DIAGNÓSTICO DA BIENAL DE SÃO PAULO

UM PAPEL EDUCATIVO

Paulo Menezes

O Globo, Rio de Janeiro, 31/10/1987, pg. 4


Passear pelo Parque Ibirapuera neste fim de ano em São Paulo é muito mais do que um momento de lazer. Uma parada para se percorrer os 3 andares e os 53 países desta XIX Bienal é expressão de uma tentação que rapidamente se transforma em sedução.

A mostra é plena de contrastes. O tema-referência "Utopia versus Realidade" parece ter sido suficientemente amplo para não ter atingido ninguém. Alguns comissários preocuparam-se em enviar artistas de destaque em seus países. Outros, demonstraram um profundo bairrismo, selecionando-os por critérios artísticos bem menos ortodoxos. O resultado é visível.

A sala especial dedicada a Marcel Duchamp é permeada por uma ambigüidade. Lá estão obras de importância capital, como seus ready-mades, além de desenhos, pinturas e sua obra pré-final O grande vidro. Porém, a exposição termina por formar um conjunto demasiadamente tímido, em flagrante contraste com a personalidade e as atitudes bombásticas que fizeram Duchamp famoso.

A seu lado, Peter Minshall faz , a festa. E carnaval. Suas fantasias são muito mais do que penas e purpurinas. São esculturas, hastes e panos articulados aos membros do folião, que adquirem vida, pois acompanham as evoluções dos corpos fundindo-os com dança e música em formas mutantes, explosões dionisíacas.

Nos dois outros andares, a forma de exposição, por afinidade de linguagem, às vezes cria o efeito perverso de monotonia visual. Nada que se compare, felizmente, ao corredor neo-expressionista da Bienal anterior. Mas permanece a sensação de plágio coletivo com alguns notáveis momentos de inspiração.

Como não perder o fôlego ao entrar na sala onde Anselm Kiefer expõe seus quatro imensos trabalhos que destroem a linearidade do tempo, onde o moderno, o místico, o desencanto, a angústia e uma constante atração- repulsão surgem como metáfora do cosmos. Paradoxalmente, como não ficar seduzido pela escultura- instalação hieróglifa do grego George Lappas, onde milhares de pequeninas obras meticulosamente organizadas pelo solo tomam de assalto a mente e a alma do espectador através das envolventes sutilezas de seu mappemonde?

Curioso contraste com a série Estudos da Superfície da Terra da família Boyle. O solo refeito em fibra de vidro pintada leva a ilusão a tal ponto que poucos resistem à tentação de dar uma batidinha nas obras para se certificar de que não são mesmo feitas de terra, pedras e ferro, para desespero dos vigias que se esforçam em conter a curiosidade tátil dos visitantes.

Na representação brasileira, com tantos baixos, destaca-se Dudi Maia Rosa. Fibras de vidro e poliéster impregnadas de pigmentos e pintadas, nas quais a simetria do suporte é quebrada pela textura e coloração, mantêm um mistério constante aos olhos que procuram descanso na certeza do conhecido. E a seu lado, a instalação da Casa do Pintor de Piet Dirkx, amontoado de telas dispostas sobre estrados e cavaletes, surge como paródia irônica e contundente de algumas partes desta XIX Bienal.

A Bienal é lugar único de intercâmbio entre experiências diferenciadas de artistas de vários países, é lugar privilegiado para artistas brasileiros passarem pelo crivo do grande e leigo público. Espaço que pode ser democrático para todas as tendências artísticas, que deve ser criticado e preservado. Sem esquecer também que num país como o nosso, onde a cultura da maioria chega pela televisão, carente de atividades culturais acessíveis e onde investimentos no setor são em geral computados por nossos governantes como puro e simples prejuízo, a Bienal acaba cumprindo um papel educativo, de instigação cultural em direção às formas artísticas que não têm similar nacional. Afinal, como disse Merleau-Ponty, "o olho realiza o prodígio de abrir a alma àquilo que não é alma".

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