Mudança e Psicoterapia Gestaltista
Vera Felicidade de Almeida Campos, Zahar Editores,
Rio de Janeiro, 1978
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Extrato
Capítulo I - Mudança - Descontextuamento
Dinamizador
Mudar é desadaptar-se, porque a mudança
é um movimento antitético à estabilização,
à inércia. Mudança é transformação
de quantidade em qualidade, é perceber o mundo, os outros
e a si mesmo de maneira nova. Neste sentido todos os processos
comportamentais humanos podem ser enfocados sob este aspecto
de mudança, admitindo que o comportamento humano é
sempre um movimento, convergente ou divergente, estruturante
ou desestruturante, daí a constante humana ser a mudança
enquanto ser-no-mundo temporalmente presentificado, sem apriorismos
ou metas. Estar-no-mundo implica mudar, movimentar-se, vivenciar,
situar-se no presente, no aqui-e-agora da relação
perceptiva que se estabelece com os outros, com o mundo e consigo
mesmo. Quando isso acontece somos sempre atingidos, dinamizados
pelo que ocorre, somos teses abertas a antíteses, desencadeadoras
de sinteses. Por causa disso os seres humanos motivam-se, apreendem,
desenvolvem-se, relacionam-se. (Todos os capítulos da
psicologia tradicional podem ser unificados nestes conceitos.
O desconhecido, o novo, é uma antítese que desencadeia
uma síntese; a criança vence o obstáculo,
descobre o desconhecido, apreende; estar motivado é sentir-se
questionado, solicitado etc., sempre uma antítese, uma
dinamização, um movimento.)
A continuidade da mudança é fundamental: só
com a percepção do movimento é possível
acabar com dualismos do tipo permanência versus mudança,
muito ao gosto da filosofia idealista e da psicologia elementarista.
Estar-no-mundo aberto a todas as possibilidades sem estar ancorado
na inércia das necessidades é a vivência
do homem estruturado, livre.
Comportamento humano
Qualquer comportamento pode ser entendido através do conceito
básico de movimento, à medida que consideremos
o comportamento como sendo sempre realizado em um tempo e um
espaço; a trajetória do estar-no-mundo, isto é,
o comportamento do homem, é sempre uma resultante de teses
e antíteses simultâneas, anacrônicas, parcializadas,
contínuas, descontínuas, dinâmica ou estaticamente
vivenciadas. Considerar o comportamento do homem como sinônimo
de movimento cria uma conceituação bastante abstrata
para o objetivo básico da psicologia científica
- o estudo do comportamento humano. Entretanto, este sentido
de abstração, generalização simplificada,
só subsiste se não levarmos em consideração
os referenciais do movimento, do comportamento humano.
Dotado de uma estrutura biológica, de um organismo, o
homem existe no mundo (espaço), em determinada época
(tempo), sociedade, cultura e família (contexto social,
religioso, econômico, filosófico etc.). Sua existência
começa quando, encontrando este tempo e espaço,
estes contexto s, cria relações, inicialmente de
sobrevivência. A diferenciação causada em
seu organismo por estes relacionamentos é a própria
evolução maturacional, seu processo de desenvolvimento,
aos quais corresponde também um contextuamento, uma familiaridade,
uma convivência com outros seres humanos, representados
principalmente pelos pais, família, sociedade e cultura
filtradas pelas condições caracterizadoras de cada
contexto humano[1].
Comportamento é movimento do homem. Entender este movimento
só é possível através do estudo de
sua trajetória, descoberta do campo, do espaço,
do homem no mundo, espaço personalizado que agora chamaremos
de contexto. Seu berço, sua casa, seus pais, seus irmãos,
sua mamadeira, brinquedos etc. constituem pontos que por sucessão
originam relacionamentos.
O desenvolvimento humano é uma mudança, uma continuidade
de teses negadas, antíteses afirmadas, sínteses
constituidoras de novas teses, antíteses etc; uma composição
de várias trajetórias, movimentos, um descontextuamento
e contextuamento infinitos.
Desenvolvimento é mudança
A mudança é a superação
do estabelecido, do contexto de ajuste, da realidade passada.
Mudar é atualizar-se, é descontextuar-se, é
responder aos questionamentos, aos estímulos do estar-no-mundo,
por isso o ser humano se desenvolve, evolui, cresce, muda. Nem
sempre a mudança tem o sentido evolutivo, de disponibilidade,
às vezes ela pode provocar estabilização
de comportamento. Apesar de sempre ser um descontextuamento,
a mudança pode criar manutenção, uma organização
rígida de encaixe. Basta pensarmos que, se a estrutura
estiver dividida, fragmentada ou pulverizada em situações,
sintomas, a mudança de uma região, parte, ponto
ou posição pode corresponder à neutralização
de possibilidades. Por exemplo: mudança na atmosfera familiar
- morte do pai, criando um descontextuamento econômico
além de outros; o padrão de vida familiar é
reduzido pois a manutenção da família é
feita agora através da pensão deixada pelo falecido.
Este descontextuamento, esta mudança, modifica a maneira
de perceber o mundo, a sociedade, o outro e a si mesmo, tanto
nos filhos como na mãe. Surge uma estabilização
à medida que, por uma estrutura dividida, filhos e mãe
adaptam-se ao novo padrão, justificando, tampando os problemas
da falta de capacidade para sobreviver, da falta de autonomia.
Quando o problema é transformado em justificativa, tampa
as possibilidades humanas de desenvolvimento e de capacitação
profissional, cria-se uma estabilização, uma inércia,
a estagnação; as pessoas não se desenvolvem,
não evoluem, não se educam, não reagem ao
sistema econômico alienante pois falta o chefe de família.
Situação semelhante pode ser vivenciada de maneira
dinamizadora, caso haja uma estrutura unificada nos indivíduos,
no sentido de enfrentar a mudança ocorrida. Claro que
isso não depende apenas da determinação
individual, mas de uma série de forças atuantes
na situação: condição sócio-econômica,
faixa etária dos filhos, motivação e capacidade
profissional da mãe etc. De qualquer forma, a determinação
frente à mudança, ao descontextuamento, morte do
chefe de família, no caso, é que vai determinar
os níveis de dinamização ou estabilização
da mudança. [pags. 16 a 18]
NOTA:
.1 - Conceituações detalhadas sobre o assunto
podem ser encontradas no livro Psicoterapia Gestaltista - Conceituações,
explicações sobre a gênese, formação
e estrutura do comportamento e personalidade humana aí
são apresentadas.
Capítulo II
Mudança - Descontextuamento Estagnador
Vergonha, rejeição, depressão
O não ter sido aceito pelo que se é, mas pelo que
se deve ou tem de ser, estrutura divisão, parcialização,
fragmentação. O outro é sempre percebido
como testemunha de acusação, juiz ou salvador,
protetor; o relacionamento humano assim estruturado oscila entre
esses polos básicos. As vivências são amealhadas
como comprovadoras desses aspectos. A preocupação
em ser aprovado, não ser abandonado, rejeitado, cria dependência,
pontos de apoio-opressão, estabelecem medos, culpas, timidez,
agressividade, onipotência, impotência, vergonha
etc. O significado existencial passa a ser aurido através
de atestados, flagrantes considerados positivos quando representados
pelo status valorizado de quem aceitou, pela tolerância,
complacência, compreensão, ajuda e considerados
negativos quando implicam em discordâncias, questionamentos,
aberturas e entregas afetivas não garantidas por aparências
e valores socialmente aceitos. Valorização e desvalorização
são vivências constantes, sempre centralizadas em
critérios aderentes e contingentes.Não se aceitando,
o indivíduo que é aceito, desvaloriza quem o aceita,
pensando: "Eu não presto, fulano me aceita, donde
fulano é pior do que eu". Deste silogismo primário
distorcido graças ao auto-referenciamento decorrem posições
alienantes: submissão à autoridade, despersonalização
frente ao que é valorizado, venerado, imitação
do que é considerado socialmente válido, pelo grupo,
pela família (a propósito é interessante
pensar na massificação social em função
de líderes, heróis carismáticos, superstars
etc., tanto quanto nas identificações despersonalizadoras
de filhos com os pais), a preocupação de não
ser confundido com o que é desvalorizado, de nunca estar
fora da moda, não parecer que mora no subúrbio,
não demonstrar que imita, que copia, esconder a inautenticidade
etc., constituem o cotidiano das vivências de não-aceitação.
Ter vergonha é ser pegado em flagrante, ou seja, é
demonstrar, explicitar que não se aceita o que não
se aceita. A não aceitação da não
aceitação estremece as estruturas divididas, fragmentadas,
parcializadas. É a quebra da falsa continuidade, é
a queda da máscara aceitável, da pseudofuncionalidade
e da disponibilidade aparente. É uma vivência intensamente
mobilizadora, instantânea, rápida. É uma
mudança, um descontextuamento, que logo se estabiliza,
se transforma em omissão, culpa, agressividade, impotência,
onipotência etc. A vivência do ter tido vergonha
amplia a constatação das situações
não aceitáveis, desvalorizantes. É preciso
justificá-las, explicá-las, escondê-las,
tampá-las, temê-las, controlá-las, adaptá-las
ao mundo, a si mesmo, aos outros.
Como todas as vivências, a vergonha tem níveis:
social, biológico (sexual) e existencial (relacional).
Existem regras e métodos para domesticar, controlar e
esconder a vergonha; às vezes, consegue-se até
bons desempenhos, mas no nível existencial o máximo
que se consegue é negá-la, alienando-se de sua
vivência; mas há um preço alto para isso,
que se traduz pelo aumento da não-aceitação,
ou seja da necessidade de ser aceito. Aparece a vivência
de ser rejeitado, de estar sempre deslocado, de ter sempre de
atingir, procurar, garantir, manter, agradar, ajudar o outro.
É a despersonalização utilizada como um
recurso para atingir metas, é um esforço obstinado,
um engolir constante de paus e pedras, a fim de conquistar um
lugar ao sol, de ser alguém, ter um relacionamento, uma
situação valorizada social e economicamente. Na
vivência da rejeição é frequente todo
o tipo de despersonalização a fim de conseguir
ou de manter alguma coisa conseguida. É a própria
alienação, é revolta, é agressividade,
que a depender dos contextos vivenciais estruturam a onipotência,
o oportunismo, a afirmação, a auto-imagem ilusória,
a inveja, o tédio, a repressão etc. Estar deprimido
é sentir-se achatado, esmagado pelas circunstâncias,
é perder a ligação com as contigências
responsáveis pela manutenção dos padrões
de situacionamento. Depressão é a resposta ao faz-de-conta,
ao mercantilismo transacional de compra e venda. É o esgotamento
das mágicas, é o não-saber-para-onde se
dirigir. É a vergonha diante de si mesmo, o flagrante
da constatação do vazio existencial, do nada, da
mediocridade estagnadora, da não-saída da adaptação
coisificadora. É quase que uma descoberta de que o apoio
oprime, de que o que segura afunda, de que o negado é
estabelecedor. Deprimir-se é perceber a inconsistência,
a descontinuidade do estar-no-mundo, é um momento existencialmente
válido, dinâmico, descontextuador, é uma
mudança, mas como é instrumentalizado pela fragmentação
transforma-se em um contexto, em uma forma de ser-no-mundo: a
vítima, o fracassado, o impotente, que não tem
condições de mudar embora queira, que se deprime
com o que constata, tanto quanto amealha estas vivências
no sentido de utilizá-las e catalizá-las evitando
repetições de situações para ele
desastrosas, imobiliza-se em seus referenciais.
Compromisso e autofagia
(oportunismo - vazio)
O movimento é uma constante, as demandas, as variáveis,
são inúmeras. Existem limites, tensões,
pressões, normas, regras, leis. É preciso sobreviver
e existir. Contingências e transcendências. Necessidades
e possibilidades. Tempo e espaço. Globalizações
ou unilateralizações, unificar ou dividir. Sociedade
humanizada ou de consumo. Os impasses existenciais decorrentes
de perceber o mundo, o outro como figura e colocar-se como fundo
determinante desta percepção, este auto-referenciamento
compromete a existência humana. Setoriza e maquiniza o
ser humano, levando-o à corrida desenfreada da manutenção,
do querer ser alguma coisa válida, aceita, reconhecida,
considerada socialmente. Esta busca-luta, esta alienação,
compromete. Surgem os padrões, normas e modelos de comportamento:
as metas. Empenhado nesta conquista o homem desumaniza-se, passa
a ser reconhecido pelo que o representa, por seus símbolos:
carro, roupa, status, vitórias, fracassos, sucessos, insucessos.
O comprometimento com os rótulos cria a autofagia ou despersonalização,
o vazio. O comportamento passa a ser orientado por índices,
sintomas. A capacidade de tampar incapacidades, deslocando, fazendo
de conta, criando ilusões, enganando, mentindo é
o oportunismo, socialmente valorizado como esperteza, levar a
melhor vantagem em tudo, não demonstrar fraquezas, vencer
na corrida frenética das hierarquias, conseguir, alcançar,
atingir. Vive-se para o futuro - metas. O presente é esvaziado:
é a omissão, o medo de perder o emprego, de ficar
sozinho, de ficar doente, de morrer, de ser rejeitado, desconsiderado,
de não ser reconhecido. Quanto mais se engole (autofagia),
mais se despersonaliza, mais percebe a mediocridade, a mesmice,
a monotonia de seu estar-no-mundo; esta vivência então
vira combustível para movimentar novas metas: as de salvação,
de solução, de precisar mudar. Surgem os ideais
transcendentes: religiões, ideologias, misticismos, busca
de psicoterapia, como tentativas de personalização,
redenção, portanto salvação. As vivências
são confusas devido às estruturas divididas, fragmentadas.
As motivações são hedônicas - o compromisso
tudo contamina - a ansiedade é uma constante desestruturadora.
Pânico, deslocamentos: álcool, sexo, drogas, mitos,
metas, crenças, ilusões. Consumo do que se consome,
pontualização existencial - vazio, estagnação
através do desespero alternativo, da loucura alienada,
da neurose funcional, produtiva. Desempenhos, insatisfações
sexuais, comprometimento da inteligência, raciocínio
estereotipados, conhecimentos copiados, memória descontínua,
pensamento tautológico, descontextuamento imobilizador,
insegurança, expectativas, fracassos, sensação
de tempo perdido, caracterizam seu estar-no-mundo.
Ansiedade - burocratização - angústia
Estar ansioso é presentificar o futuro através
da negação do presente, graças às
imposições do passado.
A expectativa, a não aceitação da continuidade,
a necessidade homogeneizante da realidade criam um estado de
indiferenciação perceptiva. Existe apenas a necessidade
que precisa ser atendida. Esta pontualização existencial,
esta meta a ser atingida, congestiona o estar-no-mundo, apaga
as direções e as sinalizações contextuais,
criando o provisório, o indefinido, o circunstancial.
O ser humano passa a assistir o espetáculo de seu estar-no-mundo,
abrindo mão, negando sua participação, seu
estar-aqui-agora. Esta não-percepção do
presente, esta desvalorização do vivenciado, desestrutura,
esvazia, divide. Alguma coisa tem de ser agarrada, algum ponto
de apoio tem de surgir. Expectativas, metas, volta-se para o
futuro,robotiza-se, segue esquemas, métodos, regras, para
o grande amanhã que virá. Nada acontece, o amanhã
vira hoje. É preciso não desistir, é preciso
lutar; mais métodos, regras, procura de distensionantes,
paliativos: consumos, pessoas, objetos, remédios, psicoterapias,
sexo etc. Burocratização. Tudo passa a ter uma
maneira de ser feito, uma receita. Adquirir know-how, preparar-se
para o amanhã; ansiedade, presente negado, futuro a acontecer.
A vivência contínua desta situação
esc larece; surge a sensação de repetição,
monotonia. Percebe-se o círculo, o limite. Angústia.
Percepção de seu presente através de sua
estreiteza vivencial. Aprisionado pelos padrões, pelos
rótulos, pelas regras, pela vontade de manter, conservar,
o ser humano descobre grades através das quais não
consegue atingir o outro, o mundo, a realidade, o presente, a
si mesmo. Não se sente, não se encontra, está
aprisionado em suas defesas, proteções, seguranças,
medos, impotências, onipotências, culpas, ansiedades,
oportunismos, vergonhas. Está fechado, imobilizado pela
restrição, esmagado, apertado, angustiado. Mesmo
aí, neste momento existencial de total constatação
de não-liberdade, de comprometimento, neste descontextuamento,
ele está estagnado, amarrado ao que o angustia, está
imobilizado.
Situantes do descontextuamento estagnador
Os descontextuamentos estagnadores, as mudanças que
estabilizam, dividem, fragmentam e parcializam a contínua
reversibilidade dinâmica do estar-no-mundo-com-os-outros
configuram, enquanto níveis de personalidade, problemáticas
sexuais, problemáticas sociais e problemáticas
existenciais. Não devemos imaginar estes níveis
como estratos, camadas independentes da personalidade. A personalidade
é um todo, que não é a soma das partes,
é uma interação dinâmica; daí
não existir problema exclusivamente sexual, exclusivamente
social ou exclusivamente existencial - considere-se sempre isto
a fim de que o didatismo da exposição não
prejudique a apreensão do todo humano. [pags. 41 a 45]
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