Terra e Ouro são Iguais - Percepção
em Psicoterapia Gestaltista
Vera Felicidade de Almeida Campos, Jorge Zahar Editor,
Rio de Janeiro -1993
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Extrato
Capítulo II - A Polaridade Resulta da Unidade
A polaridade resulta da unidade, o duplo é
uma expressão do uno; a divisão expressa a unidade
[1]. Dois resulta de um, pois a quantidade, duas coisas, passa
a ser dois um. Isto explica a criação das dicotomias:
tomar as resultantes como unidades que se opõem. Sujeito
e objeto são pólos de um eixo.
O pensamento filosófico/psicológico
enfocou os pólos, os posicionamentos, quebrando ou desprezando
o eixo, a relação configurativa de sujeito e objeto.
A filosofia, na busca de explicar o conhecimento,
imaginou um sujeito que conhecia e objetos que eram conhecidos.
Isto posto e aceito, surgiu o grande debate sobre quem iniciava
o processo. Era o sujeito que pela idéia criava o mundo
ou o mundo que era captado pelo sujeito? Surgiram assim as diversas
filosofias idealistas e materialistas.
Resíduos posicionantes disso são os conceitos de
idéia, alma, espírito, consciência, mente,
sensações, matéria, como explicativos desencadeantes
dos processos cognitivos.
Ao longo da história tais posicionamentos foram perpetuados
em diversas áreas. Para a psicologia sobraram os conceitos
de consciência (cogito ergo sum - cogito cartesiano) e
o de mente como receptáculo de sensações.
Já não importava saber se o sujeito criava o objeto
e o conhecia ou se o objeto impunha-se ao conhecimento, ao sujeito.
Era necessário saber como a mente trabalhava e como as
sensações se organizavam. Enfim, como a consciência
surgia.
Em meio a esses debates, novo desvio - surge Freud, o Avatar
às avessas, trazendo luzes para o mundo subterrâneo.
Ele dizia: não importa a consciência, mas sim o
inconsciente. Temos que entendê-lo, estudá-lo. Para
a psicologia restaram os padrões filosóficos, as
idéias platônicas, as categorias lógicas
de Aristóteles, as mônadas de Leibniz, o intelecto
como tábula rasa de Locke.
No início do século, os behavioristas acharam que
tudo isso era muito subjetivo, nada científico. Que só
se podia estudar o que fosse passível de objetivação,
ou seja, de mensuração. Os psicanalistas continuaram
na via régia do inconsciente.
Os gestaltistas, beneficiados por uma formação
em física, sabiam que tinham de estudar o processo da
percepção. Esse momento foi uma mudança
importante na maneira de enfocar o comportamento humano, embora
se continuasse carregando a idéia de sujeito e objeto:
sujeito como o qu e eu sou e objeto como o que não sou
eu. Por extensão, subjetivo, o que está dentro
de mim; objetivo, o que está fora de mim.
Consequentemente o conhecimento do sujeito passou a ser o conhecimento
da psiquê, do psíquico. O significado dado a sujeito
e objeto pela filosofia e corroborado pela psicologia é
totalmente anômalo, se levarmos em consideração
o sentido e significado que eles têm nas línguas,
na sintaxe. Vejamos um rápido exemplo: psicologicamente
falando, jamais uma mesa, uma cadeira, um caderno são
sujeitos; porque não pensam, não sentem, não
falam, não têm vida interior. Não são
seres vivos. Entretanto podemos dizer que na frase "o caderno
está na mesa" o sujeito é o caderno, e que
na frase "a mesa sustenta o caderno", o sujeito é
a mesa. É interessante salientar o aspecto fenomenológico
da expressão linguística como descrição
de fenômeno expressando posições. É
importante também não esquecer que Husserl, o fundador
da fenomenologia, lutou anos a fio para desfazer esses posicionamentos,
embora os percebesse de outro modo, expresso em suas explicações
sobre Noema e Noesis [2].
É muito difícil para o psicólogo dualista,
categorial, tipológico, entender o comportamento humano
sem recorrer às idéias de interior e exterior.
Ainda hoje Jung é seguido e tido como grande pensador:
ele classificava o humano em tipos introvertidos e extrovertidos.
Achava tanto quanto Freud, que a percepção é
uma projeção dos conteúdos internos do sujeito.
A própria percepção, nessas conceituações,
é um objeto. Não conseguindo globalização,
os pensadores das ciências do séculos XIX e meados
do século XX criaram muitos obstáculos, caminhos
e labirintos, enfim, não percebiam que ser sujeito ou
ser objeto é uma das possibilidades humanas determinadas
pelo contextuamento relacional.
Psicologicamente, a unidade - essência humana - configura
os pólos de sujeito e objeto, ou seja, ser sujeito ou
objeto é uma resultante de ser humano.
O que cria o sujeito? O que cria o objeto? Enfim, o que permite
a polarização? O relacionamento com o outro, com
o mundo e consigo mesmo. É o atrito, polarização
dinâmica, que configura o sujeito, que configura o objeto.
É através da percepção que se estruturam
o sujeito e o objeto. Ao fazermos esta afirmação
estamos dizendo que o ser humano não é sujeito
nem objeto, ele é ser humano que a depender da própria
percepção se configura em sujeito ou objeto, ocorrendo
o mesmo em relação à percepção
do outro - o outro, ao me perceber, configura a mim como sujeito
ou como objeto. Não há o mundo do sujeito (classicamente
configurado como subjetivo pela filosofia e psicologia) e o do
objeto, da mundaneidade. Há um ser humano que percebe,
e isso é a dinâmica relacional do estar no mundo.
As conceituações e denominações de
sujeito e objeto criam estagnações, divisões
na maneira de enfocar o homem. Essa linearidade causalista é
responsável por divisões arbitrárias, é
como se imaginássemos um peixe nadando fora d'água,
um homem podado, aprisionado a formas explicativas.
Em psicoterapia, é fundamental abolir as categorias arbitrárias
e didáticas de subjetivo e objetivo pois que elas camuflam
a essência humana. O máximo que podemos admitir
é sujeito enquanto sinônimo de desencadeante de
ação e movimento, e objeto como alvo dessa ação,
desse movimento. Mas, ao admitirmos isto, estamos eivados dos
a priori filosóficos e psicológicos, estamos pensando
em um ser humano agente. Uma mesa nunca é sujeito, sempre
é o objeto, ficando assim explícita a contradição
típica do pensamento filosófico e psicológico.
Para esclarecer, busquemos a etimologia da palavra sujeito e
da palavra objeto.
Sujeito, do latim subjectu, "posto debaixo". E objeto
do latim objectu, "pôr, lançar diante, expor".
Dá para perceber as conotações que a palavra
sofreu até significar o interno, o subjetivo, o que está
guardado, escondido, posto debaixo das aparências; o objeto
fica como o visível, o passível de ser conhecido.
O sujeito enquanto subjetividade não é passível
de ser conhecido. Era o drama da introspecção psicológica,
é o drama da psicanálise com o inconsciente, é
o desespero behaviorista que tentou cortar quaisquer categorias
subjetivas, achando que só existia o que se mostrava e
se objetivava. É o que permite à psicoterapia gestaltista
dizer que o indivíduo esta auto-referenciado (fechado
em si mesmo), tomando-se como padrão e medida de tudo,
ou dizer que ele está no mundo com o outro.
Em uma perspectiva mais abrangente de visualização
do ser humano se torna necessário abolir tais obstáculos,
tais posicionamentos de sujeito e objeto, e pensar em indivíduo,
ser humano, unidade. Vemos que essas polaridades sujeito e objeto
são configurações/posicionamentos do humano
e seria unilateralizante perceber o humano através desses
contextos posicionantes.
Tentemos explicar o ser humano explicando como ele percebe e
o que estrutura nessa percepção, a fim de entendermos
o que é sujeito e o que é objeto. O primeiro passo
é colocarmos entre parênteses o "reino do sujeito,
o reino do objeto", pois essa demarcação,
além de criar abismos para o ser no mundo, é um
eterno impasse nos relacionamentos afetivos, sociais, terapêuticos.
A mediação para a dualidade sujeito e objeto só
pode ser feita através da percepção, da
globalização de seu processo. Tentemos.
Percebo o que está diante de mim - é como se dissesse:
eu sujeito, sujeito a captar, descrever, observar o que está
lançado, exposto, o objeto. Nesse sentido, a primeira
coisa que percebo é o que está à minha volta:
é o meu corpo, é o outro. Perceptivamente destaco,
separo e/ou integro, adiciono. O desenvolvimento do ser humano
é um processo demonstrativo de estruturação
dos posicionamentos, é a clássica formação
do ego, é o clássico processo de aprendizagem.
Estruturam-se sujeito e objeto similarmente ao modelo da barra
imantada que, por atrito, cria pólos positivos e negativos
indefinidamente, mesmo ao serem cortados. O grande problema é
que toda a filosofia, toda a psicologia, enfim, todo o pensamento
científico começaram a entender e estudar o humano
partindo dessas configurações posicionadas de sujeito
e de objeto que escamoteavam a essência humana, enchendo
a abordagem psicológica dessas divisões até
o clássico corpo e mente. Um dualismo tão pregnante
que Rudolf Arnheim (seguidor da Gestalt) diz: "Se identificarmos
o ser humano com a mente, o corpo não será apenas
o instrumento primordial do homem, mas também o seu vizinho
mais próximo no mundo que o cerca. A linha divisória
pode ser traçada em ambas direções "
[3].
Ora, se o que está dentro está fora (princípio
isomórfico, Koehler), corpo e mente não existem
como realidades distintas. mente é corpo, é cérebro,
são neurônios, nervos, sinapses, engramas etc. O
homem é um organismo no mundo, uma possibilidade de relacionamento.
Ao começar esse processo de relação, de
percepção, ele estrutura níveis internos
de sujeito - escondidos, não explicitados, não
expostos - e níveis externos de objeto - explicitados
ou expostos. Em outras palavras, ele se percebe cercado de situações,
coisas e pessoas que estão junto dele, com ele ou separadas
dele, com ele ou contra ele: ele percebe semelhanças e
dessemelhanças. Surgem os significados, as valências,
os valores que vão estruturando, configurando os níveis
de sujeito e de objeto.
É interessante lembrar que dos primeiros meses de vida
até os 2, 3 anos, a criança percebe o pai, a mãe,
a mesa, a TV e a cadeira como seres animados. Tudo tem vida.
É sabido que a criança fica satisfeita quando a
mãe bate na mesa em que ela, a criança, esbarrou.
O processo natural, imanente, é o do objeto ser uma continuidade
do sujeito; os objetos são animados, personificados. É
o clássico pensamento antropomórfico ou o pensamento
animista atribuído aos selvagens. Ao crescermos, começamos
a apreender os valores, funções e significados
das coisas, passando a perceber através de categorias;
é como se o mundo fosse uma estrada cheia de sinalizações.
Pela percepção apreendemos o que está diante
de nós, agrupando por Semelhança, Proximidade,
Continuidade, Boa Forma, Melhor Direção, Closura
(Fechamento). Em todo processo perceptivo sempre há pregnâncias.
Vemos isso na percepção do corpo - mesmo que distorcendo,
achando que temos um corpo, mesmo não sentindo nosso corpo,
não chegamos a perceber que temos um corpo e que o corpo
tem um pé: percebemos o pé como sendo nosso corpo
ou a ele pertencendo (lei da continuidade). A percepção
do "pertencer a" é também pregnante na
esfera social: sabemos quais são os membros de nossa família,
de nossa comunidade, qual é nossa pátria etc; as
quebras de continuidade começam quando se quebra a unidade
e isso se dá através dos valores. O significado
atribuído às vivências cria partes, pedaços,
estrutura as adaptações e as desadaptações,
já não se desliza, já não se continuam
movimentos, luta-se por posicionamentos. Estruturam-se assim
o nível de sobrevivência e o nível de contemplação.
Ao colapsar, emperrar, fracassar na luta pela sobrevivência,
uma das tentativas para continuar sobrevivendo é buscar
conserto através de uma psicoterapia. É um dos
remédios indicados pelo sistema social [4]. O sobrevivente
ameaçado, fracassado, ao chegar nas diversas psicoterapias,
é tratado como ser humano que está em dificuldades,
precisando de ajuda, de apoio. Espera ser reorientado, absolvido,
conscientizado, direcionado em seus mapas, enfim, repolarizado
em seus desejos para que tenha uma nova visão de si mesmo.
Instala-se, assim, em definitivo o posicionamento do ser, pois
que ele é tratado como objeto - o exposto, o sintoma -que
tem que ser terapeutizado. É mais um ser capaz adaptado
e satisfeito consigo mesmo que surge, na melhor das hipóteses.
Ser capaz, estar adaptado e satisfeito pressupõe uma demarcação,
uma cerca no vazio ontológico. A necessidade de realização
já exila a possibilidade de existência, transformando
o indivíduo em um sovbrevivente bem-sucedido.
Para a psicoterapia gestaltista, o problema, a neurose, o processo,
enfim, a dificuldade de existir decorrem de uma unilateralidade
preenchida por necessidades. O psicoterapeuta gestaltista, após
a globalização da não aceitação
e do questionamento dos problemas unilateralizantes, busca respostas
à percepção do existir, sem posicionamentos,
sem valores, sem metas, tentando fazer com que o indivíduo
se torne um ser disponível independente de funções
e resultados.
Como ser disponível independente de funções
e resultados? Este é o grande quebra-cabeça da
psicoterapia e do estar-no-mundo-com os outros.
Usando uma metáfora do Mahabharata [5], é como
se o fundamental na psicoterapia e na vida fosse conseguir ver
um monte de ouro e um monte de terra como iguais: dois montes
[6]. Dedicar-se à essência e não aos valores.
A essência, no caso dos montes, é o que ocupa o
espaço, os valores são configurados na busca de
quanto vale o ocupante. A percepção de essências
substituida pela de valores atributivos leva o homem a percepções
distorcidas, arbitrárias, fazendo com que ele se pendure
nos símbolos, na importância e no significado do
percebido. Daí a luta pela sobrevivência, a competição,
a busca pela satisfação de desejos, a alienação,
a perda da dedicação, da simplicidade da existência,
enfim, do nível existencial, contemplativo, substituido
pelo de sobrevivência.
Quando falamos na simplicidade do existir, estamos falando na
recuperação de humanidade: o fato de o homem perceber
que é um corpo, um organismo, um pensamento, uma percepção,
um ser no mundo independente do que significa, do que tem, do
que faz. É o deslumbramento pelo existir em lugar da realização
da existência. É vital nos maravilharmos por existir,
pensar, perceber, dormir, amar. É fundamental contemplar
todo esse processo do existir ao invés de se deter na
caça-coleta, luta-fuga da sobrevivência. Em nossa
sociedade e em nossa cultura, não há como mudar
o estado de alienação e de sobrevivência
massificada, mas cada ser humano que se deprime, se questiona,
sofre, se naga e se angustia tem condição de mudar
ao perceber ter vivido atrás de metas, tentando galgar
posições, afirmar-se socialmente. É integrativo
perceber as possibilidades de ser sujeito e de ser objeto sem
nelas se esgotar, entendendo sempre seu comportamento como resultante:
uma explicitação da essência humana.
O posicionamento sobrevivente enquanto eu sujeito é a
onipotência. Sou capaz de resolver tudo, me questiono,
aceito que não me aceito. Compreendo os processos, faço
frente às circunstâncias. Sou terapeuta: separo
o joio do trigo. Sou o guru espiritual, estou com Deus, com os
mestres, com os orixás, entendo dos seres humanos, sei
que a vida é efêmera.
Os líderes comunitários, os salvadores da pátria,
os teóricos esclarecidos, todos conhecem a solução
e sabem como realizá-la, entretanto mantêm o compromisso
"farinha pouca, meu pirão primeiro", "a
vida é assim", "temos que manter posições
para conseguir mudanças".
Já os fazedores de dinheiro, os produtores sociais, partem
do princípio de que conseguindo um milhão de dólares,
resolve-se tudo: "temos que conseguir". Os drogados
e outsiders, por sua vez, recusam-se a manter a ordem estabelecida:
"nada tenho a ver com isto, quero mais é fazer o
que eu quero, que se dane o resto".
Os tímidos, inibidos ou fracos, que querem se dar bem,
resolvendo os problemas que impedem um relacionamento harmonioso,
também querem, também acreditam. Todos posicionados
em metas e em a priori.
Que seria o eu objeto? É o exposto, é o deslocamento
do auto-referenciamento na barganha, na crise, na angústia,
no medo, na loucura, na gordura, nos SPA, na lipoaspiração,
na droga, nas plásticas rejuvenecedoras, na fé,
na participação. É o momento de trégua,
a pausa na contínua sobrevivência. Como transcender
tais posicionamentos? Dedicando-se à vida, contemplando
a existência e integrando sujeito e objeto, o que permite
nova polarização. Enfim, a disponibilidade estruturada
através de dedicação e disciplina é
a saída, pois são estes os limites temporais do
humano - é a vivência presentificada.
Não se trata de uma cruzada pela disciplina e dedicação,
o que viraria outra regra, outro valor. Trata-se de um questionamento,
é o fazer por fazer essencial e imanente ao estar no mundo.
A sobrevivência humana configura-se quando se coloca o
para quê, o quanto vale, quando se colocam os resultados.
A disciplina e a dedicação permitem olhar o monte
de terra como igual ao de ouro e aos poucos percebem-se variações
de cor, peso, textura, vai-se notando que em um nascem flores,
em outro não, que com um se fabricam panelas mais fácil
e rapidamente, embora menos duráveis; que com o outro
as panelas são mais difíceis de fazer e duram mais.
É a descoberta. É a mudança, é a
vida.
Continuando em nossa metáfora, monte de ouro e monte de
terra, verificamos que a psicologia, a filosofia não enfocaram
o sujeito e o objeto global e continuamente, criando com tal
separação o mundo do sujeito e o mundo do objeto.
Defendiam que o sujeito era quem conhecia, quem percebia e era
complexo; enquanto que os objetos eram passíveis de conhecimento.
Condenaram a humanidade a se descobrir através do "conhece-te
a ti mesmo", das eternas interrogações, da
acumulação de objetos e de valores - é a
ganância, é a ambição. Só os
gestaltistas, com o estudo da percepção como sinônimo
de comportamento, não caíram nessa armadilha valorativa
[7]. A psicoterapia gestaltista, com os conceitos de neurose
como distorção perceptiva - auto-referenciamento
- possibilitou a percepção da essência humana
independente de seus valores e significados. Mas, apesar desses
contextos teóricos, só através da percepção
das coisas como elas são, independentes de valor e significado,
é possível existir com disponibilidade, sem apego
às situações de sobrevivência. Só
quando vivemos o presente e contemplamos o nosso passado sem
a ele nos apegar e sem dele fugir é que andamos, deslizamos
pelo mundo: o que vier será um encontro, não uma
busca. "Sem esperança, sem medo", como dizia
o pintor italiano Caravaggio (1573-1610). O dia, a noite, ontem,
hoje, amanhã, tudo uma continuidade. Prazer/ desprazer,
satisfação/não-satisfação,
trabalho/não-trabalho, ter dinheiro/não ter, enfim
quebramos os limites aprisionantes e percebemos os horizontes
infinitos do existir, do ser homem. É quando percebemos
que não há por que se esforçar, que isso
unilateraliza o viver, que a única maneira de transcender
os limites dicotomizantes - posicionantes, interruptores, separativos
- é dedicando-se a existir. Fundamental é a continuidade
do movimento do estar no mundo conseguido pela dedicação.
Já não estamos na fase de caça-coleta-posicionante.
Sendo disponíveis, realizando nossa essência humana,
quebramos os posicionamentos de sujeito e de objeto e deslizamos.
É como se, ao integrar o objeto, o sujeito se polarizasse,
passando
a ser um gerador de energia, de dinâmica,
o centro do círculo que por rotação da base
gera o cilindro ou o ponto que, dinamizando, se configura pela
sua trajetória em espiral:
Enquanto houver busca de resultados, atitude
de manutenção, avaliação de coisas
e valores, estamos emperrados, estagnados.
Psicoterapia Gestaltista Como Atrito Polarizante
- Em psicoterapia gestaltista, a primeira mudança
no chamado reino do sujeito e do objeto é o início
de unificação das dicotomias, é fazer o
outro perceber que ele é a neurose; a neurose não
é um objeto que o atrapalha. Ela é ele. É
dizer: eu não tenho uma neurose, eu sou a minha neurose,
ou ainda, os problemas, as dificuldades não são
obstáculos em meu caminho, são expressões
de minha não aceitação. Em outras visões
psicoterápicas, esse processo equivale à conscientização.
Na realidade o que ocorre é a mudança de percepção.
- Outro momento importante da psicoterapia é quando o
indivíduo percebe que se o problema do outro o afeta,
o problema é dele. Essa integração com o
objeto personifica e integra consistentemente os deslocamentos
de sobrevivência.
- O desejo de mudança, de ficar bem, está sempre
contextuado nos critérios de necessidade, na avaliação
de sobrevivência. Perceber que não se pode mudar
enquanto não se dedicar ao que obstaculiza é outra
forma de fusionar, integrar-se com o objeto.
- As queixas, lamentos, mágoas e frustrações
traduzem sempre uma impotência, um não ter conseguido,
um caminhar olhando para trás, uma vivência de memória:
é como ser parasita de si mesmo, dos bons momentos. É
o arrependimento, é a revolta. Essa onipotência
expressa a não aceitação da continuidade
do existir. (A depressão pode ser enfocada através
de tal atitude).
- Pensar, esperar, cobrar o apoio terapêutico é
querer a conivência, a ajuda para os propósitos,
para as metas, é transformar a terapia num objeto, em
tábua de salvação. Quando percebe que o
terapeuta é uma antítese, um desmascarador, um
denunciante, por incrível que pareça, o indivíduo
sente-se compreendido, espelhado, entendido - passa a haver um
fusionamento, uma integração entre sujeito e objeto,
possibilitadores de dedicação existencial contemplativa
ou de posicionamento dedicado a sobreviver, a manter o resultado
conseguido, aumentando as bases de amealhamento e garantia, pois
que o desmascaramento e a denúncia levam à mudança,
à quebra de posicionamentos ou a tentativa desesperada
de manter o que se conseguiu.
- Perceber que a grande "paixão", o "amor
da vida", nada mais é que a tábua de salvação,
o que permite sonhar, é integrativo do sujeito e do objeto,
pois permite perceber a imobilidade, o medo, a falta de disponibilidade
para a vida, para o outro.
- Perceber o outro, enquanto ele próprio, como um sujeito,
é integrativo - é como se na quebra, no relacionamento
contextuado em X surgissem novos pólos; outro sujeito,
outro objeto. Essa situação é vivenciada
no próprio processo psicoterápico. É encontrada
também nas separações afetivas se não
houver posicionamentos do tipo vítima, parasita, opressor,
oprimido, que são variantes das dicotomias sujeito-objeto.
- A percepção de que aquilo que apóia também
oprime é libertadora, integrativa.
Em psicoterapia gestaltista procuramos fazer com que o indivíduo
perceba os eixos as linhas, a continuidade, a reversibilidade,
a pregnância das situações em substituição
aos pontos de apoio, aos nirvanas desejados, aos infernos temidos,
enfim, aos posicionamentos estagnantes e aprisionantes do humano.
Essa mudança é rapidamente conseguida, embora às
vezes a quebra de posicionamentos crie o vazio, o não
referencial, pois que a não aceitação é
desumanizadora. Quando aceitamos o vazio, começamos a
viver o presente. O vazio é vazio exatamente quando não
vivemos o presente; vivemos no a priori ou na meta. A não
vivência do presente estrutura o vazio. Vivenciando o vazio,
surge outra vivência que é a do presente e isto
já é alguma coisa, já existe um tempo, uma
vivência temporal, uma vivência do presente. E com
a temporalidade começa-se a ser, a se estruturar. É
o ser no tempo. Não importa que se esteja se relacionando
com A, B ou C, mas se a relação se dá com
o seu vazio - e isto é o presente - há equilíbrio
como em qualquer relacionamento estruturante.
A vivência do vazio, sendo também vivência
do presente, estrutura. "Estrutura" está quase
como sinônimo de "individualiza". Se o ser é
ser no tempo, e se temporalidade é exatamente uma das
dimensões do indivíduo, a vivência do vazio
é estruturante. O vazio quando negado é como se
fosse um espaço - é a espacialização
do tempo. Quando a pessoa é neurótica, ela espacializa
o tempo. A vivência dessa espacialidade vai fragmentando,
comprimindo, estruturando o vazio, já que a fragmentação
vai supondo metas e a priori. Vivenciar o vazio é realizar
uma antítese. A espacialização das coisas
está ligada às funções. Em termos
de funcionamento, tudo é situado, perde-se a dinâmica:
o local do prazer é um lugar; trabalhar, só naquela
mesa. Quando as coisas começam a existir, e o vazio começa
a ser percebido, deixa de haver o vazio. Perceber o vazio é
realizar-se existencialmente, é humanização
enquanto aceitação da dinâmica, do movimento,
pois então podemos entender a quebra de referenciais alienantes
de nossa essência humana.
Perceber o vazio estabelece um limite, é como se nascêssemos
de novo, é o início do deslizamento ou da angústia,
da não aceitação. Entram em jogo os critérios,
os posicionamentos: ou se abre mão dos resultados e avaliação
ou jamais o monte de terra poderá ser visto como igual
ao de ouro. Surgem então divisões em relação
à terapia. Recriam-se os níveis de sujeito e objeto
como definidores do ser. São impasses existenciais, são
impasses terapêuticos. É o processo de estar no
mundo. É a adaptação à não
transformação que vai gerar novos dramas piores
que os anteriores, pois que agora o indivíduo está
adaptado a não se transformar, a manter. É como
se sujeito e objeto aparentassem integração. Quando
começa a se transitar nesse reino, os castelos caem, são
necessários muitos vassalos, escravos, é o parasitismo
oficializado. É a dependência, matriz geradora dos
sobreviventes. A super-mãe, o grande pai, o patrão
legal, o grande amigo, o terapeuta compreensivo e solícito
etc., são estruturados, constituindo-se em posicionamentos
desumanizadores. [pags. 23 a 39]
NOTAS:
[1] - É pelo fato de a divisão expressar a unidade
que se torna possível a realização de psicoterapia
gestaltista. Quando um ser humano está dividido, fragmentado,
existe sempre a possibilidade de unificação, uma
vez que em sua divisão subsiste a unidade essência
humana.
[2] - Noesis é o ato pelo qual se pensa. Noema é
o que é pensado. Husserl tinha seu pensamento orientado
para o problema da correlação do sujeito e do objeto
no ato do conhecimento, passando assim de um certo realismo eidético
para um idealismo transcendental. Mais radical que a dúvida
cartesiana, a redução fenomenológica consiste
em colocar entre parênteses a atitude natural, ingênua,
da consciência, afirmando espontaneamente a existência
do mundo, e em isolar o dado natural, contingente (o mundo exterior
e o eu empírico) do eu puro, do sujeito ou ego transcendental.
Modelo de toda evidência original e necessária,
a consciência pura se descobre como "intencionalidade",
fonte de toda significação, pois que constituite
do objeto. Sua análise eidética permite precisar
modalidades de consciência: consciência perceptiva,
consciência imaginativa etc. Insistindo sobre a experiência
fundamental e original que o sujeito tem do outro e fazendo da
intersubjetividade o próprio fundamento da objetividade
do mundo, Husserl evitou o solipsismo para onde arriscava conduzir
o idealismo transcendental. (Traduzido do Petit Robert 2, Dictionnaire
universel des noms propres, Paris, 1990).
[3] - Arnheim. R., Intuição e intelecto na arte,
pag. 133.
[4] - As buscas "transcendentais" de explicação
para os dramas da sobrevivência também são
caminhos recomendados - é o "cuide de sua energia",
"entenda a sua escolha cármica", "afaste
seus obsessores que lhe atrapalham", "limpe seus caminhos"
etc...
[5] - Mahabharata - grande poema épico indiano com cerca
de 120 mil versos divididos em 19 livros. É uma obr a
coletiva, antiga da época védica, cerca de 1.000
anos a.C. e continuada até o sec. VI de nossa era. Ele
conta de uma maneira heróica e lírica as aventuras
de cinco irmãos enfrentando a inimizade de um rei de um
clã rival e a guerra entre clãs indo-européias
na bacia do Indo-Ganges, de suas lutas intestinas e das que tiveram
de sustentar contra as tribos dravídicas que na época
ocupavam o território. O Mahabharata é também
uma espécie de enciclopédia dos conhecimentos sagrados
e profanos dos indo-europeus, indianos, dessa época. O
grande poema filosófico Bagavad-Gita faz parte do sexto
livro; provavelmente foi acrescentado posteriormente aos outros
episódios. O décimo-nono livro é também
uma interpolação tardia, conta os mitos referentes
ao Deus Krishna. O Mahabharata foi muito divulgado e conhecido,
tendo sido traduzido e interpretado em todos os paises que sofreram
influência indiana. Serviu de fonte inesgotável
de temas e inspiração para a literatura e as belas-artes.
(Traduzido do Petit Robert 2, Dictionnaire universel des noms
propres, Paris, 1990).
[6] - "A renúncia é o trabalho desinteressado.
A verdadeira renúncia é a renúncia do desejo
e nada mais que isso. A ação é o único
meio de alcançar o yoga da renunciação,
uma vez que se consegue, a serenidade vem por si mesma à
mente. Os prazeres que surgem do apego são apenas fonte
de dor posterior, têm um princípio e um fim. As
coisas que têm princípio e fim, nunca são
fonte de eterna alegria e o homem sábio deveria evitá-las.
Quando um homem chega ao estado em que o frio e o calor, o prazer
e a dor, a honra e a desonra lhe parecem iguais, sempre está
sereno. Um monte de terra, uma pedra, um monte de ouro lhe parecem
iguais. Não pode ver diferenças entre amigos e
inimigos, entre gente indiferente e gente parcial nem também
entre gente malvada e gente justa. Este homem é grande".
(Mahabharata, vol. 2, cap. 3, pag. 668)
[7] - Quando os gestaltistas estabeleceram o conceito de Meio
Geográfico - o meio tal como a ciência o descreve
- e Meio Comportamental - o meio tal como o indivíduo
o percebe -, quando disseram que as estruturas (gestalten) neurológicas
são iguais às psicológicas ou ainda "o
que está dentro está fora" - princípio
isomórfico - e quando, através do Princípio
da Contemporaneidade, Kurt Lewin disse que o presente modifica
o passado, que o que ocorre modifica o que ocorreu, obtiveram
uma visão global e unitária dos processos psicológicos
humanos sem a priori causalistas, deterministas e reducionistas;
atingiram assim a essência humana, sem atribuições
valorativas.
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