Por Fátima Rodrigues
Ao ler o artigo presente neste site sob o titulo "Dependência e
Comportamentos Aditivos", chamou-me a atenção o quarto
parágrafo do ponto 8.4, onde se refere "A adicção e a
dependência podem ser vistas como estratégias para adquirir
prazer,...". Nesse artigo não se faz qualquer incursão sobre a
biologia da dependência, pelo que achei curioso o facto de uma
análise feita através da óptica psicológica
coincidir com dados fisiológicos e biológicos. Recentemente tinha
lido um artigo sobre a bioquímica do prazer e dependência e achei
que ele completava de forma muito elucidativa a frase acima citada,
lançando alguma luz sobre a persistência da dependência.
Resolvi partilhar esse artigo com os leitores deste site, apresentando uma
pequena compilação e tradução do mesmo, que
poderá ser lido na íntegra na revista Science et Vie - Hors de
Série (Setembro/97).
Porque estamos programados para obter prazer das drogas? |
As drogas, sejam elas calmantes, estimulantes, alucinogéneos ou outras,
aumentam a produção ou impedem a degradação da
dopamina no cérebro. Curiosamente, a alimentação, o
orgasmo, o stress ou o exercício físico têm o mesmo
efeito.
A dopamina surge, assim que se encontra em questão o desejo e o prazer.
Para muitos biólogos, ela está no "coração"
daquilo a que chamamos "comportamentos de dependência". Os seus efeitos
sobre o comportamento seriam tão poderosos que ela seria
responsável, em certas pessoas, pela perda de controle
característica da grande toxicomania. Para fazer aumentar a sua taxa de
dopamina, os toxicodependentes consumiriam qualquer produto, a qualquer
preço.
No cérebro, a dopamina é rara, sendo o meio de
comunicação de um pequeno número de neurónios
("dopaminérgicos"). Estes neurónios não representam mais
de 0,3% das células do cérebro, mas estão implicados em
numerosas funções. A dopamina é segregada pelos
neurónios situados numa das regiões mais primitivas do
cérebro - o mésencefalo (no cimo do tronco cerebral). Estes
neurónios dirigem os seus axónios para uma zona próxima, o
núcleo accumbens, verdadeiro centro do prazer, alojado no striatrum
ventral do cérebro límbico. A partir daí, outros
neurónios dopaminérgicos estendem os seus axónios
até ao córtex frontal, sede das funções superiores
(associativas) do cérebro.
Uma parte destes neurónios dopaminérgicos, intervém,
nomeadamente, no controle dos movimentos. A sua fraqueza provoca os tremores
característicos da doença de Parkison.
Mas aqueles que aqui nos interessam, entram em jogo assim que a pessoa ou
animal experimenta desejo ou prazer. A taxa de libertação da
dopamina seria uma espécie de "barómetro do humor". Toda a
experiência através da qual se procura o prazer (saborear um
chocolate, fazer amor, apreciar uma peça de música, ganhar um
jogo, etc.) traduz-se numa descarga de dopamina no núcleo accumbens.
Em todos os vertebrados, o sistema dopaminérgico participa no
reforço dos comportamentos favoráveis à
sobrevivência do indivíduo e da espécie.
1. Tordos embriagados e macacos alcoólicos
Tomar uma droga não seria, então, mais do que um meio artificial
de activar este sistema natural.
Os animais fornecem um bom modelo para o estudo de certos aspectos da
farmacodependência. Os cientistas aperceberam-se de que os animais de
laboratório se injectavam voluntariamente de todas as substâncias
que levam à toxicodependência no homem e não que mediam os
seus esforços para atingir este paraíso artificial.
Inclusivamente este efeito é variável consoante o tipo de droga,
mostrando, por exemplo, o maior poder "aditivo" dos opiáceos
relativamente ao álcool.
As drogas não provocam todas da mesma forma a elevação da
taxa de dopamina no cérebro. A cocaína, bloqueia a
recaptação dos neuromediadores (depois da
libertação da dopamina na sinapse, o excedente de neuromediador
que não foi absorvido pelo neurónio receptor, é
recapturado pelo neurónio emissor); fixando-se sobre as moléculas
encarregadas da recaptura, a cocaína faz aumentar a quantidade de
dopamina disponível na sinapse. As anfetaminas e o álcool
aumentam a segregação de dopamina. A nicotina tem o mesmo efeito,
enquanto outro composto do tabaco "se cola" à monoamina oxidase, uma
molécula encarregada de degradar a dopamina recapturada.
2. Os pesquisadores de sensações fortes
Os neurologistas observaram que no homem, assim como nos animais, os
indivíduos podiam ser classificados em duas categorias: aqueles que
têm tendência a evitar a novidade, o stress, as
estimulações exageradas, e aqueles que têm um gosto
pronunciado por sensações fortes. Os primeiros são
denominados de LSS ("low sensations seekers") e os últimos, HSS ("high
sensations seekers"). Os HSS, humanos ou animais, têm mais
tendência a consumir drogas. Aparentemente, os animais HSS produzem mais
dopamina no núcleo accumbens que os LSS. O seu apetite pelas drogas
seria então função da sua taxa de dopamina. Assim que ela
baixa, eles experimentam a necessidade imperiosa da a fazer regressar ao
nível satisfatório.
Mas estas diferenças individuais podem-se resumir a uma diferença
de taxa de dopamina ou da qualidade dos receptores desta molécula? Os
biólogos procuraram verificar se elas teriam uma origem genética.
Estudaram, então, os genes da dopamina e dos seus receptores.
A predisposição genética para consumir drogas não
pode ser estabelecida nem nos animais, nem no homem. A história do
indivíduo e as circunstâncias que precedem ou acompanham a
toxicomania jogam, sem dúvida, um papel mais determinante na
apetência pelas drogas.
3. Toxicomania de circunstância
Sabe-se que os alcoólicos surgem com maior frequência nas pessoas
confrontadas com dificuldades familiares ou sociais. Da mesma forma, os animais
privados de contactos com os seus congéneres, injectam-se mais
frequentemente do que os que participam na vida em grupo.
Por outro lado, a mesma substância não produz os mesmos efeitos
segundo as circunstâncias em que é administrada. Quando é
injectada regularmente heroína em ratos, eles sofrem de
privação física quando a droga é retirada, mas
não demonstram dependência a longo prazo, contrariamente
àqueles que se auto-injectaram. O mesmo acontece no homem, para quem o
risco de dependência a longo prazo é menor, ou mesmo inexistente,
quando a droga é administrada em tratamento ou em situação
de stress intenso.
O fenómeno de privação física aquando do desmame
pode ser devido, em parte, à rarefacção súbita de
dopamina no núcleo accumbens.
4. As drogas "endógenas"
A dopamina não é a única molécula em causa no
fenómeno de dependência. A heroína, a morfina e os
opiáceos em geral introduzem perturbações na
produção dos neurotransmissores denominados enkefalinas. Estas
drogas inibem a acção dos neurónios
noradrenérgicos, implicados nas sensações de mal-estar e
na vigilância. Os opiáceos, quimicamente aparentados ás
enkefalinas, tomam o seu lugar no cérebro. Em face desta
abundância artificial, os neurónios produtores de enkefalinas
reduzem a sua actividade. Quando a droga falta, eles não têm tempo
de retomar a produção. O toxicómano sente dores e
mal-estar físico generalizado: a privação.
As enkefalinas podem também criar formas de dependência sem droga:
a adicção ao desporto, por exemplo. Com efeito, o desportista
encarnecido solicita quotidianamente os seus neurónios de enkefalina.
Quando as circunstâncias o obrigam a cessar a sua actividade, ele pode
sofrer de privação física.
Existe assim, adicções sem droga, sustidas pela dependência
do cérebro das suas próprias secreções.
O mesmo se pode referir relativamente ao stress profissional, que cria uma
actividade neuroquímica intensa na qual intervém hormonas como o
cortisol e neurotransmissores como a adrenalina e a dopamina. O
indivíduo dependente do trabalho, das actividades perigosas ou do jogo
procurariam, então, freneticamente situações nas quais o
seu cérebro esteja inundado por estas drogas endógenas.
Os especialistas reconhecem que a privação física
só dura alguns dias, uma semana no máximo. No fim de uma cura de
desintoxicação ela desaparece, mas dá lugar a uma
insatisfação dissimulada, principal motivo da recaída: a
privação psicológica. Os biólogos perseguem-na nos
cantos mais recônditos do cérebro e recaem sobre a dopamina.
Jean-Pol Tassin avança a hipótese segundo a qual a
estimulação dos neurónios dopaminérgicos poderia
acarretar um fenómeno raro mas duradouro: a
sincronização.
A actividade eléctrica destes neurónios, conectados em rede,
entraria em fase e tornar-se-ia simultânea - isto só se produziria
a partir de um determinado limiar de estimulação.
Nestas condições, as reacções à
estimulação seriam muito intensas e o limiar de
activação seria mais baixo do que na ausência de
sincronização.
O investigador pensa que o toxicodependente estaria, então, condenado
à busca perdida do limiar de estimulação. Poderia ser
levado a aumentar as doses para paliar um fenómeno de tolerância e
manteria em seguida, um nível de intoxicação constante.
A sincronização poderia não ser senão fracamente
reversível, o que explicaria a permanência da sensibilidade ao
tóxico durante quase toda a vida e a dificuldade em libertar-se dela.
5. A força do hábito
O condicionamento é outro processo capaz de explicar certos aspectos da
adicção. As circunstâncias nas quais uma droga é
consumida jogam um papel no reforço da dependência.
O evitamento das situações associadas ao consumo da droga
é uma das estratégias mais eficazes dos grupos
terapêuticos.
Eric Loonis refere que "Não nos libertamos de uma dependência que
durou alguns meses ou anos. Podemos simplesmente controlarmo-nos através
de uma abstinência rigorosa".
O cérebro favorece naturalmente as condutas que nos levam a modificar o
nosso estado de consciência, a procurar a euforia, mas uma única
molécula (a dopamina) não poderia dar conta da subtileza dos
nossos comportamentos. Nesta temática, é muito importante a
história do indivíduo, o condicionamento, a
interacção com as zonas do neocortex capazes de controlar a
impulsividade das regiões mais primitivas (o córtex
pré-frontal).
6. Todos dependentes
Eric Loonis nota que o cérebro produz o que ele chama de "ruído
de fundo", resultado da actividade electroquímica incessante dos
neurónios. Barulho de fundo desagradável, que se desdobra num
barulho de fundo psíquico feito de pensamentos indeterminados e numa
insatisfação latente, que procuraríamos mascarar por todos
os meios. De acordo com este autor, todos os nossos gestos repetitivos, os
nossos movimentos rítmicos, os choros e os risos, os sonhos acordados,
as meditações, pensamentos, etc., são comportamentos de
evitamento de que seríamos dependentes.
Sem eles, a vida ser-nos-ia insuportável. Seríamos, então,
todos vítimas de uma espécie de "dependência
mínima", expressa através das mil e uma maneiras de nos desviar
do mal-estar surdo no qual nos mergulha a inacção total. O
recurso a um produto tóxico não é mais do que um destes
meios de ocultação.
Como vimos, podemo-nos drogar com muitas outras coisas para além das
substâncias químicas mais ou menos legalmente adquiridas. Mas, se
nos é impossível escapar à dependência, tudo
é uma questão de controle, de dosagem. A maior parte de
nós resolve bem este problema, preservando o equilíbrio social,
à custa de soníferos, anti-depressivos, tabaco, alguns copos de
álcool, alguns quilómetros de corrida, etc., mas sem cair no
excesso, na "compulsão". Outros não conseguem resolvê-lo
tão bem...
Mas não nos devemos enganar: não é a sua
farmacodependência que é patológica, mas sim a
perturbação psíquica que lhes faz perder o controle.
O significado que toma a toxicodependência no psiquismo do
indivíduo, a lógica que o levam a escolhê-la, escapam
à biologia.