"O lugar onde Adelaïde Périssé nasceu é Lucq-de-Béarn (1858) e faleceu na Fazenda da Trinácria não sei a data porque eu ainda não era nascida (Ela faleceu no dia 14 de Dezembro de 1920 na Fazenda Sta Cruz com 62 anos). Mas ela se casou com José Alves Rodrigues que era português e trabalhava para os irmãos dela. Os irmãos dela compraram a Fazenda de Santa Cruz. Era Vicente Périssé, eu não recordo do nome de todos, mas minha mãe sempre falava nos Périssé. Os Périssés moravam na Fazenda da Santa Cruz que era próxima da fazenda onde nós morávamos que era a Fazenda da Trináquia. Os Périssés vieram da França com bastante dinheiro, ao que me parece, porque compraram uma fazenda grande. E trouxeram a irmã mais moça que era Adelaïde, que trabalhava com eles que naturalmente mulher só tinha direito a trabalhar, mais nada. Quando ela se casou eles então deram um pedaço de terra para ela que chamava-se Fazenda da Lagoa. E para lá da Fazenda da Lagoa, meu pai ficou com um pedaço que era a Fazenda da Trinácria. José Alves Rodrigues veio de Portugal fugindo do serviço militar. Pelo que eu ouvi dizer ele não se chamava José Alves Rodrigues. Chamava-se José Boaventura, mas como ele não queria ficar em Portugal trocou o nome com alguém. Isso eu escutei, não sei se é verdade. O certo é que o nome da minha mãe era Adelina Rodrigues Perlingeiro, filha de José Alves Rodrigues. Ele veio para o Brasil e casou-se com a minha avó Adelaïde Périssé e ganhou um terreno chamado Lagoa que foram os irmãos dela que deram a ela como pagamento, como dote, porque ela trabalhou para eles. Ela não se casou criança, casou com 28 anos que naquela época era considerado muito velho para casar. Eles tiveram 3 filhos: Adelina, Rodolfo e Otilde. Adelina era minha mãe. Ele voltou algumas vezes a Portugal, mas minha avó ficava sempre no Brasil. Ele voltou umas 3 ou 4 vezes a Portugal. Na última vez ele já era viúvo voltou casado com uma portuguesa que após a morte dele voltou para Portugal. Ele morreu em Sto. Antônio de Pádua na casa de minha mãe quando nós já morávamos aqui. Voltou de Portugal doente e morreu aqui. Em Portugal ele era de Tras os Montes, Vila Real. É possivel que o nome dele fosse José Boaventura. Agora eu não entendo como é que ele viajava com o nome de José Alves Rodrigues pra baixo e pra cima. Naquela época não exisitia passaporte, pegava um navio aqui ficava por aí andando dois meses e aparecia por lá. O que eu sei é que ele gostava de beber um pouco e isso revoltava muito a minha avó e a meu pai. Então um dia ele saiu de casa para ir à Miracema e não voltou mais. Voltou meses depois cantando que voltava de Portugal. E muitas vezes, ele devia ter um temperamento meio estranho porque ele chamava os meus irmãos mais velhos e dizia: "olha seu pai está preocupado em consertar o Brasil, eu não estou nada preocupado em consertar o Brasil, eu vou é passear em Portugal." Essa era a mentalidade dele que aliás devia ser ótima porque eu já estou cansada de tentar consertar as coisas e não conserto nada."
"Essa carta, eu sempre tive mania de guarda cartas, é uma carta de meu pai respondendo a uma carta que eu escrevi de Muquí no Espírito Santo para Pádua. A resposta é a seguinte:
'Ausônia,
Recebi sua cartinha, muito grato pelos conselhos. Fez muito bem em rezar. Nós devemos rezar não para pedir a Deus o que necessitamos, mas para agradecer o que nos deu. Já fui um dos mais ricos de Pádua. Pude criar e educar 13 filhos, todos eles com saúde. Imagine que há 40 anos de casado e com todas essa família não gastei um conto de réis com médico. Gozando a mais ampla confiança já ví morrer quase todos os meus inimigos figadais. Já prestei serviços à Pádua que ela nunca me poderá pagar. Agora vem o inverso, sem dinheiro, muitas dívidas, muitas desilusões, muitas ingratidões, alguns desaforos, calúnias e intrigas. Acho-me no dever de aceitar tudo resignadamente. E acho que Deus me deu tanto que nada mais posso pedir. E para contrastar Deus com a ingratidão de Pádua nos deu essa Atlântida (fonte de água mineral) que há de remir as nossas dívidas e talvez nos elevar de novo à altura que já estivemos. Esses sofrimentos talvez fossem para quebrar o meu orgulho e ingenuidade de acreditar que eu tinha amigos. Já sei que esses amigos são raros, mesmo assim devo contar com o meu inesquecível compadre Zeca Teixeira (padrinho de Ausônia) e Bernadino Gonçalves. Louvemos a Deus pois que já nos deu muito. Aceite um abraço de seu pai.'
"O grau de instrução de meu pai era terceiro ano primário feito na Itália. Mas ele era um auto-didata pois ele estudava sozinho e tinha todos os volumes da História Universal Cesar Cantu que ele lia continuamente. História universal, tinha dicionário, eu me recordo que ele tinha sempre uma grande biblioteca. É uma coisa que eu estranho quando chego em uma casa e não vejo livros. "
"Estou lendo aqui um trecho de uma carta que meu pai escreveu para Roma e falando em Casalbuono."
'Já tinha escrito uma carta para você para Casalbuono. Pensei que fosse até lá para ver o berço da primeira "radice" dos Perlingeiro. Teria visto se fossem a nossa moradia de infância e às nossas propriedades: Perazzo, Vignorca, as nossas castanheiras, as nossas "cuercieres" as nossas parreiras, as hortas as montanhas de Soncula e Ravesa, o rio seco de Vagnuolo e rio Laquara. Enfim tantas coisas sem importância que para mim são poemas.'
Na Europa do século XIX iniciava-se a revolução industrial, principalmente na Inglaterra onde o país atravessava um período de franca prosperidade com suas mercadorias procuradas pelos consumidores do mundo inteiro. Os industriais, o Estado iam muito bem, mas os operários obrigados a trabalhar 14 a 15 horas por dia recebendo salários ínfimos iam bem mal. As máquinas substituíndo o sistema de produção vigente deixavam um enorme contingente humano sem trabalho. Enquando algumas inteligências predestinadas percebiam os problemas, apresentando suas idéias como Owen e Saint Simon, seus projetos de instrução, as classes dominantes achavam que tudo corria muito bem. Entretanto, agora no final do século XX continuam os mesmos desafios para a humanidade representados nas crises do sistema monetário internacional, na crise energética, na luta entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos quando a vida do homem comum é envolvida sem que ele tenha qualquer possiblidade de tomar decisões. E assim, numa pequena aldeia italiana um rapazinho cheio de ideal, sadio, inteligente trabalhava com seus pais nas suas pequenas propriedades Perazzo, Vignorca, Pascoale. A aldeia ficava no alto de uma colina e as suas ruas estreitas levavam ao antigo castelo medieval. La embaixo o rio Laquara e o rio seco Vagnoulo por onde se passava para ir a uma de suas propriedades. A luta era árdua mas havia satisfação de ver as lindas espigas de trigo douradas balançando ao vento e a alegria de chegar em casa mortos de cansados na espectativa da ótima sopa de legumes e do vinho reparador. "Só quem fica exausto de trabalhar pode compreender e gozar o prazer do descanso", dizia o pai. À noite discutia-se a situação internacional, falava-se dos dois irmãos que já haviam imigrado para o Brasil. Sem compreender bem os motivos, eles sentiam que embora proprietários com casa própria a situação piorava sempre. O que tinham que comprar era sempre mais caro. Os pequenos proprietários se viam na contingência de imigrar. Para suprir a deficiência de renda, o rapaz Francesco começou a fazer cestas nas horas de descanso. A tradição e herança cultural faziam de suas cestas verdadeiras obras de arte. Animado ele foi vendê-las em Rio Negro, a cidade mais próxima. Saiu cedinho a pé. Tanto caminhar para ele, forte aldeão, era um hábito. Pela estrada passava as carruagens dos aristocratas onde rapazes da sua idade iam comodamente recostados. Isso não impressionava Francisco que animado pensava em vender o fruto de seu trabalho. Porém ao fim da jornada, ei-lo de volta com as cestas. Não encontrara comprador. Outros como ele que passavam trabalhando as horas de lazer encheram o mercado de cestas e o número dos que podiam comprar era pequeno. Era um punhado aqueles que tinham demais e era uma multidão aqueles que lutavam para sobreviver e pagar os impostos escorchantes. Foi então que Francisco entendeu. A viagem de volta foi duríssima. Não havia nada a fazer. Era inútil lutar contra aquela barreira. Mesmo que trabalhasse 24 horas por dia nunca sairia daquela situação. Ele jamais poderia estudar, mesmo que a sua inteligência e a sua saúde fossem acima da média. Assim seria também para seus filhos se se decidisse a casar. Lembrou-se da namorada, ela também uma componesa. Não havia nehuma oportunidade. Os pés estavam cansados. Doíam. O coração estava cheio daquele enorme abatimento que traz a desesperança. Era a realidade. Qualquer oportunidade seria para os garotos das carruagens. Eles seriam os médicos, os advogados, os coronéis, os engenheiros, os banqueiros, os burocratas, os juízes, os que dominavam a política. Para ele e para a multidão de camponeses restava a terra para plantar, os impostos para pagar, a missa, as festas da aldeia ou talvez voltar cego ou alejado de alguma guerra de conquista. Teria que fazer como os outros, emigrar. Emigrar para os Estados Unidos, para o Canadá, para a Argentina, Austrália, Brasil. Os olhos de Francisco encheram-se de lágrimas. Quantas ainda teria que verter. Ele prometera à mãe que não emigraria. Agora teria que convencê-la, convencera a namorada e certamente convencer a si mesmo. Ele não poderia olhar para os montes Imola e (?) coberto de oliveiras onde ficava a capela de Nossa Senhora da Consolação. Não poderia ouvir os sanfonistas às portas dos bares pois perderia a coragem. Era preciso tapar os ouvidos e olhar para frente ou não iria nunca. Finalmente (estava) ele em Nápoles tomando o vapor com destino ao Brasil; a alma cheia de medo, de curiosidade e de saudade. 'Parece que tive sorte na escolha', pensava, o pessoal do Brasil era delicado e humano; tratou-lhe muito bem. O mesmo não acontecera ao amigo que resolvera ir para os Estados Unidos. Achou-o teremendamente deprimido. Haviam lhe tirado toda a roupa, assim como a de seus companheiros de viagem. E ali, nús, ficaram olhando abrirem suas malas, tirarem suas roupas e desenfetarem tudo. Aquela roupa nova que custara tanto a seu pai comprar; os sapatos, a meias feitas à mão pela mãe, tudo misturado, amassado, impregnado de inseticida e desinfetante. E eles ali nús, olhando. Ninguém lhes defendeu de tão grande humilhação. Os representantes do governo americano quiseram e os burocratas de seu país concordaram. Queriam livrar-se deles. Havia gente demais. Os que ficaram seriam suficientes para continuar enchendo os celeiros dos poucos ricos, quase de graça. E além disso os que iam sempre mandavam dinheiro para os que ficavam. Eram divisas que entravam para o país. E Francisco começou a gostar do Brasil. Pelo menos não lhe destruíram as roupas ganhas com tanto sacrifício. Pelo menos fora respeitado como pessoa humana.
Ao chegar ao Rio de Janeiro no cais Pharoux, Praça XV, tudo era estranho, o clima, a língua, as canções, o povo, a alimentação. A cidade, um aglomerado e sem higiêne era um meio propício para febre amarela, varíola e outras doenças tropicais. Francisco já estava arrependido de ter vindo. As saudades de casa e da pátria eram forte demais. Se pudesse voltaria no mesmo momento, mas não podia. Teria que ficar pelo menos uns tempos para conseguir algum dinheiro. E assim seguiu caminho para o interior onde seu irmão mais velho tinha uma fazenda, casado com a filha de um fazendeiro. A Fazenda Oriente, próxima à Vila de Sta. Cruz e Sto Antonio de Pádua era novamente a terra, novamente a lavoura, uma lavoura diferente mas era plantação, árvore, vida, e ele sorriu pela primeira vez. Mas sua surpresa foi enorme quando descobriu que os donos não trabalhavam a terra pois tinham escravos para fazê-lo. Então o trabalho que ele conhecia, que ele pensou em elevar e dignificar era feito pelo escravo? O que poderia fazer então? Seu irmão convidou-o a trabalhar na loja e ele aos poucos foi procurando entender o ambiente do sistema colonial. À noite sempre aproveitava para estudar a nova língua. E assim tomou a decisão de trabalhar por conta própria. Como era comum na época, o negociante ia de fazenda em fazendo levando suas mercadorias e deixando. Na época da colheita ia receber o pagamento. A cavalo, passando através das florestas tropicais, levando com suas mercadorias a sua sanfona, ia também criando um número grande de amigos. As fazendas estavam abertas para aquele italiano educado e bom negociante, contador de histórias de sua terra e bom sanfonista. Torna Soriento, canções napolitanas eram ouvidas nas varandas das casas grandes, enquanto lá fora no terreiro o café em montes esperava o dia seguinte para ser espalhado.
A filha de tradicional fazendeiro apaixonou-se por Francisco, mas ela já estava prometida a seu primo. Este primo, um dos maiores admiradores de Francisco, um grande amigo, nunca deixou que esse fato toldasse o mínimo das suas relações. Ao ir ao Rio para fazer as compras, ele interessando-se pelo comercio de café foi comprando livros para melhorar seus conhecimentos. Com o contato que tinha com os fazendeiros, agora seus amigos, obteve emprego de comprador de café para a firma Quartin Barboza e Cia. Infelizmente, porém, a firma teve problemas e deixou de pagar o café que ele comprara. Ele novamente comerciando por conta própria foi pagando um por um os fazendeiros que haviam confiado nele. Assim seu nome foi crescendo em uma época em que a palavra era mais importante que qualquer documento. Numa de suas visitas a fazendeiros conheceu uma mocinha bem mais moça do que ele. Iniciou então um namoro à moda da época. Iam às festas nas fazendas e ele que preferia ficar conversando deixava que ela dansasse com os outros. Era na época um modo de agir diferente do ambiente. Ela bem criança, tendo simpatia por um primo, atendeu ao conselho da mãe que achava Francisco um homem sério, trabalhador e mais apto a formar família. Assim, Francisco e a Adelina se casaram na Vila de Pelados, Miracema. O sogro deu-lhes uma propriedade, a Trinácria, ainda coberta de mata virgem. Na clareira fizeram uma casinha simples com um local para uma venda. Francisco já percebera que num país novo, totalmente dependente do mercado externo, ele teria que continuar no coméricio observando as tendências e se informando através do Jornal do Comércio que era lido com a maior atenção. Os tios de Adelina, grandes fazendeiros franceses, riram bastante quando souberam de sua pequena loja. "Quem irá comprar num lugar distante e numa fazenda tão pequena?" Francisco durante o dia ia para a lavoura de café e Adelina ficava na lojinha, muitas vezes vendendo da janela pois tinha muito medo de bandidos que infestavam a região. Francisco não se interessou pelas queixas. Não se ofendeu e procurou comprar no Rio a dinheiro vendendo sempre mais barato do que em qualquer outro lugar. Começaram a correr boatos sobre a lojinha da Trinácria. Os colonos de outras fazendas vinham de longe economizar alguns tostões. Numa das crises de café quando os preços caíram bastante seu cunhado decidiu vender uma bela fazenda, a Ventania. "Não venda", aconselhou Francisco. "Isso é temporário, as tendências vão mudar." "Vou vender de qualquer jeito". "Se é assim e vai vender para outrou, eu compro." Rodolfo, seu cunhado que era seu sócio naquela época na loja que já era bem grande. Francisco já era fazendeiro e os "uns tempos" que prentedera ficar no Brasil já haviam se transformado em anos e anos. Mas as saudades da terra persistia. Quando fechava os olhos muitas vezes se via brincando no Rio Laquara com os garotos da família Sabatini, La Salvia, Masullo, Consentino, Calábria. Onde estariam eles, teriam imigrado? O tempo era pouco para a correspondência que levava uns tres meses para chegar à Trinácria. Embora progredindo materialmente, parece que havia uma certa tristeza no semblante sempre sério. E a sanfona foi deixada de lado. Não tocava mais. Quando nas conversas em casa falava em adubação da terra, em colher café sem misturar com terra e chôchos os outros riam. "Você quer por a cabeça de um velho no corpo de um novo?" Dizia o Rodolfo." "Se o novo tivesse a experiência do velho o mundo seria muito bom. Nós vamos ficar sozinhos fazendo uma experiência cara, deixa isso pra lá. Quando as terras ficarem velhas, vamos fazer como todo mundo, procurar terras novas." Francisco, um auto-didata percebeu que a solução era educar os jovens, pois mudar os velhos era quase impossível. Agora já havia fundado um clube agrícola que publicava o jornal O Agrário. Na fazenda do Tirol do seu amigo José Bastos com máquinas impressoras rudimentares era publicado O Agrário defendendo os interesses dos agricultores. Os filhos nascidos na Trinácria sem médico, sem hospitais, viviam a mesma vida dos colonos, descalços, roupa de chita barata, montando cavalo em pelo, subindo nas árvores e às vezes caçando nas florestas. Os dois partidos políticos do município começaram a se preocupar com o italiano cujo nome já era por demais conhecido. Com a história de clube agrícola ele já arregimentava um volume de votos que pendendo por qualquer um dos lados decidia as eleições. "Precisamos cortar as asas desse italiano", diziam. Francisco, que não usava armas defendia-se de uma forma inteligente. Não dizia nem à Adelina quando voltava, por onde passaria ao sair de casa. Nunca passava pela mesma estrada à mesma hora fazendo um hábito. Ninguém sabia exatamente onde ele estava. Assim evitou algumas tocaias. Na época o grupo do F. de Araújo, apoiado por políticos, roubava gado na cara dos donos, mandava matar com a maior tranquilidade. Os fazendeiros viviam apavorados. Francisco mostrava à Adelina onde ele escodia o dinheiro enterrado no chão pois a loja vendia muito e o perigo de banditismo era grande. Esse espírito superior que adorava música e leitura era obrigado a enfrentar esses elementos primários e primitivos em inferioridade porque ele não tinha coragem de matar. Mais sizudo ficava Francisco. Desaparecera o rapazinho italiano alegre. Agora existia um lutador de dentes cerrados que educaria os filhos para que esses não sofressem o que ele sofreu. Para se impor em um ambiente tão primitivo o melhor era falar o mínimo possível. Era inútil querer modificar tudo sozinho. Os filhos foram crescendo vendo aquele homem calado pelo qual tinham enorme respeito ou talvez medo. "Se vocês subirem lá no coqueiro para caírem e quebrarem a cabeça eu chamo o seu pai", dizia Adelina. Era a forma de conseguir obediência daquela garotada. Eram já 10 seus, outros de sua irmã que morava ali perto na Bela Vista, os do Rodolfo e os agregados, filhos de colonos, alguns filhos sem pai, todos tratados da mesma forma. Ninguém sabia quem era dono e quem era empregado. Os mais espertos sempre passando a perna nos mais lerdos. Horácio, chefe da folia de rei e Túlio, filho de Francisco, conveceram Nestor de que se ele fizesse uma asa voaria como os pássaros. E alí ficaram rindo esperando a queda de Ícaro do lado de baixo da pedra. Nestor pulou e caiu. Felizmente não se machucou e aprendeu a não acreditar mais nos dois mentirosos. Se vinha castigo, era para todos sem saber a origem. Este era o espírito da Trinácria que Amilcar disse às vésperas de morrer que estava dentro dele, na sua alma, embora o corpo estivesse em qualquer lugar. Assim a Trinácria era dirigida. Os filhos não sabiam se o pai era rico pois o dinheiro era para investimento, para relações públicas, para o jornal e agora para a primeira escola que pretendia fundar. Com um grupo de amigos foi fundado o Colégio de Miracema. Através das amizades do Rio de Janeiro, ele conseguiu que um casal muito culto, porém em situação financeira difícil, viesse dirigir o colégio. D. Arminda falava francês corretamente e tinha um educação finíssima. Francisco depois de grande luta conseguiu que seus amigos fazendeiros deixassem suas filhas internas. Letícia, sua filha mais velha também foi estudar lá. Porque d. Arminda comentou com o padre que o F. de Araújo era perigoso, este resolveu fechar o colégio. Mandou uma mão negra com um aviso: "Saia, antes que seja tarde. Damos 24 horas" foi colocada na porta do colégio. Francisco pediu que não saíssem, que se mostrassem corajosos. D. Arminda e o marido resistiram ao primeiro embate. Foram jogados ovos podres e fezes dentro do colégio por cavaleiros em desfilada. A segunda carta veio em seguida. Francisco tornou a pedir que não cedessem, porém os bandidos atiraram sobre o colégio passando em desfilada pelas ruas. Aí não houve mais jeito. Os pais vieram buscar as filhas e os diretores partiram às cinco horas da manhã no único trem que havia e o único meio de transporte. Terminara a primeira experiência, perdida a primeira batalha, mas não estava perdida a guerra. Adelaïde, a avó de Letícia, levou tanto susto quando soube do assalto ao colégio que adoeceu de ectirícia, do que veio a morrer (Em JUN 1998 eu achei a certidão de óbito dela e ví que ela faleceu no dia 14 de Dezembro de 1920 na Fazenda Sta Cruz com 62 anos. A certidão de óbito diz que ela faceleu de artereoesclerose.) Na noite do assalto, coincidiu com a queda de um aerolito iluminando o céu assustando os empregados e ex-escravos que choravam. Tudo levou ao pânico.
Agora um líder, Francisco continuava estudando. A História Universal de Cesar Cantu era lida nos pormenores, a princípio à luz de vela, à luz de lamparina e depois à luz de acetileno. A compreensão dos fenômenos presentes dependia do conhecimento do passado da humanidade. Ledina, já grandinha, ia acender os lampiões de acetileno. Nas horas calmas dos sábados e domingos, o gramofone tocava áreas da Tosca, Cavalaria Rusticana, Trovatore, Caruso e Tita Rufo eram ouvidos em silêncio por aquela garotada descalça e meio bárbara.
O que preocupa uma comunidade é ver alguém superior à ela. É claro que aqueles homens rudes cuja política era de matar os inimigos quando seu partido vencia, que possuiam diversas famílias, os filhos legítimos e os filhos chamados naturais que não liam, não sabiam da revolução industrial na Europa, do Manifesto comunista de Marx e Engels, da Revolução Francesa, de nada afinal, tinham que achar estranho aquele homem que falava em comunidade, em escola, em voto honesto e que ao mesmo tempo que o admiravam o odiavam. Francisco compreendia isso e não comentava, não se alterava, apenas procurava se defender. Nem quando estava no Rio de Janeiro ele respondia quando o chamavam quando estava de costas. Era hábito dos políticos mandar matar pessoas que não conheciam. Se chamado pelo nome o outro virava certamente era o elemento procurado e era morte imediata. Um dia d. Adelina estava na cozinha e chegou um homem pedindo comida. Ela deu naturalmente conversou com ele e perguntou se precisava de mais alguma coisa. "Preciso trabalhar, estou sem emprego." "Vou ver com meu marido", disse ela. Logo Francisco arranjou um lugar para o seu Agostinho e foi ficando e viraram compadres. Certo dia ele disse: "Compadre, eu estou estou emocionado, quero tirar um peso da minha cabeça, eu vim aqui para matar o senhor. O sr. Fulano pagou-me para isto. Depois que vi sua mulher tão boa, seus filhos e sua maneira de tratar a todos mudei de idéia. Vou matá-lo, ele é que é um miserável". Francisco ficou estarrecido, tinha dentro de sua propriedade um homem tremendamente perigoso, um assassino profissional, um louco e seu compadre. Era preciso muita calma para livrar-se com ele. "Compadre", disse, "de minha casa nunca saiu ninguém para matar quem quer que seja, eu sei que fulano é meu inimigo político, mas só Deus deve tirar-lhe a vida. Eu luto com palavras, com votos, mas nunca com armas. Aqui é um país novo, tem espaço para todo mundo e você deve ensinar isso a seus filhos, espírito cristão, se você gosta de mim e de minha família, peço-te, nunca mais falar em matar ninguém". Em seguida o sr. Agostinho continuou: "mas seu Chico, é verdade o que estou dizendo, vim aqui não para procurar emprego, mas para descobrir como o sr. vivia, os seus hábitos, para encontrar a hora oportuna de matá-lo. Como pode pedir para que eu não mate um miserável como esse que me deu dinheiro para matar um homem de bem. Eu sempre matei gente que não prestava, eu estava até auxiliando a humanidade." "Bem compadre, já falei e já lhe pedi, se gosta daquí tem que me prometer que vai seguir meu ponto de vista. O senhor é um homem inteligente e pode muito bem ganhar a vida honestamente sem ser juíz de ninguém. Quem decide sobre a vida é o Juíz Supremo. Eu até estava pensando esses dias de arranjar um negócio para o sr. em Miracema. Negociando-se ganha-se mais do que tocando lavoura. Seus filhos teriam melhor oportunidade." "Isso seria ótimo, sempre eu gostei de um negocinho meu." E assim Francisco arranjando uma loja para o compadre viu-se livre do perigoso amigo.
O tempo ia passando e as crianças precisavam ir para o colégio fora pois Adelina já não tinha mais conhecimento para ensinar e não havia colégio na região. Aí estava o problema. Aí estava o trauma. Até uma planta sente quando é transplantada. Isso deve ser feita quando é pequena e com muito carinho pelo agricultor. Deve-se de adaptar ao terreno, a planta tem que ser molhada, acariciada e cuidada. Mas, Francisco havia sido arrancado de sua terra de qualquer jeito com 16 dezesseis anos e uma pataca no bolso e a ferida estava apenas cicatrizada; poderia ser aberta de novo. Os dois primeiros filhos, Anibal e Arquimedes precisavam partir. A pequena viagem no próprio país transformava-se em sua mente na longa viagem da Itália ao Brasil. Eles não voltariam mais para casa. Uma semana antes Francisco ficou com um nó na garganta, não podia falar. Mas o trabalho continuava automático, a fisionomia tranquila. Quem supunha que este homem estava sofrendo? Adelina arrumava as malas, via as roupas melhores que levariam e ele não via Adelina, mas sua mãe chorando e fazendo sua mala sob a promessa de voltar. Onde estava a promessa? Trabalhando, trabalhando sem parar tudo melhorava. Livros e pouquíssima conversa. Que homem sério. No dia que ele decidir brigar ele mata um, pensavam as mentes simples dos trabalhadores e todos que o respeitavam, o respeitavam ainda mais. Os cavalos selados, os tres partiam para Leopoldina para a escola levando o Horácio, o camarada que cuidava dos cavalos. Na curva do caminho ainda escutavam a Marcha Real Italiana que o gramofone tocava em homenagem à partida. Não se chorava, porém. Adelina concentrada, mais forte, dizia: "Que bobagem, vão apenas estudar." Estava alí o esteio, o espírito prático, tornando tudo natura,l sem romantismo, pondo o resto da criançada em ordem. Mais tarde sairam Lectícia, Ledina e Mariquinhas para Petrópolis para o Colégio Sta. Isabel. Era o mesmo sofrimento. Francisco queria que estudassem, mas queria-os próximo a ele. Seu subconsciente não aceitava separação. A sublimação do sofrimento em desejo de um mundo melhor onde todos pudessem ter a sua parte fez de Francisco um trabalhador incansável e um idealista. Seus filhos não seriam inúteis filhos de ricos indolentes. O dinheiro era para melhorar as condições de vida, investimento, progresso e escola. Juntou com o pessoal do clube agrícola os valores que poderiam fazer uma hidroelétrica. Todos ficaram espantados diante da ousadia do empreendimento. "Isso é uma coisa de governo, diziam alguns, nós tratamos de nossas lavouras e já fazemos bastante." "O governo é o povo. O governo é o reflexo do povo. Temos que auxiliá-lo. Êle não pode fazer tudo." Nasceu assim a Companhia de Eletricidade do Norte Fluminense. A Cia fundada tinha que ter a licensa do governo para iniciar os trabalhos. Essa licensa foi negada pelo governo do Estado do Rio a pedido dos políticos de Pádua, por que acharam que a eletricidade iria criar problemas, o povo poderia ficar muito sabido e não convinha. A Cia moveu uma ação contra o governo e o protesto foi parar no Supremo Tribunal. Finalmente o Supremo decidiu a favor da Cia. Foi uma grande festa em Pádua. Os políticos do contra fizeram discursos dizendo que haviam pleiteado que a licensa fosse negada para testar a capacidade de luta de Francisco. Ele ganhara, mas não tinha mais quase ninguém com ele. Os companheiros haviam desanimado e vendido as quotas que determinado a vencer comprara. Agora não tinha mais dinheiro para as obras. E assim foi obrigado a vender para a firma do Sr. Afonso Vizeu, por quase nada, copm uma cláusula que se ele puzesse uma fábrica, teria eletricidade grátis por dez anos: 30 KVA. Esses trinta KVA foram utilizados para acionar a cerâmica Ibiatã, em Sto. Antonio de Pádua. Era a certeza da necessidade de industrialização. Era a compreensão da mudança do sistema de produção que poderia ser feito em um país novo de forma mais organizada. No subconsciente estavam as idéias de Owen. Ele não aceitava espoliar o trabalhador. Ele nunca aceitou trabalho escravo e acreditava na cooperação e comunidade. Todas as suas iniciativas eram idéias comunitárias, o clube agrícola, a companhia de eletricidade, a escola. Em suas fazendas os colonos vendiam seus produtos a quem quizessem e compravam onde queriam. Quando alguns vinham e queriam vender a ele, eis que ele dizia, "vai e procura saber o preço, eu darei sempre mais um pouco mais do melhor." Mesmo assim se por acaso ele ganhava mais do que ele julgava justo com a mercadoria comprada, muitas vezes o colono ganhava um extra como presente. Dentro da maior simplicidade éramos criados dentro da doutrina social cristã, talvez sem nada escrito, sem aulas programadas, mas no exemplo do dia-à-dia no espírito da Trinácria. O discurso que Roberto Lyra Filho pronunciou citando palavras de seu próprio pai em 80 para saudar os novos advogados como paraninfo destacou essa verdade. "Com um povo asfixiado e espoliado não há democracia; com distâncias e abismos sociais não há unidade; com dependência econômica não há soberania; com desigualdade não há ordem nem progresso; com exploração do homem pelo homem não há justiça nem paz." Essas verdades estavam impregnadas em nosso pensamento, em nosso ser através do exemplo daquele corajoso imigrante Francisco. A Trinácria foi a primeira fazenda a colocar eletricidade. A Primeira Guerra Mundial havia dado a Francisco a oportunidade de juntar bastante dinheiro com a compra de estoque antes da alta. Era a leitura assídua dos jornais que o informava. Francisco agora já lia à luz elétrica. O povo acostumava-se aos poucos à essa força estranha e perigosa. Todos tinham medo de morrer de choque quando ligavam uma lâmpada. As histórias contadas eram tremendas. Assim Otilde ao aparafusar uma lâmpada que estava frouxa quando viu que a mesma acendera rápido caiu no chão pensando que estava morta ferida. Arquimedes e amigos haviam estudando engenharia elétrica em Juiz de Fora, sempre orientados por Francisco. Tomando novo alento, Francisco reuniu novamente os amigos e convenceu-os a fundar uma escola em Pádua. Artur Silva, Pedro Portugal, Eugênio Serrão e outros liderados por Francisco fundaram a escola em uma casa antiga que fora da família Xavier. Mais tarde Francisco compraria as quotas dos demais amigos pois a escola dava prejuízo e ele achou por bem sustentá-la sozinho. Assim essa tomou o nome de Colégio Ítalo-brasileiro tendo como primeiro diretor o Sr. Guimarães. O sr. Guimarães, educado na Alemanha, adotava um sistema de disciplina muito rígido com castigo corporal. Isso não era o que Francisco esperava. Ele nunca batera em qualquer pessoa, muito menos num filho. Tudo deveria ser resolvido com calma. Por anúncios em jornais conseguiu um novo professor, José Lavaquial Biosca que estudara com d. Aquino Correia, bispo de Cuiabá. Era um rapaz jovem cheio de disposição para o trabalho. Quando o Sr. Guimarães resolveu ir embora, já que a sua mulher não gostava de viver em Pádua, Lavaquial com Freycinet Périssé ficaram responsáveis pelo colégio. Com a saída de Freycinet, Lavaquial ficou como diretor. Mais tarde iria casar-se com Maria Perlingeiro e ambos continuaram diretores do Ítalo-brasileiro, que veio mais tarde a chamar-se Colégio de Pádua. Anos a fio Francisco ajudava o colégio de todas as formas. Com as férias ninguém pagava colégio e todas as despesas eram financiadas por ele. Um grande prédio fora construído com muitas salas de aula e pátio para as crianças. Lavaquial e Mariquinha trabalhavam muito e o colégio aos poucos ia progredindo. Mesmo sem renda, Francisco achava que eles deviam descansar nas férias, embora ele mesmo nunca tivesse tido férias. Assim, os passeios em Atafora, Niterói, com as crianças, eram financiados por ele. Havia o esteio, o alicerce para dar segurança à obra. Tudo corria numa tal harmonia que ninguém pensava em escriturar, em dividir. As casas eram ligadas. Se faltava arroz por improvisação da cozinheira, apanhava-se na casa da mamãe. Se uma criança tinha febre, era mamãe que medicava. Ela era já chamada de "colega" pelos médicos amigos. Os filhos mais moços de Francisco já se confundiam com os netos nas brincadeiras no pomar enorme, quase um alqueire de mangueiras, jaboticabeiras, laranjeiras, tamarineiras, pés de beribá, pinha, abío atrás da casa em Pádua, para onde se havia transferido a família. Nesta casa Francisco fez o casamento das tres filhas mais velhas com as festas de praxe. Neste conjunto de harmonia faleceram José Rodrigues, pai de Adelina, seu Ramon e d. Tereza, pais de Lavaquial. Era a juventude respeitando a velhice, era a juventude aprendendo as lições com a realidade.
Os filhos mais velhos já formados em engenharia e direito, as filhas professoras e casadas, restavam os menores que estudavam no Colégio de Pádua. Francisco pusera uma indústria de cerâmica para a produção de telhas e manilhas. Produtos industrializados chegavam ao Brasil procedentes da Europa e dos Estados Unidos, automóveis Fiat, Rugby, Ford, tecidos de cambraia irlandesa, casemira inglesa. Sempre interessado no progresso, Francisco comprou o primeiro rádio que só falou "boa noite". Era um amontoado de peças que tomava meio quarto. Francisco comprou ainda o primeiro caminhão que sem estradas tinham muita dificuldade de cumprir o seu objetivo. O motorista era principiante e, naturalmente, muito ruim. Arquimedes que comprara a Trinácria, bem de vida, deu de presente à Adelina um automóvel Rugby. Ledina e Lovise trabalhavam em Miracema em uma loja, Aníbal, advogado e engenheiro, veio trabalhar com o pai. O Ginásio de Pádua torna-se o centro educacional da região. O trabalho de Lavaquial com o apoio econômico de Francisco e a cooperação de ótimos professores, dr. Ismael Coutinho, professor José Pinto de Souza, Anaíde Panaro, Adelaide Perlingeiro Melo, Lectícia e Gambetta Périssé, Túlio, Irinéia e Amilcar fazem o nome do ginásio transpor as fronteiras municipais. Alunos vinham dos municípios vizinhos, de Campos, do Rio, de Niteroi passando pelo ginásio um total de 65.000 alunos. Se em vez de se preocupar com a educação fundando o colégio em Miracema e depois o Colégio de Pádua Francisco tivesse empregado seu dinheiro em ostentação e luxo, um sem número de pessoas que hoje elevam o nome de Pádua como engenheiros, médicos, deputados, militares e empresários estariam entre o grande número de subempregados que não teriam tido condições de estudar nos colégios do Rio, Niteroi ou Campos. Francisco fundou uma cooperativa de crédito agrílcola do sistema Raiffeusen que tinha por finalidade suprir a deficiência de bancos no município com o nome de Caixa Rural de Pádua. Em vez de banco, ele pensou em cooperativa de crédito para resolver o problema de todos. Assim todos os associados, inclusive ele e os filhos, cooperavam com a caixa o que era absolutamente normal e legal. "Impedir que os dirigentes de cooperativa de crédito operem com suas próprias entidades seria o mesmo que proibir o dono de um armazém que nele se abastecesse ou o industrial de consumir o que produz na sua fábrica" (curso médio de cooperativismo Waldick Moura pg. 172). Infelizmente nuvens negras começam a ameaçar o mundo capitalista. A euforia começou a diminuir. Como já previa Owen surgiu o problema da superprodução e monopólio gerando a grande depressão mundial de 1929 e 1930. Da noite para o dia um mundo de abastança começou a desabar. Milionários se suicidam com a queda das bolsas em Nova York. Ninguém tem para quem vender. A Argentina queima trigo e carneiro. A Austrália idem. O Brasil, o maior produtor de café do mundo, com a economia dependente totalmente da produção agrícola viu-se envolvido na crise. O governo promete sustentar o café a vinte mil reis a arroba. Francisco entregou sua produção ao governo pois não conseguia vendê-la. O governo pagou 2 em vez de 20. As pessoas que alugavam suas casas em Pádua, quase toda a rua Direita, deixaram de pagar seus aluguéis. É claro que todos os fazendeiros que operavam na Caixa Rural não tiveram dinheiro para pagar seus empréstimos. Enquanto que os depositantes queriam recebê-lo. Os fihos mais velhos de Francisco haviam comprado fazenda sendo ele o avalista contando com a produção para o pagamento. Artur, seu cunhado, que comprara fazenda em Campos vinha todos os dias pedir-lhe que comprasse dele o Rio Preto, porque do contrário se suicidaria. Eis Francisco atribulado com tudo às suas costas. Mais uma vez eram fatos acima do seu poder que tomavam conta de seu destino. Para que os depositantes não tivessem prejuízo na liquidação da Caixa Rural ele colocou seus bens como penhor e como já fizera uma vez quando representante de Quartin Braboza e Cia, ele foi pagando com seus bens uma responsabilidade de todos. No meio da crise o governo é submerso. Desencadeia-se a revolução de 30 que depois de Washington Luís colocou Vargas no poder. Pádua é invadida por tropas vindas de Minas e os revolucionários tomam a cidade. Os soldados do governo fugiram. À noite depois de um pequeno tiroteio fomos dormir. Lavaquial pediu a todos que usassem a senha "araçá" para saber se éramos amigos. Muitos alunos internos foram para suas casas, mas muitos ficaram. Na noite seguinte o tenente Americano Freire foi à casa de Francisco para prendê-lo. D. Adelina trouxe-lhe café. Francisco perguntou o motivo de sua prisão. "O senhor foi denunciado como boateiro. Está soltando boatos contra a revolução." "Creia, tenente, que se não fosse uma coisa séria eu começaria a rir. Posso ter defeitos, porém falar falo pouquíssimo. Sou a favor do governo e contra a revolução por que creio em evolução e educação e nunca em revolução. Revolução é como agitar o leite, a nata se mistura. Quando o leite para a nata sobe. Toda a sociedade tem a sua nata que desaparece no momento da revolução. Essa revolução foi o fruto da crise internacional que afetou muito o Brasil devido à monocultura do café. Se porém o senhor quizer levar-me pode fazê-lo. Não apresento resistência. Sou e sempre fui contra a violência. Sou governista mas não defendo o governo com armas, porque não sei e não queria usá-las." O tenente ficou surpreso da resposta calma e decidida. Viu a família reunida, todos controlados e concordando com o que dizia Francisco tomou o café e em seguida disse: "não vou levá-lo. A denúncia é falsa. Uma pessoa com tal serenidade e tal filosofia merece todo o nosso respeto. Queira procurar-me se precisar de qualquer coisa." Quando ocorreu o boato de um contra-ataque das forças governistas o tenente mandou avisar Francisco para retirar a família e os alunos da cidade. "Para onde iremos? Para a fazenda de meu grande amigo Zeca Teixeira." Lá fomos nós, família, colégio, agregados a pé para a Fazenda Monte Alegre. Zeca Teixeira viu chegando em sua casa aquele montão de pessoas, ele que vivia só com a esposa. Nenhum gesto de aborrecimento e como na passagem da Bíblia aquele senhor de barbas brancas, na porta da casa, nos oferecia hospitalidade levados pelo seu grande amigo Francisco. Lá dormimos no chão nú, tomamos leite no estábulo tirado na hora e como não houve contra-ataque voltamos para Pádua. Terminada a revolução o governo resolveu ajudar os empresários rurais como faziam os demais países. Foi aprovado o decreto do reajustamento econômico obrigando-se o governo a pagar 50% da dívida dos agricultores. Graças ao reajustamento econômico Francisco recuperou as Fazendas do Rio Preto, Barra, mesmo assim a depressão econômica continuava. Dos inúmeros telefones de Pádua ficaram apenas 2, dr. Amilcar e dr. Hermete. A telefonista ligou-os e ficou sem ter o que fazer. Os automóveis desapareceram e só permaneceu o taxi do sr. José Fernandes. Voltaram os cavalos com meio de transporte. Os melhores elementos mais jovens e mais corajosos saíram para Niteroi ou Rio procurando emprego. Aos poucos em substituição ao café começaram as plantações de arroz abril e gado. A economia mundial foi se recuperando na espectativa de uma nova grande guerra. O filho mais moço de Francisco, Sículo, foi para a escola de cadetes porque era a oportunidade de estudos. Logo que saiu tenente ajuda a Adelaide, sua irmã, a fazer o curso de piano. Graziela já se empregava na fonte iodetada e depois no Colégio de Pádua. Ausônia e Clélia vão dar aulas no Ginásio em Muqui, recém-fundado por Lavaquial a pedido da população de Muqui. Numa das visistas ao Rio, Ausônia se encontra com os integrantes da esquadrilha dos ratos verdes italiana da qual fazia parte Bruno Mussolini. Entre esses estava Giovani Cubeddu com quem ela se casou quatro meses depois. Francisco aconselhou-a a esperar que ele voltasse ao Brasil mas ela preferiu casar logo. Na visita que a filha fez a Casalbuono e Francisco ainda tinha a irmã Rosamaria esta recebeu uma carta sua. Foi aí que ela compreendeu o que era imigrar e lendo a carta chorou copiosamente. Ela, Ausônia, imigrara tendo ao lado o marido financeiramente estável atencioso e gentil. A família recebeu-a com carinho e ainda assim sentia saudades. Como teria sido para aqueles obrigados a imigrar porque não tinham futuro em seu próprio país? Diante de seus olhos cresceu a figura de Francisco que poderia ter fugido às responsabilidades refugiando-se na bebida, no jogo, na Máfia. Entretando via-o erecto, silencioso, equilibrado, mesmo na dura crise que o colocava em grande dificuldade finaceira.
Durante a Segunda Guerra Mundial Ausônia perde o marido Giovanni desaparecido um misterioso desastre aéreo sobre Oceano Atlântico entre o Brasil e a Ilha do Sal. Viúva, ela volta para Pádua com o filho de seis meses, José Renato, e que mais tarde faleceu aos seis anos. Vendo seu pai Francisco já doente depois de operado subindo a cavalo para o Rio Preto ela admira esse exemplo de coragem, determinação e honestidade. Seus descendentes não podem deixar que seus filhos desconheçam essa história. Orgulho-me de ser filha desse homem que realmente pouco conheci como pai, já que ele pouco tempo tinha para conversar e trocar idéias com os filhos, mas que admiro de fato como homem.
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