DANÇA DAS HORAS

Em 1995, lancei meu primeiro livro individual DANÇA DAS HORAS. Humor, euforia, ódio, reflexão, dor, saudade, ciúmes e mistério se alternam entre 17 contos e crônicas, nos quais a assanhada Maria Rita, o ciumento Henrique, o tristonho solitário, a desatenta Filomena e outras personagens vivem situações reais e fantásticas, levando o leitor ao mundo mágico da literatura.

Roberto Miranda

CONTOS E CRÔNICAS DO LIVRO
Necessidades Fisiológicas
A Infiel
Lembrar Dói?
Vazio
Escuridão
No Banco da Praça
O Menino e o Cão
Assalto ou Estupro
Escrever?
Maldita Viagem!
Filomena Augusta
Macho Pra Cachorro
Dança das Horas
A Sirigaita
Lembranças
E os Dólares?
Se é Natal.
NECESSIDADES FISIOLÓGICAS
A conferência do ilustre doutor em Qualidade Administrativa estava excelente. Dominando com profundidade o assunto, pude observar que todos estavam de olhos fixos no palestrante. O auditório estava repleto e havia muitas pessoas de pé.
Tudo estava ótimo até que comecei a sentir uma "dorzinha" conhecida, manifestada em meu abdome. Em princípio, achei que não insistiria e poderia aguardar o final da reunião. Porém, a intrusa viera para ficar e não parecia querer que me aprimorasse em Qualidade Administrativa, mas que mantivesse o meu "know-how" em tiros curtos para o sanitário.
Não havia mais como adiar o desfecho daquela sensação e, então, resolvi concordar com os caprichos do intestino e buscar alívio para seus males. Olhei à direita, e seis cadeiras ocupadas me barravam a saída. `A esquerda, a situação se complicava: dez cadeiras e duas pessoas de pé, no corredor lateral. Senti inveja das moscas, pássaros e todos os bichos que voam. Seria tão mais fácil sair voando! Ninguém seria incomodado, e eu estaria livre. Meu distinto amigo não queria saber dos problemas que o cérebro tentava solucionar. `A semelhança das crianças que rolam no chão e gritam quando querem alguma coisa, meu amigo contorcia-se e provocava ruídos de invejar um leão e que a vizinhança externa poderia notar, não fosse a concentração ante a palestra. Decidi ir pela direita. Enfrentaria os seis inimigos do meu alívio com firmeza e coragem. Ao erguer-me, notei que vários pares de olhos me observaram, desaprovando minha atitude. Percebi que incomodava e até fiz menção de voltar à posição anterior, contudo meu intranqüilo amigo ameaçou-me asseverando que, se ficasse, resolveria a questão ali mesmo. Diante de tão convincente argumento, pus-me a caminhar pela lateral, "suplicando" aos colegas que me deixassem passar e pedindo desculpas pelo transtorno. Procurei não olhar para as pessoas, pois temia não conseguir avançar e alcançar meu objetivo.
Cheguei ao corredor principal, porém ainda não estava livre. Faltava subir a rampa até a porta de entrada e procurar o famigerado local. A situação estava trazendo ensinamento importante: procure sentar-se próximo à porta de saída, de preferência perto do corredor. Não me esqueceria de tão sábio conselho, afinal a atuação de meu "insistente amigo" já era motivo bastante para a lembrança.
A distância até a porta não me parecia um tiro curto, como pensara anteriormente: entretanto, maratona dificílima. Correria todo o globo e não alcançaria a longínqua porta. Alcancei. Ufa! Boa parte do problema foi resolvida, o que não significava estar próxima a solução final. Olhei ao redor e não vi nenhuma indicação do utilíssimo servidor das necessidades fisiológicas do homem de bons hábitos, moderno. Não era possível que ele não existisse. Estaria em algum lugar e precisava encontrá-lo depressa, antes de "sinistra ocorrência" em minhas calças novas, de puro linho Braspérola.
Para minha sorte, encontrei um recepcionista circulando na área e obtive as coordenadas do encontro: "dobre à esquerda; siga reto; segunda porta à direita". Não agradeci ao benfeitor, pois meu desesperado amigo me dera um ultimato - Agora ou já!
Não mais andava. Corria velozmente, fazendo inveja a qualquer atleta dos cem metros rasos. Vi, então, a seta, indicando-o e entrei em disparada. Abri a porta do "closet", desci as calças e ... Ah! senti-me nas nuvens! Se os serafins e querubins sabem o que é tranqüilidade eu também sabia! Meu amigo, até então intransigente e agressivo, mostrava-se agora feliz, diria mesmo, agradecido pelo esforço. Pensei em dizer-lhe para agradecer às pernas e aos pés, já que heróis foram eles.
Tudo estava resolvido. Ficaria alguns minutos mais ali sentado, caso houvesse algum rescaldo do incêndio a ser apagado. Ouvi passos se aproximando. Nada de anormal nisso, uma vez que o local era público e de uso geral de todos os necessitados. Estranho era o barulho dos passos. Os homens, geralmente, temos um passo firme, decidido, o que não correspondia ao que ouvia. Entretanto, o que estava eu a pensar? Que coisa mais antiga? deixe o mancebo andar do jeito que quer! pensei.
Não bastasse compartilharmos o mesmo ambiente, o desconhecido se dirigiu ao compartimento vizinho ao meu. Um aroma adocicado de perfume penetrou por minhas narinas. Ou meu nariz de perdigueiro estava enganado, ou eu tinha uma "boneca" ao meu lado. Permaneci quieto. Até que notei ter meu vizinho se sentado no trono sagrado. Qual não foi minha admiração ao ver, por debaixo da divisória que nos separava, a estampa de sua vestimenta: flores de todas as cores e matizes. Intrigado observei melhor o traje. Não era uma calça, era uma saia! como poderia ser isto?!
A resposta à minha pergunta veio em seguida, quando ouvi vozes do lado de fora da porta. Duas pessoas conversavam animadamente, e não havia dúvidas de que eram do sexo feminino. Conclui, então, que meu vizinho não era "ele" e sim "ela" e que eu estava no sanitário feminino. Era perfeitamente possível que tal fato acontecesse. Afinal, em minha busca tresloucada, não observei o indicativo da porta de entrada.
O susto ajudou meu algoz a terminar a tarefa para a qual me trouxera àquele lugar. Não o perdoava pela falseta.
O cérebro, porém, trouxe-me de novo à razão e expôs com clareza o problema: como sair dali? Pensei em levantar-me e retirar naturalmente, insensível aos olhares curiosos de minhas prováveis observadoras. Não, seria o caos! Que diriam os outros colegas que vieram para a conferência se soubessem do fato? Não, definitivamente, não! Seria uma zombaria para o resto da vida. Poderia, talvez, explicar-me diante das amigas do lado de fora de minha clausura. Pior! Não iriam acreditar em mim, e era certo que sairia surrado dali. A vergonha seria ainda maior. Apanhar de mulher num lugar daquele?! e o escândalo? Já via as manchetes do jornal: "Tarado disfarçado de executivo testa a qualidade das mulheres na privada". Era o meu fim! Senti novamente inveja dos seres alados. Como seria feliz se fosse um deles!
A autopiedade não durou muito. Decidi tomar uma atitude: aguardar a saída de todas as "donzelas" e, furtivamente, sair. Ninguém haveria de me ver, e somente eu saberia do ocorrido.
Assim o fiz. Apurei o ouvido e, ao notar que ninguém se encontrava ao redor, saí. Dirigi-me para a pia, a fim de lavar as mãos, num gesto involuntário. O senso de segurança falou mais alto: vale mais a mão suja, que a honra. Saí, silenciosamente, pela porta não vendo nenhuma pessoa. Graças a Deus! pensei.
Dei alguns passos em direção ao auditório, buscando continuar meu aprimoramento em qualidade administrativa, quando ouvi um chamado:
— Psiu!
Voltei-me para trás: uma senhora grisalha, baixinha e de grandes olhos azuis. Era familiar a estampa jovial em seu vestido; percebi que estava diante de minha recente vizinha, quando ela pronunciou a sentença:
— Enrustido, hein?!
Senti que as faces coraram e me esforcei por esboçar um sorriso que não apareceu.
Dei meia volta e prossegui a jornada em direção ao auditório, decidido que, na próxima visita ao médico, solicitaria uma operação curiosa na medicina: implante de rolha.
NO BANCO DA PRAÇA
Já era tarde, e o sol se retirava do céu, deixando que a lua fizesse sua aparição. O horizonte avermelhado tinha um ar de tristeza, solidão, nostalgia. Poucas andorinhas brincavam no ar, com alegria de crianças nos piques. Contemplei-o mais uma vez e, enquanto me sentava no banco da praça, um tom violáceo começou a tomar-lhe conta. Era a noite que vinha. Ergui a gola da camisa para proteger o pescoço do frio. Esse meu inimigo parecia não compreender os limites de sua alçada, invadindo os espaços entre os fios dos tecidos, roubando-me o calor do corpo. Não passava das cinco e meia, e as pessoas procuravam o abrigo de suas casas depois de mais um dia de trabalho. A minha era defronte a praça e de onde estava podia vigiar-lhe a imobilidade. O televisor e o sofá se miravam, exceto por uma pequena mesa entre eles. Na outra parede, uma gravura: a mulher de olhos acinzentados, com uma parelha de cavalos na altura dos seios. `As vezes, sentia que me olhava; outras, eu o fazia, procurando desvendar-lhe os segredos. Jamais obtive êxito, embora continuasse tentando. O quarto, à distância, convidava a deixar o frio lá fora e entregar-me ao seu aconchego. Não queria ir. O banco estava confortável apesar de tudo.
Olhei ao redor e vi flores de diversos tipos e matizes, desde dálias às amarelas margaridinhas. Tive vontade de tocá-las, sentir-lhes a maciez e o cheiro, mas não me movi. Afinal, poderiam não gostar. Do outro lado da rua, um garoto vestido em trapos revirava as latas de lixo de uma padaria, disputando migalhas com os vira-latas famintos que o cercavam. Talvez fosse a única refeição deles no dia. Almocei macarronada com farto queijo parmesão sob o molho e bebi vinho branco. O garoto parecia ter encontrado um pacote de pães envelhecidos e o abria com fúria, vigiado pelos olhares atentos dos companheiros de infortúnio. Os olhos brilhavam, e todos demonstravam contentamento com latidos, risos, pulos ... Aos poucos, afastaram-se até sumir na esquina.
Continuei contemplando a paisagem, e observei uma velhinha conduzida por moça que, dadas as feições e à idade provável, semelhava ser sua neta, ou parenta de outro grau. A idosa vinha curvada sobre o próprio corpo, a mão esquerda sustentada por uma bengala e o braço direito amparado pela garota. Caminhava devagar, procurando firmar, com segurança, um passo de cada vez. Os óculos não escondiam a miopia avançada, e o grisalho dos cabelos assinalava longa existência. Tentei imaginá-la jovem como eu. Teria ficado sentada naquela praça vendo as pessoas passarem? Experimentou frio e tristeza tal qual sentia? Não pude confirmar. Mas ali estava ela, caminhando.
A noite caíra rapidamente, e a luz artificial iluminava a calçada. Poucos carros circulavam, já sem pressa, com velocidade necessária para que os ocupantes apreciassem o trajeto. Alguns diminuíam a marcha e me observavam. "Que estariam olhando? sou diferente de alguém?", pensava. Sentia-me invadido na quietude, na solidão, no momento do "eu comigo". Será que entendiam o que estava sentindo?
Procurei não pensar no assunto. Encolhi um pouco mais as pernas, unindo-as para melhor defender-me do frio, enquanto esfregava as mãos contra o forro do bolso do casaco. As seis horas foram assinaladas pelo relógio da praça, o qual tinha quatro faces, sustentado por alto obelisco. Servia-me dele para regular os horários de saída e chegada, já que o meu teimava em ser mais veloz que Khronos. Ouvi ao longe o som da Ave-Maria de Gounod. De certo vinha da igreja no final da rua. Por um instante, recordei a infância e o ato de minha mãe ao fazer o sinal da cruz e orar a Maria. Era o horário consagrado a Ela, e eu A respeitava. Senti pena de mim mesmo e como se estivesse mirando o meu próprio corpo, estando fora dele, vi-me sentado naquele banco, sozinho, triste. Os olhos marejaram, e não fosse o barulho de passos em minha direção, teria chorado com vontade.
Recompus-me depressa, secando com as mãos a água nascente. À direita, sentado ao meu lado estava um padre. Sim, ao menos vestia-se à semelhança dos sacerdotes. A batina cor de terra, bastante surrada, trazia na cintura cordão grosso preso no lado esquerdo. Os cabelos, os poucos fios que lhe restavam, eram de branco alvíssimo e de textura idêntica à da barba. Mantinha o corpo curvado e olhava para o chão. Também dirigi o olhar para o ponto em que se fixava, porém meus olhos desviaram-se para seus pés. Estava descalço e na ponta dos dedos que deveriam ter unhas apenas manchas negras se formavam.
— Perdi-as na peste. O frio e a doença deixaram apenas os dedos. Elas não tinham utilidade. Afinal, necessário era ajudar os pobres infelizes que gemiam de dor - informou, como se advinhasse meus pensamentos.
Ouvi a explicação, desviando os olhos para seu rosto. Havia enigmática sensação de alegria em sua face. Embora maltrapilho, exalava cheiro característico de flores silvestres misturadas com mel, ou algo parecido. Hipnotizado, não movia um músculo e também faltavam forças para fugir dele.
— Os enigmas da vida são simples de ser decifrados. As pessoas são livros abertos ao entendimento de cada um. Basta que se lhes veja com os olhos do coração e ... - fez um gesto com as mãos, como se abrisse um espaço no ar - descortinam-se suas vidas, seus sonhos, seus ideais, seus medos ...
Estranho ouvir tudo aquilo e permanecer quieto. Não era de meu feitio deixar de participar de um colóquio filosófico tal qual aquele que se iniciava. Em outra situação, externaria meu conhecimento da Bíblia, da sabedoria dos gregos, do ... Mas meus lábios relutavam. Com desespero de estar encarcerado em meus pensamentos, lutava debalde contra o próprio imobilismo. "Por que esse homem está me dizendo estas coisas?" , perguntei a mim mesmo.
— Só sofremos quando nos desgarramos do rebanho que busca os pastos do amor, da concórdia, da paz, da ajuda mútua - relatou - a solidão e a tristeza são companheiras daqueles que se elegeram como os únicos a ser importantes. Enquanto se navega em torno do próprio coração, perde-se a oportunidade de encontrar belos portos no íntimo do próximo.
Agora ele estava-me invadindo! Como poderia analisar minha solidão? Como poderia saber o que sentia? Tinha motivos de sobra para estar melancólico, e não cabia a ninguém julgar-me! Longe dos meus e perdido em terras distantes e geladas, sentia o frio e a dor da ingrata companheira. Era justo ficar só e viver esse momento. "Respeite-me!", pensei.
Todas as colocações que fiz ficaram restritas ao burburinho da mente. Externá-las seria uma dádiva, se o aparelho vocal não tivesse silenciado ante a presença do estranho.
— Não há porque julgar as pessoas. Somos o que fomos e seremos o que formos. A nós está reservada a avaliação dos atos e ações que praticamos. Vemos nos outros muito do que somos, mas procuramos nos anestesiar desse conhecimento, para que, penalizados com nossa dor, choremos sobre o egoísmo imperador da inatividade. Ninguém está só, quando se dedica a alguém mais. - Levantou-se e caminhando lento, desapareceu na esquina onde tinha visto desaparecer o garoto e a matilha que o seguia.
É tarde! O céu, de violeta vai-se tornando púrpura, e do púrpura, negro. São seis horas. Seguro nos braços um bebê, deixado pela mãe à porta dum orfanato. É hora do banho e ele sorri para mim.
Não estou só!

bobfields@tba.com.br

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