?', perguntou ele casualmente. David apenas balançou a cabeça. 'Desculpe, mas você me deve sua vida', disse com legítimo tom de desculpas. David balançou novamente a cabeça. Em uma semana ele voltaria.
Deveria ele reagir? Poderia ele reagir? Não havia muitas escolhas. Enfrentaria Giusepe então. A vida de sua filha valia muito para ele. Ele confia o suficiente em si mesmo, acreditava poder salvar a si e a ela.
David se enganou."
Conclusão
Kult é o definitivo RPG de Horror. Não apenas pela ambientação
complexa, rica e flexível (a qual Não pude mais que dar um rápido
vislumbre nessa resenha), mas pela sua adaptabilidade, tanto de sistema quanto
cosmologia, podendo literalmente transferir qualquer história de horror
para seu universo.
Concordo com o alerta da própria Metropolis para este jogo não ser utilizado por menores de 16. Afirmo isso por dois simples motivos: 1) O fato de não ter vivido o suficiente para entender melhor os temas principais do jogo farão o jogador ou mestre, mais jovem, tirar menos proveito do livro do que deveria; 2) Ele é simplesmente muito perturbador.