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AS ÚLTIMAS ORIENTAÇÕES DA CIÊNCIA

Pietro Ubaldi

1951

    A ciência se nos apresenta como uma psicologia de prudência e de desconfiança, que penetra no desconhecido dos grandes planos do ser, sobre terreno inseguro, que ela de contínuo prova e comprova experimentalmente. Avança, desse modo, por tentativas e incertezas, lentamente, por hipóteses e teorias mas, graças a seu método, seus resultados são positivos, controlados, aplicáveis a todos. As últimas verdades que a intuição apreende, através de lampejos, lhe escapam; são na maior parte uma meta desconhecida e distante. Mas, embora desconhecida, é dela que a ciência tenta se avizinhar, através da descoberta e da coordenação de verdades parciais, e isso por aproximações sucessivas.

    Tal a forma hoje assumida pelo pensamento humano, em seu desenvolvimento, forma, aliás, relativa, que exige se abstenha de tomar como definitivos e como base de orientação filosófica os últimos resultados que, pouco a pouco, são e foram sempre superados. É a última verdade alcançada que modela o pensamento coletivo, porque é a que mais o impressiona. A antiguidade foi dominada pela concepção platônica e aristotélica e, em seguida, pela agostiniana e tomística. Mais tarde, a ciência objetiva e experimental suplantou a especulação abstrata. Mas, depois, a física clássica de Laplace, Galileu, Kepler e Newton e a concepção mecanicista do mundo também foram superadas pela hodierna física estatística ou quantística de Plank. E, assim, esta será igualmente superada.

    Outrora, acreditava-se somente na lógica e desprezava-se a experimentação, como um contato susceptível de viciar o puro pensamento. E, todavia, a lógica, embora perfeita em si mesma, não pode superar sozinha a função de coligar. Ela é fortíssima corrente que, se não tiver um sólido ponto de conexão, nada pode sustentar. Assim é, também, em sua mais elevada expressão, a matemática. Desse modo, a ciência materialista tem avançado e, desmaterializando a matéria, superou todo o seu materialismo. Ela mesma, que é hoje racionalmente positiva, não pode progredir senão fiando-se no método irracional da intuição, isto é, criando, além de toda lógica e método, com o surpreender relações impensadas entre os fatos e os conceitos mais distantes. É na conexão entre experiências e na visão de seu significado que lampeja a intuição da lei que as regula, e no descobrimento das relações, cuja análise racional não basta. E nisso consiste muitas vezes a descoberta. Surge então a hipótese, como tentáculo para sondar o mistério. Depois, é ela desenvolvida em teoria e só então começa a trabalhar a psicologia racional da ciência que controla, com a observação e a experiência, para confirmar ou condenar. Se os fatos dão razão à nova teoria, então a velha se esboroa e é abandonada ao seu fim. E assim, lentamente, se encaminha para a verdade.

    A força do positivismo consiste no manter-se em contato com a realidade, convertendo-se em fiel observador desta. Exige-se, não à lógica, mas à experiência, uma resposta aos nossos quesitos. Interroga-se insistentemente acerca de qual é o pensamento diretivo que, oculto, rege os fenômenos, de vez que não se pode deixar de admitir por toda parte um princípio diretivo e ordenador. A ciência tão pouco pode interrogar Deus, desde que lhe são desconhecidos os contatos do místico. Nada mais lhe resta, pois, que apreender aquele divino pensamento através de Sua manifestação concreta, nos fatos, dado que Ele, pelo menos no plano físico, não se exprime senão através de formas concretas e da ação. O certo é que além das medições necessariamente sensórias e, portanto relativas, embora aperfeiçoadas, deve haver uma realidade verdadeira e profunda que escapa à ciência. Esta nada mais pode fazer que tornar mais poderosos e mais exatos os seus meios de indagação, mas abstratos ou independentes destes e dos sentidos os seus métodos ( operações matemáticas puramente formais), menos antropomórficas as suas representações. Diante da realidade, qualquer medição é algo mais que um fato simples e objetivo; é a resultante de um processo de ações e reações entre fenômenos, meios de indagação, órgãos sensórios e psique do observador. De modo que a ciência, progredindo, acaba por negar sua objetividade, devendo considerar toda observação como a de um fenômeno entre muitos outros e todos em relação de interferência. Não é que o fenômeno perca consistência objetiva e se reduza a um complexo subjetivo de percepções, de modo que, suprimidas estas, o fenômeno não subsista por si só: as próprias metas distantes da ciência, que ela ainda não vislumbra e para as quais, todavia, tende, porque em essência estão no caminho, são de caráter filosófico, metafísico e espiritual; uma realidade experimentalmente incontrolável. Quantos limites, pois, à objetividade do positivismo! Quanta incerteza no registo e interpretação de um mundo real suposto na profundeza, além das aparências sensórias! Como estabelecer exatas relações entre o mundo experimental dos sentidos e a ignota e recôndita realidade? E como atingir uma realidade absoluta, independente dos sentidos humanos? Por outro lado, tem-se exprobado esta ciência, por ser eminentemente utilitária. Mas, devemos também reconhecer que, se foi criada a ciência, isso se deve ao utilitário espírito humano. Nas origens dela estava a necessidade de orientar-se na navegação, de medir um terreno, de curar uma doença, de defender-se em todo campo. O que vale, mais que a exatidão da verdade de uma idéia é, muitas vezes, sua fecundidade.

    Da pesquisa absurda de uma pedra filosofal e da transmutação de metais em ouro nasceu a química; a procura do moto-contínuo contribuiu para descobrir os princípios da dinâmica. Mais tarde, da idéia de velocidade absoluta da Terra nasceu a teoria de Einstein; e do conceito astronômico do átomo de Bohr nasceu a física atômica. A própria história da ciência é semelhante à história de todos os acontecimentos humanos: termina muitas vezes com o atingir um ponto onde jamais se propusera chegar. Tudo passa e muda na vida. Muitas filosofias dominaram e, depois, caíram no olvido para, em seguida, renascerem mais amadurecidas. A metafísica, que há um século dominava, perdeu seu prestígio e assim o positivismo de hoje será ultrapassado amanhã. Tudo passa, desaparece e retorna, semelhante às ondas do mar. Entrementes, tudo se renova, permitindo que se lancem novas pontes de pensamento, se estabeleçam novas conexões com fatos remotos, antes concebidos, refazendo no futuro, em novos campos, o que havia sido feito no passado, para chegar até aqui, ao que é hoje conhecido, antes inexplorado.

    Nenhuma descoberta cria coisas novas, pois que tudo já existe, mas apenas estabelece novas relações entre as coisas, dando-lhes novos significados. Assim, muito da civilização moderna consiste na multiplicada possibilidade de permutas e de relações. Assim é que através das hipóteses de trabalho, fatos antes desconexos vêm a formar uma teoria, isto é, uma coluna de pensamento consolidada pela experiência, ou, enfim, um organismo lógico, revelador de uma unidade diretora ou lei cada vez mais vasta. Assim é que a ciência, a passos lentos, mas seguros e cautelosos, procura reconstruir gradativamente, sobre o plano do conhecimento humano, a profunda ordem divina que está nas coisas, em uma cada vez mais perfeita imagem científica do mundo. Eis que através de sua exaustiva indagação, executa, com sacrifício, o mesmo trabalho de reunificação do todo, que está na base das ascensões humanas. Desse modo, como atrás expusemos, em relação a outros campos, o progresso da ciência também representa o retorno do ser à fonte una que a tudo gerou. Neste sentido, “A Grande Síntese”, que jamais se propôs realizar novas e particulares descobertas, realizou, no entanto, aquela de conjugar em uma unidade os mais díspares fenômenos. Fazer de um amontoado de materiais um organismo é verdadeira obra de criação, como o é a hodierna formação das grandes unidades sociais em que cada um dos componentes vem a gozar de uma vida mais elevada, em poder, utilidade e amplitude.

    Vejamos, pois, que nos diz a ciência em relação a supracitada visão, enquadrando isso no sistema universal de “A Grande Síntese”, sem o que ele só é compreensível no particular. O princípio das unidades coletivas aí exposto ( capítulo XXVII ) implica o de uma escala de formas hierarquicamente ordenadas no sistema do universo, em que a superior compreende a inferior, que se organiza com outras semelhantes, em uma síntese mais elevada. Esta é uma unidade coletiva que tem a função de coordenar as atividades de cada uma das menores unidades componentes, rumo a novos fins, que transcendem os de cada uma delas, individualmente, e isso sempre segundo o conceito, já aqui exposto, do universal princípio unitário e da tendência unificadora por ele impressa em todas as coisas. Esta coordenação é uma questão de relação, segundo a qual os indivíduos componentes modificam seu valor, tornam-se mais poderosos, como é lógico, porquanto a unificação é retorno a Deus, isto é, reaproximação ao centro genético. De sorte que o reagrupamento coletivo tem ação amplificadora e o poder aumenta com a unificação, hierarquicamente, de grau em grau, em unidades orgânicas cada vez mais vastas. Atualmente, vários cientistas já sobrepõem ao mundo físico-químico o mundo biológico e a este o mundo psíquico e espiritual. Trata-se de planos de existência, em que as leis do plano superior dominam e guiam as dos planos inferiores. Cada plano tem um limite além do qual, em um nível mais alto, as suas leis, embora subsistam, não valem senão em função de uma lei superior e por si só não são suficientes para explicá-la, nem para dirigir a nova unidade.

    Ora, dada essa estrutura hierárquica do universo, toda unidade é sempre coletiva, isto é, formada de menores unidades componentes, coordenadas em um organismo, de modo que a observação, toda vez que enfrenta uma individuação, acaba por decompô-la analiticamente nas menores unidades componentes. Toda unidade é, pois, sempre uma síntese e é analiticamente decomponível em unidades menores, que a seu turno são sínteses maiores em face de unidades-síntese menores e sínteses menores em face de unidades-síntese maiores e, assim, ao infinito, de ambos os lados. A observação pode assim mover-se em duas direções: a analítica, que vai para as sempre as menores unidades componentes, ou a sintética, que vai para as maiores unidades resultantes. Agora a ciência objetiva parte de um dado plano de unidades-síntese, admitido axiomaticamente a priori, e obtido pelos meios sensórios de sua observação. O trabalho desse plano em seus elementos componentes. Por essas razões, a ciência é analítica. Essa direção lhe foi dada pela estrutura mesma das coisas. Partindo da matéria, unidade sensória para o homem, a ciência lhe penetrou a estrutura molecular e atômica. Com isso, porém, percorreu-se apenas um mínimo trecho do caminho, em descida, como fez o materialismo, mas o caminho é sem fim, quer na direção descendente da análise, quer na ascendente de síntese. Dizemos descendente, porque é na direção da análise que se avança para a pulverização periférica centrífuga do Uno na forma, e dizemos ascendente porque é na direção da síntese que se avança para a reunificação centrípeta da substância no Uno. E o caminho sem fim pode ser percorrido, não só em direção analítica, como fez a ciência, senão também em sentido oposto, na direção sintética. E então, em vez de penetrar na estrutura atômica da matéria, poderemos conhecer as unidades-síntese superiores, como por exemplo pode ser o organismo múltiplo humanidade ou sociedades de humanidades e suas almas coletivas.

    Ora, o observador não é exterior ao fenômeno e distinto dele, mas é um fenômeno no fenômeno. Sua posição está em um dado nível da hierarquia ou escala evolutiva e deste ele pode olhar em torno, no próprio plano, ou de baixo para os superiores, ou do alto para os inferiores. Assim, sua indagação pode hierarquicamente descer, por via da análise, ao particular, ou subir, po via de síntese, ao universal. O pensamento humano tentou umas e outras vias, as primeiras com o método indutivo e as segundas com o dedutivo. Ora, o princípio da relatividade de Einstein, na dependência do sistema de referência escolhido, é aplicável também a este caso pelo observador, conquanto além da trajetória típica de um desenvolvimento fenomênico haja também a do transformismo dele, como há um semelhante transformismo também no fenômeno representado pelo observador. E, então, a descoberta científica pode ser realizada não só pela projeção do olhar indagador do observador a um ou outro plano, mas pela transformação evolutiva, isto é, biológica do observador mesmo. Eis, assim, justificada a afirmação freqüentemente feita nestes escritos, de que o maior progresso no conhecimento resultará sobretudo da transformação do homem atual, no hiperpsíquico tipo biológico do futuro. E assim poderá a ciência avançar também por desenvolvimento das qualidades sensórias e psíquicas do homem. É evidente que toda a perspectiva do conhecimento atual poderá mudar, quando se mudar o ponto de vista, por diversa posição biológica do observador.

    É certo que o nosso mundo sensível, do qual deriva também sua interpretação científica, é um mundo sensório e relativo. Sentimos axiomaticamente que, além, deve haver uma realidade frente à qual é ilusório o que registramos. Indagando em todo campo e evoluindo, procuramos aproximar-nos cada vez mais desta realidade, com uma interpretação cada vez mais exata. Decompondo analiticamente com a observação uma unidade-síntese em seus elementos, a ciência transporta para o relativo grandezas anteriormente consideradas últimas e absolutas. Assim, recua o absoluto, à medida que ele é conquistado. Cada conquista, embora pareça a última em profundidade, é sempre uma conquista de síntese, atrás da qual se esconde a possibilidade de ulteriores conquistas de análise, reveladoras de outras leis mais particulares. Mas, será ilusória nossa conquista, só porque é progressiva e, com relação à verdadeira realidade, nos oferece uma realidade relativa? Não. No âmbito de seu campo relativo, ela é absoluta, no sentido de que ela constitui exata representação de uma dada unidade-síntese em seu plano, e verdadeira só no seu plano. É saindo deste plano que ela, observada sob outros aspectos, se torna ilusão. Mas, para os materialistas e os seres materiais, a matéria é realidade absoluta, pelo menos enquanto eles permanecem naquele campo e vêem com os olhos daquele plano. Desde, porém, que o transcendam, aquela realidade se torna relativa e desvanece-se na ilusão. Cada mundo se torna uma ilusão, desde que seja encarado de mais alto. E então procuramos realidades mais elevadas, peculiares a unidades-síntese mais vastas que, superando-as, abracem estas nossas realidades de relação. Efetivamente, é nas unidades-síntese maiores que podemos encontrar a lei compreensiva das menores, em que elas se coordenam e onde as diferenças, que as tornam reciprocamente relativas e ilusórias, são superadas e conciliadas. Tudo isso não passa de uma tendência, um avanço para uma última realidade de vastidão infinita, que compreende todas as outras. Ela é, no entanto, um infinito e, como tal, inacessível, segundo suas dimensões, à nossa atual capacidade cognitiva.

    Vejamos o que, a propósito, diz a ciência, no campo mais concreto da física. Ela confirma plenamente esses conceitos. Acenamos atrás para o fato de superar a concepção mecanicista clássica do mundo, na moderna física estatística e quantística. Descobrindo a estrutura atômica da matéria e concebendo-a, não mais segundo as leis dinâmicas, mas segundo leis estatísticas, a ciência moderna, que parece haver demolido suas concepções precedentes, confirmou plenamente os conceitos atrás expostos, isto é, o princípio da unidade coletiva, de unidade-síntese analiticamente decomponível, de hierarquia de unidades e de leis, de pulverização no particular da unidade do universo, de uma progressiva divisão e complexidade no relativo, ao polo oposto do outro extremo do simples e do uno no absoluto. A teoria da relatividade, de Einstein, e a hipótese dos quanta, de Plank, que revolucionaram a ciência, confirmam esses conceitos. Expliquemo-nos.

    Provou-se recentemente que os movimentos brownianos, descoberto em 1827 pelo botânico inglês, Brown, são resultantes da estrutura molecular da matéria, segundo a qual as invisíveis moléculas de um líquido ou de um gás, colidindo-se com as microscópicas partículas aí suspensas, lhes comunicam um movimento irregular. Depende este da distribuição assimétrica das colisões ocasionadas por aquelas moléculas. Chegou-se, desse modo, pouco a pouco, a provar o caráter descontínuo de grandezas antes julgadas contínuas. Concebida, assim, a estrutura atômica da matéria, a física clássica parece esboroar-se para dar lugar a uma física quantística ou estatística, em que dominam, não mais leis dinâmicas, mas leis estatísticas ou de probabilidade, não mais reguladoras de um caso individual, mas de inumeráveis processos individuais; leis que governam uma multidão de acontecimentos, na qual desaparece o indivíduo. Assim, a ciência superou a antiga interpretação mecanicista do mundo. Não mais propriedades que se definem deterministicamente, mas probabilidades que regulam as variações no tempo, segundo leis estatísticas relativas a grandes aglomerados de indivíduos.

    O aperfeiçoamento alcançado pela moderna técnica experimental permitiu descobrir esse mundo que, sem destruir o precedentemente conhecido, parece novo, porque está além dele, mais abismado em seu íntimo. O que constituia o objeto da física clássica eram apenas as já mencionadas unidades- síntese, cuja composição acabou por ser revelada, mediante uma análise mais avançada. Tomara-se, antes, como princípio último e definitivo, inderrogável e absoluto, aquilo que mais tarde se evidenciou ser a resultante de inumeráveis e livres irregularidades individuais compensadas, de modo que se revelaram, não as características do caso isolado, mas aquelas dominantes no conjunto. Estamos na primeira fase de penetração analítica da unidade-síntese e, por isso, o caso isolado não é ainda atingido como isolado. A observação serve-se hoje, em física, do método estatístico das coletividades, segundo o qual se calculam os valores médios probabilísticos, ao invés dos exatos para cada momento e cada partícula.

    Se tomarmos para exame um centímetro cúbico de ar, não poderemos por certo calcular, segundo a velha dinâmica, as trajetórias e as colisões de cada uma dos vinte e cinco trilhões de moléculas ( oxigênio e azoto). Semelhante exame é inexequível, já porque demandaria um tempo imenso, já porque as moléculas são extremamentes pequenas, numerosas e animadas de velocíssimos movimentos. A quantidade de moléculas contidas em um grama de hidrogênio pode ser expressa pelo número 303 seguido de 23 zeros. A massa de uma molécula de hidrogênio é de fantástica pequenez, ou seja, 0,000.000.000.000.000.000.000.0033 ( trinta e três octilionésimos ) de grama. Poderemos agora observar as moléculas em suas qualidades coletivas de unidades-síntese, sem que ocorra reconhecer o comportamento de cada uma. Poderemos assim conhecer a pressão do gás, calculando a velocidade média de cada molécula e desta obter aquela pressão, isto é, o efeito da soma de todas as colisões produzidas por estas moléculas contra as paredes do recipiente. E o cálculo que exprime, não o caso isolado, mas o resultado coletivo resulta exato, porque contra cada centímetro quadrado de parede colide um tal número de moléculas ( cerca de duzentos quatrilhões de colisões por segundo ), que na prática resulta uma pressão constante, cuja grandeza depende do impulso médio de cada molécula em separado. Nos grandes números, as irregularidades individuais desvanecem-se numa regularidade coletiva sobre que justamente se baseiam as leis descobertas pela física clássica.

    Ela se baseava sobre experiências de caráter macroscópico, o que significa uma grosseira visão de conjunto, que não penetra absolutamente na estrutura analítica da unidade-síntese e não chega a abranger os processos de dimensão hipomicroscópica que ocorrem no átomo. Uma vez que se aperfeiçoe a moderna técnica científica, a sensória observação humana pode penetrar nesta estrutura analítica e deve contentar-se com resultados gerais de conjunto, sem nada conhecer do caso insulado, como acontece no uso das estatísticas que conhecem o andamento geral do fenômeno, nascimentos, mortes, calamidades, etc., sem nada conhecer do caso particular e isolado. Ora, uma ciência que trabalha sobre resultantes gerais de conjunto, constrangida a abstrair-se de uma realidade que se afasta cada vez mais na profundidade e com a qual perde cada vez mais contato, se de um lado se liberta de contaminações antropomórficas, do outro deve trabalhar e construir no vazio, em forma de abstração matemática, para somente depois procurar concordar os resultados com a realidade experimental. É assim que a nova física deve confiar muito nos matemáticos, que trabalham sobre conceitos que não são os da concepção sensória corrente. E a alta matemática já está bastante próxima da especulação filosófica. Hoje, pois, não somente a matéria é concebida como pulverizada em sua estrutura atômica, mas também toda representação antropomórfica e sensória do mundo desaparece totalmente. Se isso, por um lado, leva a ciência ao princípio ordenador de um organismo universal, cujo grandioso funcionamento ela vê cada vez melhor, por outro lado lhe mostra igualmente que o princípio do universo, Deus, está, assim, além de nossas concepções antropomórficas, que para o homem se perde no inconcebível.

    Agora podemos perguntar-nos: teria a moderna e mais profunda penetração analítica em um mundo fenomênico mais íntimo demolido verdadeiramente a física clássica e suas concepções? O fato de a ciência, mais panorâmica, sensória e rude, escavando em profundidade, além da fisionomia exterior dos fenômenos, haver descoberto um mundo com leis diversas, não pode anular o valor das leis precedentemente descobertas, que subsistem, conquanto adquiram um valor relativo com respeito a outros planos de existência e permaneçam absolutas em relação ao seu. É certo que o mundo hipoatômico não funciona como o mundo macroscópico. Naquele plano mais profundo, ele já não é uma grande máquina, regida por absoluto determinismo, e os elementos individuais surgem independentes e livres. Assim aparecem, segundo a nova física, os quanta de ação. E, todavia, é possível obter de uma tal desordem hipomicroscópica uma indiscutível ordem no plano macroscópico, qual o é aquela concebida pela física clássica. Isso porque as regras que esta chamava de leis, conquanto não passem, em realidade, de regras estatísticas formuladas a posteriori, como resultantes gerais de conjunto, não permanecem, por isso, menos verdadeiras. Apenas já não aparecem como férreo determinismo, mas qual mera regularidade estatística que, se no plano macroscópico conservam o valor e a verdade de leis naturais, no plano hipomicroscópico repousam sobre o acaso ou sobre liberdade dos atos elementares. Mas, nem por isso são menos válidas do que antes. E, se dizemos acaso para os atos elementares, isso é porque a ciência ainda não revelou, nesse campo, as leis inflexíveis e eternas que devem vigorar em um plano mais profundo do que o macroscópico. A concepção estatística de tais leis nada mais é que a primeira fase de aproximação no conhecimento delas.

    A certeza das leis do mundo macroscópico é dada pelo grande número dos elementos e ações componentes; é dada por uma repetição preponderante em um dado sentido, de uma maioria de casos. Mas, que é o que forma esta reguralidade estatística senão aquela repetição de casos? E que é, então, o que determina esta repetição? Se jogarmos um dado que seja perfeito, cada valor sairá mais regularmente um sexto das vezes, quanto maior for o número de jogadas do dado e isso em virtude da lei dos grandes números. Mas, se o dado apresentar um defeito, quanto maior for o número de jogadas, tanto mais claramente este defeito se manifestará nos resultados. Então, a lei macroscópica está inscrita nas qualidades dos singulares componentes e a regularidade estatística nada mais fez que revelá-la. O conteúdo das leis estatísticas mais não é que a revelação da natureza dos elementos individuais. É nas qualidades da maioria dos casos que está escrita a lei que, embora se nos manifeste agora como expressão de características mais íntimas, não perde por isso as características precedentes. Se o ato isolado depende de uma lei mais profunda que, embora nos escape, chamamos de acaso, ou livre comportamento, a lei coletiva exprime e revela as qualidades dominantes, nos casos individuais. Nem por isso permanece menos absoluta hoje que é concebida como lei estatística, antes que como lei dinâmica. O conceito de necessidade absoluta não fica, pois, absolutamente excluído, como se tem acreditado, da moderna física estatística, a qual permanece determinística, como a clássica. Não fica, assim, absolutamente lesada a necessidade que tem a física, como qualquer outra ciência, da premissa segundo a qual existem leis absolutas e reguladoras. Ocorre apenas esta diferença com a física clássica: que, tendo focalizado a observação num plano mais profundo, hoje pode considerar-se secundário ou derivado o que antes se considerava primário ou fundamental. Assim, as leis naturais da ciência clássica não são abolidas e, conquanto nos apareçam agora como leis estatísticas, relativas ao plano macroscópico, distintas das do plano hipomicroscópico, nada perdem por isso de sua existência.

    Para compreender, podemos referir-nos analogicamente aos fenômenos sociais em que reencontramos a mesma relação pela qual o funcionamento do organismo coletivo é dado por leis precisas que se exprimem estatisticamente, enquanto em seu âmbito o indivíduo, regido por outra lei, se sente livre. O organismo coletivo, nesse caso, é também dado por características dominantes em cada um dos componentes, por valores comuns, enquanto se eliminam as diferenças infinitesimais. Vemos que aqui o princípio das unidades coletivas se manifesta o mesmo, desde o plano da matéria até o humano, com as mesmas características. O que se disse do plano físico ( organismos de átomos ) e agora do plano social ( organismos de seres humanos ), pode também repetir-se para o plano biológico ( organismos de células ), etc.

    Quando as unidades individuais já não são observadas singularmente, mas coletivamente, em conjunto, isto é, quando a observação é conduzida, não segundo a maneira microscópica, mas segundo a maneira macroscópica, aparece então uma lei nova em que as características de minoria, dadas pelas diferenças individuais, são eliminadas, desaparecem e manifestam-se somente os caracteres predominantes e comuns. Triunfa, então, sobre a minoria dos casos divergentes a maioria dos casos concordantes. Além da lei do individual aparece, então, a lei do grupo, em que os indivíduos se fundem por homogeneidade de caracteres. Na mais vasta lei da unidade-síntese, é reabsorvida a lei de cada uma das partículas unidades componentes. Na visão panorâmica, diluem-se os particulares e o indivíduo sobrevive, não como tal, mas como síntese. As duas leis são, como os respectivos planos, contíguas, embora diversas. E como cada unidade coletiva é a resultante de seus elementos componentes, assim cada lei de cada plano é a resultante das leis dominantes da maioria dos casos individuais. Assim, quanto mais analiticamente se desce ao particular, tanto mais se vai para a diferenciação dos princípios diretivos; e quanto mais sinteticamente se sobe para o universal, tanto mais se vai para a unificação e extensão dos princípios diretivos. Também neste campo da Lei, eles são hierarquicamente conexos, segundo os planos evolutivos do ser. Assim é que, acima do espírito, há uma infinita hierarquia de leis que nos escapam, como no infinito da matéria há outra infinita hierarquia de leis que não conhecemos.

    Destarte, a visão antes sentida sob forma filosófica e mística agora se prolonga idêntica, sob forma científica. E eis que o ponto clássico ou eletrônico, que se move no espaço, já vai concebido pela ciência como um feixe de ondas; eis que aquilo que se considera o último e indivisível elemento da realidade é, depois, decomposto ainda em menores elementos componentes. Assim, segundo a física mais recente, este último termo da realidade nada mais é que uma concentração de energia ondulatória, tanto mais facilmente e exatamente localizável, quanto mais diferem entre si as freqüências componentes do feixe de ondas. Com uma freqüência única não é possível nenhuma localização, porque uma onda única não se distingue, em ponto algum, de uma uniforme intensidade. Este elemento pode, pois, deter-se aí onde numerosas ondas de freqüência variadas interferem entre si, de modo a se aniquilarem reciprocamente em qualquer parte do espaço, e a se distinguirem como sistema autônomo só em redor de um determinado ponto. Ora, dado que a função da onda é determinável segundo regras de cálculo bem definidas, resolvem-se, adotando-as, algumas dificuldades, como as do elétron incidente, só assim divisível em mais ondas incidentes, explicando por tal modo o seu comportamento quando isolado, percute numa lâmina de cristal.

    Tal é a substância representada, segundo a ciência moderna, pelo elemento fundamental da realidade. O extremo corpúsculo material, qual o elétron, dissolve-se em ondas; a substância fundamental, material de construção do edifício das coisas, é um puro campo eletromagnético, dado que estas ondas não têm necessidade de apoiar-se em nenhum substrato material, sendo concebidas só como modificações periódicas. Já não se sabe dar a tudo isso qualquer significação física real, mas somente aquela lógica de representar a possibilidade matemática de que o elétron se encontre, naquele instante, naquele determinado ponto do espaço. A solidez do mundo físico é, pois, inteiramente sensória e se reduz a alguma coisa que está assás distante da realidade física, isto é, de uma probabilidade matemática. Eis em que coisa se converte a matéria, por obra da própria ciência materialista. A série estequiogenética revela-nos como foi decomposta a matéria em 92 elementos. Em seguida, foi decomposto o átomo, à guisa de sistema sideral, em partículas dotadas de carga elétrica. Agora essas últimas partículas de substância são também reduzidas a determinações formais de processos ondulatórios, de modo que da substância nada mais resta que uma expressão matemática, isto é, simplesmente variações dos fenômenos, sem que haja algo que exista e persista por si só fora destas. De fato, não se pode admitir uma substância absolutamente neutra, sem suas propriedades, as quais não poderiam deixar de influir sobre os processos que lhe são pertinentes. De modo que no vértice da ciência da matéria permanece apenas uma ciência de relações, um mero processo lógico. Assim, tende ela a conceber que a última substância é exclusivamente pensamento, o Deus transcendente, assim como a compreender como pôde esse puro pensamento criar, como expressão sua, o Universo.

    Assim, a moderna mecânica ondulatória no estudo das ondas não considera um substrato físico, mas só as leis formais do fenômeno, de modo que a física pode hoje prescindir da referência a um substrato ou meio. Este poderá existir, como um "quid" que ocupa contemporâneamente espaço e tempo; todavia, não se sabe hoje como conhecê-lo. E assim a física o estuda como relação, no seu comportamento e não em sua essência. Assim, para prosseguir em seu trabalho, a ciência e seu sistema se tornam independentes e já não têm necessidade, para funcionar, desta incógnita que foi excluída de suas equações. Destarte, tudo parece evaporar-se no nada. Mas, nem por isso a ciência identifica o mundo com o nada, pois crê que algo o distinga deste. E isso é um "quid" objetivo, independente do sujeito cognoscente que não é o ponto de partida das coisas. Mas esse "quid" não é, por certo, a matéria. Esta se dissolveu e, com ela, a concepção materialista e isso precisamente ao longo da linha do realismo e não ao longo da de um absoluto idealismo.

    Demonstra-nos isso que o materialismo levado a maiores profundidades confunde-se, por fim, com o espiritualismo. Desapareceram assim muitas distinções, como física e dinâmica, matéria e vida, etc.; tudo se torna, como já afirmei em "A Grande Síntese", a expressão de um mesmo princípio cinético. No fundo de tudo resta apenas um "quid" que transcende o campo da física e se estende no campo abstrato do puro pensamento e que, todavia, pode assumir aquela forma sensória que denominamos matéria. Para a ciência hodierna, o "quid" desconhecido é aquele campo absoluto do puro pensamento. Mas, um dia ela verá que o pensamento, de Deus ao homem, é criativo, é uma transcendência em que está latente toda imanência; é a potência genética de cada manifestação concreta sua.

    Agora podemos compreender como o mundo que chamamos real e como tal se nos apresenta seja, além do limitado ponto de vista sensório, uma ilusão e podemos compreender também como possa esta realidade, que é uma síntese, dissolver-se toda através da análise, e como aquela, que vemos como estabilidade da matéria, não passe de uma estabilidade abstrata, isto é, princípios imateriais que a regem, o pensamento, enfim. Aconteceu assim, como tem acontecido ao mal e a todas as formas de erro que, com o progresso da ciência materialista, o materialismo se autodestruiu. Se ele ainda impera em nossa vida prática, o mesmo não ocorre no pensamento diretivo, onde ele já foi superado, porquanto esta última interpretação do elemento extremo da realidade atualmente conhecido, o elétron, é verdadeiramente uma ponte lançada pela física no campo do espírito. A ciência encontrou no fundo da matéria uma onda, uma vibração, algo que pode constituir o elemento construtivo, seja da matéria, seja da energia, seja do espírito. Encontrado esse denominador comum, ficamos assim de posse dos elementos fundamentais para demonstrar o físio-dínamo-psiquismo monista de "A Grande Síntese".

    Concebida assim a matéria segundo a física moderna, já não ocorre dificuldade para conceber o espírito conjugado e subjacente à forma material, dotado de potência criadora. Observemos agora a mesma realidade, não mais com o olho analítico da ciência, mas com o olho sintético de quem sobe ao longo dos planos do ser, ao longo das grandes construções da arquitetura do universo. Prossegue a visão, não mais em direção ao mundo físico, mas em direção ao mundo espiritual. Ela se dilata em uma concepção cosmogônica em que a matéria aparece como uma organização elementar e por sobre ela estende-se uma hierarquia de formas de existência superiores em complexidade e potência construtora, entre as quais vem primeiro a energia e depois o espírito. Assim como a energia representa o princípio criativo e diretivo da matéria, assim também o espírito representa o mesmo princípio para a energia e, portanto, para a matéria. Cada plano depende hierarquicamente do plano evolutivamente superior, e por este é dominado. Assim, a vida organiza no mais complexo nível de química orgânica a mais simples química inorgânica, como esta organizara os átomos em moléculas, etc. Assim, o espírito constrói o seu organismo com os elementos preparados pelo mundo biológico. Do espírito e de além deste sobe-se para Deus, em domínio e potência criadora. A criação desce, assim, contínua, de Deus, mas de plano em plano, através de meios de potência diversa, que são instrumentos proporcionados ao divino trabalho criativo que por meio deles se executa. Mas, os seres, embora como operários, colaboram à guisa de canais através dos quais se realiza a criação e se exprime a manifestação de Deus. Por sua vez, o ser ascende, e evolver significa também tornar cada vez mais real o pensamento de Deus; significa dar forma a qualquer coisa de verdadeiramente novo como forma e manifestação, se bem que tudo já exista latente em Deus. Assim, a criação é contínua, porquanto não se pode manter sem criar e manter é criar, e Deus a opera através de suas criaturas. De modo que, quanto mais sobe o ser, tanto mais criador se torna, porque tanto mais se avizinha de Deus e tanto mais se assemelha a Ele. Assim, o homem torna-se cada vez mais partícipe da divina atividade criadora, que nele e por meio dele cria. A criação é atual e assim é que Deus transcendente se torna também imanente no contingente, que não pode estar além Dele, que deve ser tudo. O homem que cria no pensamento já opera fora do espaço e do tempo e nisso é ele o ser terrestre que mais se aproxima de Deus e o primeiro artífice de Sua criação na Terra. Sua atividade intelectual e espiritual é obra diretora dos planos subjacentes a ele, da qual está, de direito, investido, dada a sua posição hierárquica no universo. O criador das obras do pensamento é o ser que na Terra mais se avizinha de Deus.

    É assim que o espírito tem verdadeiramente potência criadora, no sentido de que plasma, organiza e mantém em vida, na forma desejada, tudo quanto existe nos planos inferiores a ele. Mas, não significa isso que o mundo tenha existência só enquanto constitua pura criação subjetiva do espírito individual. O mundo, já o dissemos, tem existência objetiva, independente do sujeito pensante. Ora, como se conciliam as referidas opostas afirmações? Mas, sobre a Terra não há somente pensamento humano. Ele pode dirigir sua vida e qualquer coisa semelhante, mas não todas as vidas, as quais presidem outros pensamentos. Não é o pensamento humano a única força diretora do planeta. Dessa potência criadora, própria do espírito, pode-se todavia deduzir tudo aquilo com que, por meio dela, pode a simples presença do observador interferir no fenômeno. O observador é, por tudo quanto faça, absolutamente diverso do que é posição neutra de pensamento expectador, mas será ativo, será uma força que não pode deixar de influir no fenômeno.

    Atingido o termo desta visão, podemos perguntar-nos: chegará a ciência a dar-nos uma concepção do mundo exaustiva e demonstrada, em todos os campos, coordenando organicamente a tudo, o que sabemos e o que saberemos, em uma síntese universal? Certo que chegará e por isso já urge compensar o atual e divergente trabalho racional de análise com seu oposto e convergente trabalho intuitivo de síntese. Hoje em dia, já não se pode fazer uma filosofia ou explicar uma religião, sem a ciência. Hoje já não se admite o pensador isolado de todos os ramos do saber humano; ele deve conhece-los a todos. Importa descobrir as relações que façam do conhecimento disperso um todo orgânico. É necessária, por isso, uma obra criativa de intuição reveladora de uma idéia que, sem representar nenhuma das idéias particulares, tomadas em cada campo, consista numa nova, a da coordenação delas, o que significa criação de um organismo novo, de uma potência muito maior do que a dos componentes individuais tomados em conjunto. Não são, inclusive em física, as fórmulas e os complicados processos da matemática que criam. Eles apenas demonstram. O que importa são as idéias fundamentais, filhas de intuições, das quais depois nascem as teorias. Na origem destas encontram-se as idéias e não as fórmulas. Somente depois é que aquele pensamento deverá tomar a veste matemática de uma teoria quantitativa ao cabo do controle experimental. Assim como na história temos o período clássico e o romântico, a guerra e a paz, a revolução e reconstrução, em biologia o macho e a fêmea, em física o núcleo e os elétrons e, em astronomia, o sol e os planetas, porque tudo é bipolar e avança primeiro por lampejos de intuição criadora e, depois, por paciente controle analítico e racional, assim também a elaboração racional da mais árida ciência pressupõe, como ponto de partida, o seu oposto, e esse ponto de partida é uma fé. E que é uma hipótese de trabalho senão um ato de fé?

    Trata-se de antecipar e, sem fé, não se antecipa. Poderá chamar-se fantasia, intuição, mas estamos sempre em um campo suprarracional, onde só pode irradiar a primeira centelha. Assim, a ciência, que foi inimiga da fé - mas não o será sempre - nasceu da fé e não pode nascer senão dela. Se a observação não é assim fecundidade, se os dados da experiência não são coordenados pelo espírito, tudo se tornará material desconexo e a ciência jamais saberá concluir. Ela não constitui somente observação, mas também síntese das observações. Assim, só uma grande fé é criadora em qualquer parte, inclusive no campo da ciência. É esse o impulso que sustenta o homem por toda parte, até no emaranhado das áridas fórmulas matemáticas. Assim, qualquer obra, ainda que tecnicamente imperfeita e parcialmente errada, pode ser frutífera e produtiva, desde que sustentada por uma grande fé, de que só pode nascer a genial intuição. Entende-se com isso uma fé livre, espontânea e sentida. O próprio cientista, que deve indagar sem preconceitos, não pode ligar-se à priori, por absolutismos dogmáticos, a nenhum campo. A fé orienta, impulsiona, aguça os sentidos e gera a intuição, faz ver o essencial em um mar de particularidades. Assim, o matemático encontra e formula um novo teorema antes de estar em condições de demonstrá-lo. A ciência nasceu da fé em uma ordem racional do universo. Assim, o cientista, de início mantém-se no habitual terreno da experiência e da realidade dos fatos e os respeita, baseando-se neles como primeiro fundamento sem o qual não se faz ciência; mas, depois, só a fé poderá dar-lhe asas aos pés, no áspero caminho.


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