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A PERSONALIDADE HUMANA E O PROBLEMA DA HEREDITARIEDADE

Pietro Ubaldi

1951

    A personalidade humana é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo, isto é, um equilíbrio e um desequilíbrio. Do movimento das duas partes, uma para a outra e uma contra a outra, nasce aquela elaboração por meio da qual se evolui. As duas partes são amigas e rivais, atraem-se e repelem-se, aproximam-se e afastam-se, estão conjugadas para viver juntas e, mal se enfraqueça uma, a mais forte predomina e invade o campo da outra. As raízes do psiquismo imergem mui profundamente nos misteriosos meandros da estrutura orgânica. E podemos dizer também que as causas e as razões da estrutura orgânica remontam muito alto no campo do psiquismo. O mistério do espírito estende-se até as profundezas da célula, cuja complexa estrutura conhecemos.

    A vida pulsa de um a outro polo, da inconfundível individualidade sintética e unitária à extrema ramificação sensória, à infinita multiplicação celular, à analítica e ambiental pulverização fenomênica. O eu é duplo, não só no centro, senão também na periferia, aqui, analítico, para captar e assimilar experiências, acolá, sintético, para resumi-las e destila-las em suas qualidades. No centro, permanece idêntico a si mesmo, um eu inconfundível; na periferia, flutuante, entre mutáveis experiências. A corrente se move em dupla direção: o mundo interior se nutre das vibrações provenientes do mundo exterior e este é dominado e modelado pela vontade daquele. O funcionamento celular ressoa no funcionamento psíquico e este se reflete naquele. O eu é concebível como centro, somente enquanto lhe é conexa a idéia complementar de periferia. Assim, a personalidade espiritual pode aparecer como uma síntese de inteligências celulares e o oceano dos mínimos órgãos celulares, até o átomo e seus elétrons, pode aparecer como um veículo daquela personalidade, como corpo, veste da alma. O espírito, desde que está no centro, está igualmente em cada ponto da periferia; é, a um tempo, o centro e a periferia.

    Observemos, pois, o problema da personalidade humana. A evolução biológica resulta de uma dupla e inversa evolução: a material terrena e a espiritual ultraterrena e se efetua através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e de vida contemplativa. Quem executa o trabalho e como se divide ele? O espírito, de sinal positivo, é como o macho, dinamizante e está à testa da evolução. Para ele convergem as experiências da vida. Com estas, ele se elabora e, conseqüentemente, elabora também o seu corpo, aperfeiçoa-o e desmaterializa.

    O espírito evolve para planos cada vez mais rarefeitos e, nesta ascensão, atira para trás o seu veículo material, isto é, faz para si progressivamente corpos cada vez mais sutis, adaptados à sua fase evolutiva e a relativas formas de vida. Compreende-se que, para poder lidar com a experimentação, tem o espírito sempre necessidade de um corpo, qual outro extremo do binômio, não importa que esse corpo venha a ser desmaterializado até o ponto em que pareça incorpóreo. Ele é sempre um veículo proporcionado, como delicadeza e sensibilidade, ao grau de evolução atingido pelo indivíduo que, por seu peso específico, se equilibra, escolhendo um ambiente onde as provas são proporcionadas às qualidades por ele alcançadas.

    O organismo corpóreo, de ondas longas e de baixa freqüência, segue pois o espírito, que, evoluindo, avança para o alto, isto é, aproxima-se, a um tempo morrendo e renascendo, do extremo oposto, de ondas curtas e alta freqüência, e transforma sua vibração na deste último tipo; ou, em outros termos, espiritualiza-se. A corrente de vibrações que sobe da multiplicidade das experiências sensórias até convergir na síntese do espírito, administra as forças para o trabalho; mas, ao mesmo tempo, uma paralela corrente de descida, do espírito para o organismo, investe este último com tipos de energia cada vez mais elaboradas, isto é, de ondas cada vez mais curtas e de freqüência cada vez mais alta, de modo que assim, lentamente, se eleva o potencial de toda a personalidade, de um a outro de seus extremos, inclusive em sua parte física.

    Dessa oscilação de atividade, conexão e repercussão de forças, deriva a evolução. Conquanto caiba, dentre os dois princípios, ao ativo a execução desta ( evolução ), aí ocorre também sua contraparte, o princípio negativo, sem o qual faltaria ao primeiro a matéria por plasmar, a substância com que construir. Reencontramos nesse caso a mesma distribuição de trabalho que existe entre macho e fêmea. O organismo físico recolhe e acumula, o espírito dinâmico elabora e avança. O primeiro, engordando, torna-se lento e vegetativo, e, mal haja alcançado a satisfação dos instintos da conservação e reprodução, sente-se farto; o segundo consome a vida vegetativa para criar mais no alto, martela e atormenta-se na ânsia de evoluir. Tal é, pois, a dupla face da vida.

    Mas o dualismo espírito-matéria não é suficiente para exaurir o problema da personalidade. Esta contraposição entre periferia e centro, entre as correntes de ascensão e descensão, segundo a qual se distribui, entre os termos positivo e negativo, o trabalho da evolução, não é a única polaridade da vida. Superposta a esta, que poderia ser representada como bipolaridade vertical, em que a matéria está evolutivamente em baixo e o espírito no alto, poderia imaginar-se uma bipolaridade horizontal, em que o princípio biológico positivo derivado do núcleo do gameto paterno, ou espermatozóide, e o princípio biológico negativo, derivado do gameto materno, ou óvulo, estão situados à esquerda e à direita daquela bipolaridade vertical. A consciência humana é, pois, um concerto em que se reune uma orquestra de vibrações provenientes, em feixes, destas quatro grandes vias determinadas pelos dois binômios cruzados. Eis o de que somos constituídos, o de que somos filhos e pais. Somos constituídos deste conjunto orgânico de forças e correntes, ou seja, de algo muito mais complexo e extenso que a simples carne de nossos progenitores, embora ela tenha vivido muito e em si traga escrita a sua história. A personalidade humana abrange os dois binômios, isto é, contém em si quatro elementos que têm necessidade de fundir-se e todavia lutam por sobrepujar-se, dois desequilíbrios de forças à procura de equilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de sensação. Deles derivará, segundo maior ou menor concordância, um estado de maior ou menor aquiescência, ou de maior ou menor contraste e potência criadora e, das notas baixas às agudas, uma gama de ressonâncias e riqueza de sentimentos, mais ou menos extensa e profunda.

    A personalidade constitui o campo de batalha destas forças, que nela se contêm, as quais tanto podem ser sonolentas e concordantes, como impetuosas e discordantes, de modo a fazer daquela personalidade um explosivo. Pode ela assim aparecer-nos sob muitos aspectos, segundo as suas várias posições, que vão de um extremo, representado por um estado de inerte pacificação, a outro extremo, que é um estado de violento dinamismo criador, derivado de um desequilíbrio que, se não se souber dominar, pode precipitar na loucura. O gênio foi aproximado desta, não porque os dois extremos tenham algo de comum, como estado e resultados, de vez que nunca foi mais profunda a diferença entre os dois termos, mas porque o desequilíbrio originário do dinamismo criador de um está a um passo da derrocada espiritual da outra. Mas, a superioridade do gênio está precisamente na potência de domínio e de coordenação das próprias forças de que demonstra ser sempre senhor. Domínio e coordenação muito mais fáceis para o normal dotado de muito mais escassos recursos. Seja, porém, como for, o segredo da vida, considerando-se esses elementos constitutivos da personalidade, consiste no saber encontrar o acordo.

    As correntes de vibrações que percorrem nossa personalidade derivam, pois, de quatro fontes que representam quatro mundos, quatro sínteses resultantes de um longo passado. São elas:

  • 1°) O eu espiritual ou eterno;
  • 2°) O ambiente terreno;
  • 3°) O elemento paterno;
  • 4°) O elemento materno.

    Superpondo graficamente a reta da bipolaridade vertical à reta da bipolaridade horizontal, teremos um desenho em forma de cruz, em que os quatro termos lhe corresponde aos quatro braços. No alto, teremos o espírito; em baixo, o ambiente-matéria; à esquerda, o elemento paterno e, à direita, o elemento materno. Para chegar ao espírito, as experiências de ambiente devem atravessar o organismo físico. As correntes vibratórias vão do alto para baixo e de baixo para o alto, da esquerda para a direita e da direita para a esquerda, e há esta luta em todas as direções. A personalidade é o resultado dessa luta, é a síntese desses elementos; por isso, ela pode ser múltipla, como oscilante entre os vários pólos extremos.

    No plano orgânico-psíquico ( sabemos que o espírito está além do cérebro ), a luta se verifica entre a personalidade paterna e a materna e explode na puberdade. Vence uma das duas personalidades, que se afirma e se torna dominante e na qual prevalece um ou outro tipo dos progenitores. Como acontece em toda convivência, o mais fraco cede onde o mais forte conquista e chega- se assim a um acordo. A personalidade vencida não morre por isso, mas continua a girar, vivendo em tom menor, qual força subordinada, em torno da principal, como um planeta de luz reflexa em torno de seu sol. A natureza não a despreza, nem a dissipa; utiliza-a, confiando-lhe, porém, funções menores e, todavia, necessárias, como o controle representado pela oposição, pela minoria, como a tarefa de equilibrar, freiando-o, o domínio exclusivo e o desencadeamento repentino e irrefletido da personalidade dominante. Reflexão significa recíproco controle entre duas tendências, a hesitação é suscitada pela disputa entre elas. Daí os contrastes de vontades, a tragédia dos opostos impulsos da consciência. Quando vence uma ou outra das duas forças, a remanescente retira-se, vencida, para a sombra, contentando-se com viver em surdina, na expectativa de tomar suas represálias e assumindo, nesse ínterim, a direção de funções menores, para surgir como diretriz geral, mal se canse e vacile a outra.

    Há vários graus de fusão entre os dois elementos. Há indivíduos, por assim dizer, impulsivos, nos quais uma personalidade venceu tão nitidamente, de modo a dominar, imperturbável, sem resistência, todo o campo da ação, porque a parte oposta cedeu completamente e, portanto, já não exerce nenhum controle. Então, a decisão é fácil, simples, automática, retilínea, sem lutas, oscilações e flexões. Dado que sejam poucas as forças em campo, a solução é logo encontrada. Isso parece presteza e, contudo, não passa de simplicidade e pobreza de meios. Outros, ao contrário, parecem tardos e são, ao contrário, ricos e complexos. Nestes, o desequilíbrio não se resolveu, pacificando-se na estase e permanece alimentando a contradição. Neles, as personalidades, prepotentes ambas, concorrem contemporaneamente em cada ato, trazendo uma riqueza tal de forças propulsoras e contrastantes, que se tornam muito mais laboriosas as decisões. Deriva daí toda uma gradação de manifestações volitivas e de capacidades de decisão, gradação que vai da ação imediata à indecisão, da ausência de controle do impulsivo, a um controle tão rigoroso que paralisa a ação ( Hamlet ); vai da ação sem orientação à orientação sem ação, ou seja, à reflexão que paralisa.

    Tudo isso depende das características dos dois elementos: paterno e materno. Quando eles são biologicamente muito desiguais, não ocorre sua fusão, ou, se ocorre, ocorre mal. Daí procedem todas as anormalidades que nos são descritas pela fenomenologia psiquiátrica, as formas mentais em que predominam a dissonância e a instabilidade, aquele desequilíbrio dinamizante, mas perigoso que, dominado e reconduzido a uma ordem superior, pode constituir o gênio, mas que, abandonado ao contrário, a si mesmo, pode culminar na loucura. Em geral, porém, as duas impulsões, paterna e materna, acabam por estabelecer um acordo. Se demasiada é a diferença, dela nascerá um caráter mosaico, um compromisso mais ou menos estável e equilibrado. Se se considerar como podem os elementos determinantes unir-se, na reprodução, em infinitas combinações, compreender-se-á que inexaurível riqueza de tipos a natureza pode produzir.

    Assim como na realidade não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio perfeito e equilibrado de maneira absoluta, assim também não existe o verdadeiro falido, o patológico absoluto. Tudo na vida é cheio de permutas e compensações. Quem não vence hoje, poderá vencer amanhã. O novo, o original, a personalidade eminente são o que primeiro pode nascer da tais desequilíbrios, desde que dominados coordenados e disciplinados. Tais desequilíbrios se tornam então uma qualidade preciosa, a única que pode trazer uma contribuição inédita ao pensamento e ao progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentativas, sabe errar e emendar-se, compensa-nos sempre de qualquer modo com o que nos falta, deixa-nos cair para ensinar-nos e erguer-nos, expõe-nos aos assaltos para guiar-nos à vitória, à aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento de nosso patrimônio de capacidade e de defesas.

    Todas as impressões recebidas são registradas no livro da vida em que se escreve tudo e tudo, depois, se pode ler. A doença tende a imunizar- nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequilibrar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos. Tudo é utilizado e transmitido e a vida imortal assim se enriquece e assim acumula para si um patrimônio de heranças complexas, através de longuíssimas e milenárias experiências que o nosso organismo torna suas e nas quais possui a riqueza de uma sabedoria biológica imensa que cada qual leva consigo, sem imaginá-la. Assim, na batalha entre suas forças antagônicas, a natureza se revela uma hábil harmonizadora, demonstra ser uma potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, que de um desequilíbrio sabe fazer um elemento dinâmico e criativo, de uma dissonância, uma harmonia, de um dinamismo contraditório, uma personalidade original e potente.

    Estas observações nos deixam no campo estritamente biológico e não são suficientes para resolver o problema da responsabilidade moral e exaurir o da hereditariedade. A personalidade humana resulta ainda de outras forças e de outras posições. Temos aqui observado a luta no seio do binômio horizontal e não ainda a do binômio vertical, com que se combina a primeira. Acima destes conflitos biológicos, está o mundo moral do espírito e abaixo está o ambiente, com todos os seus assaltos e resistências. Esta personalidade, resultante dos dois elementos, pai e filho, cruza-se e combina-se com a outra, constituída do binômio espírito-matéria, eu interior e ambiente externo. A personalidade completa é o resultado de todos esses elementos e movimentos. Que riqueza, mas que extenuante martelamento! A natureza, que se compraz tanto com o definir em forma concreta e preciosa suas formações, não admite ócios e preguiças, mas impõe em cada momento o exame dos valores e a correspondência da forma à substância.

    O acordo resultante da fusão dos elementos herdados da linha paterna e materna deve a seu turno, logo que se forma, lutar com o ambiente por equilibrar-se também em um acordo nesta outra direção. A isso se limitam os esforços da vida nos casos mais comuns, no seio de uma natureza que é também economizadora de energias. Certo que a personalidade, ainda que limitada a esses elementos, ainda que utilizando-se do patrimônio hereditário das longuíssimas experiências adquiridas e atingindo os dois reservatórios paterno e materno que continuamente se cruzam, deve executar sempre um trabalho próprio de nova aquisição, enriquecendo aquele capital com o investi-lo de novas combinações, com o usá-lo na sua própria atividade, com o completá-lo com novas aquisições obtidas da experimentação no ambiente. Após te-lo assim incrementado, aquela personalidade, do mesmo modo que o recebeu como dom, deve, por sua vez, transmiti-lo como dom. Conquanto sejam esses os comuns labores da vida, nada impede haja outros diversos a que o normal escapa. Muito mais complexa se torna a existência, áspera a luta e difícil o acordo, mas, em compensação, ela se faz mais rica de desequilíbrios dinamizantes e criadores, quando aí se manifesta e aí funciona com forças preponderantes o elemento espiritual, carregado, por sua vez, de uma bagagem própria de experiências pessoais, largamente desenvolvido, ansioso portanto de viver uma vida própria e de afirmar-se diante dos outros elementos da personalidade, de tal sorte que pode desafiá-los e por-se em luta com eles.

    Então, a personalidade, desde que seja mais extensa e mais rica e represente para si um mais complexo concerto de ressonâncias, torna-se também um campo de batalha mais vasto, no qual a harmonização é mais difícil de obter, de vez que a síntese unitária do eu não ocorre só no plano orgânico-psíquico, mas também no mais alto plano espiritual. Tal é o caso do tipo evoluído. Então, todo o penoso labor resultante da colisão das forças da personalidade, da concordância ou discordância dos ritmos, não se limita ao binômio horizontal pai-mãe e ao ambiente, mas se projeta para as altas zonas do espírito, procurando aí e não no plano biológico a sua solução. Então, as correntes dinâmicas navegam e se cruzam em todos os sentidos: a luta biológica do macho contra a fêmea ( pai-mãe ) e da fêmea contra o macho ( mãe-pai ) se cruza com a luta moral e material, respectivamente, do espírito contra a matéria ( espírito-ambiente ), e da matéria contra o espírito ( ambiente-espírito ); os antagonismos do binômio vertical martelam o corpo físico e daí nasce aquele processo de maceração que amadurece e evolve.

    Observamos acima esta elaboração evolutiva, em cujo exame prosseguimos aqui. De todo esse laborioso esforço originam-se indivíduos cada vez mais especializados. Mas, se de um lado parece que a natureza se encaminha para o individualismo, isto é, para um separatismo que insula e afasta o indivíduo do corpo social, vemos, de outro lado, que ela depois retoma essa tendência e procura reequilibrá-la, agarrando de novo o indivíduo para enquadrá-lo naquelas múltiplas unidades sociais que são os coletivismos modernos. É que a célula-indivíduo se apresenta diferenciada, não para si, nem para destacar-se no insulamento, fora da unidade da natureza, mas para ser utilizada em uma ordem social mais vasta, com funções apropriadas às características qualidades adquiridas.

    Dissemos que a visão estritamente biológica não é suficiente para exaurir o problema da hereditariedade. A ciência se limita a julgar os dois elementos do binômio horizontal e o elemento inferior do binômio vertical, desdenhando do superior. Os instintos, as idéias inatas, as qualidades adquiridas derivadas da experiência ambiental e transformadas por repetição habitual em automatismos, seriam segundo essa ciência adquiridas, não pela personalidade espiritual eterna, capaz de conservá-las e restituí-las no momento em que fossem úteis, através de uma longa série evolutiva de menores vidas corpóreas encerradas na alternativa nascimento-morte, mas seriam adquiridas em virtude de uma memória biológica, celular, e nesta depositadas e conservadas.

    Em "A Grande Síntese", cap. LXIX - "A Sabedoria do Psiquismo" - cita-se, entre outros coleópteros, o Cerambyx Miles, como exemplo de sabedoria imensamente superior à sua organização e meios. Acrescentamos aqui o caso ali apenas indicado, de um himnóptero, o Sphex, cuja fêmea depõe na areia, ao lado dos ovos, um inseto que ela imobilizou com uma picada de seu ferrão, a fim de que possa servir de nutrição à futura larva. Ora, o Sphex pica a vítima em um ponto do dorso, precisamente onde se encontra o gânglio nervoso que preside ao movimento. Desse modo, obtém uma provisão imóvel e, todavia, incorruptível, porquanto se mantém viva. Como conhece aquele inseto anatomia e anestesia? Quem lhe ensinou este fato anátomo-fisiológico? Dir-se-á: a experiência! Mas, os insetos vivem poucos meses e as larvas nascem quando os progênitos e toda a geração precedente desapareceram. Logo, não é possível nenhum ensinamento, nenhuma imitação. Por ventura é o inseto provido de uma sensibilidade tal que o torne apto a perceber as radiações transmitidas pelo órgão percutido, de modo que pode assim localizá-lo? Mas, ainda que assim fosse, quem o induziu a percuti-lo e quem o informou das conseqüências? A quem cabe o raciocínio por virtude do qual se encontra a relação entre todas as fases do processo lógico? Aqui há um princípio inteligente no inseto e, dado que não pode te-lo criado por si mesmo, ele deve ter-lhe sido transmitido. Mas, por que vias? Acaso são as células que conservam a lembrança atávica? Mas, será suficiente esta via e serão as células capazes de semelhante síntese racional? Isto é psiquismo. São-lhe depositárias as células ou o é outro órgão? Este psiquismo contém a lembrança de todas as experiências vividas durante milênios, no presente caso também aquelas inerentes ao estado de inseto perfeito. A conservação de tão precioso patrimônio hereditário e do novo que lhe ajunta continuamente a experiência, é confiada à memória celular ou a um organismo imaterial em que se registram e fixam definitivamente, em forma de qualidades adquiridas, as correntes vibratórias provenientes do ambiente?

    Segundo a ciência, a memória biológica residiria na célula que em si leva inscrita sua longuíssima história, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da filiação e derivação direta da célula germinal hereditária. A essa história do passado cada vida ajunta sua nova experiência, soma-a à precedente e com esta, que é assim completada e corrigida, transmite-a. Seria uma espécie de reencarnação celular, em que a continuidade das vidas sucessivas não seria confiada à sobrevivência de um princípio espiritual supercorpóreo, mas à persistência das impressões celulares. É certo que o ambiente age e continuamente impressiona o nosso ser, que a repetição aí fixa estados habituais ou automatismos e que estes tendem a radicar-se aí em forma de instintos ( cfr. "A Grande Síntese, cap. LXV: "Instinto e Consciência"). É certo também que, por hereditariedade, se registram e transmitem todas as nossas experiências. Mas o problema consiste em saber como, por qual mecanismo e via a célula se impressiona e como conserva estas impressões.

    Para compreender o fenômeno, é necessário reduzi-lo à sua substância cinética. Trata-se aqui de correntes de vibrações, de ritmos, de movimentos ondulatórios que se transmitem e se imprimem. Pelas vias nervosas e sensórias, os movimentos vibratórios do ambiente externo penetram no organismo. Esta contínua penetração é um fato indiscutível. Aquelas vias são como portas escancaradas. Nosso organismo é também uma orquestração de ritmos. Os movimentos vibratórios entram, avançam, investem e penetram cada vez mais profundamente a estrutura orgânica, percorrem-lhe as vias e saturam-nas. Deverão deter-se no último termo a que chegamos em nossa decomposição analítica, isto é, eles se fixarão, sob forma de deslocamentos de trajetórias, nas trajetórias já existentes nos movimentos atômicos ( cfr. "A Grande Síntese", cap. LV: Teoria dos motos vorticosos ), movimentos atômicos de que resulta composto, em progressiva complexidade, o sistema cinético-dinâmico molecular, celular, orgânico, psíquico. A ocorrência de repetição, como determinante de automatismos, confirma esta ação cinética de um lado e cinética impressionabilidade de outro. Talvez se trate de atividades electromagnéticas. Daí derivaria a memória celular. Considerando que os vários elementos componentes são reagrupados segundo a lei das unidades coletivas ( cfr. "A Grande Síntese", cap. XXVII ), e considerando que em todas as organizações maiores permanecem os fundamentais movimentos atômicos, verifica- se, em virtude disso, a possibilidade de obter sínteses progressivas até a máxima que se nos revela sob forma de consciência. Os resultados cinéticos da experiência se imprimiriam assim em todas as células do corpo e, por hereditariedade, se transmitiria e se receberia esta sabedoria adquirida na raça e comum a todos, que cada indivíduo levaria consigo, qual depositário dela, para usá-la, em proveito próprio, conservá-la, enriquecê-la e enfim transmiti-la aos seus descendentes, para sua vantagem e assim sucessivamente. Esta sabedoria seria concentrada através dos órgãos nervosos e cerebrais, na síntese máxima do psiquismo, a última resultante das experiências da vida.

     Dissemos: sabedoria por enriquecer e por transmitir. Duplo, pois, é o trabalho: de experimentação nova, para enriquecer, de conservação do velho e do novo, para transmitir. Temos, pois, dois tipos de registração cinética: a recente e a atávica, a nova e a velha, aquela que nós fazemos e aquela que fizeram os nossos antepassados. A primeira conduz à captação e fixação dos movimentos de variação da espécie; a segunda representa na raça as qualidades mais profundas e mais estáveis, que se fixam em todas as células, não em via de aquisição, mas hereditárias. As duas diversas funções, isto é, o deslocamento e a conservação das trajetórias, seriam confiadas a dois sistemas de células: de um lado, os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrionária e, do outro, o sistema de todas as outras células. Dois sistemas, pois, que culminam em duas sínteses psíquicas: a primeira, temporária, individual, representando a porção pessoal de vida do indivíduo; a segunda, coletiva, eterna, representando a espécie e a sua vida em continuação. Dois psiquismos, portanto: aquele operante, ativo no armazenamento de novas qualidades, formador do eu na experimentação, registrador, receptivo, assimilador e fixador de novas experiências biológicas por transmitir ao outro sistema, o atávico, conservador, do qual elas ressurgem e pelo qual são restituídas, sob forma de qualidades hereditárias e de instintos, de idéias inatas e capacidades adquiridas. Os dois sistemas giram, um em torno do outro, segundo o habitual esquema do par de forças contrárias e complementares de que resulta composto o binômio de toda unidade, de acordo com a universal lei de dualidade.

    Tudo isso pode ser persuasivo. Todavia, permanece sem solução o problema das impressões, isto é, das novas características cinéticas que nos movimentos atômicos se vão continuamente formando. Ei-nos no último termo do problema da hereditariedade. Como conciliar a persistente identidade do eu que permanece tal como é não obstante a mutação de suas qualidades e a renovação contínua e completa dos materiais constitutivos do psiquismo? Ao invés de ser confiada a uma memória celular, não será então a conservação das impressões, confiada a uma memória espiritual, situada em um organismo imaterial, chamado alma? Se a vida é um metabolismo, uma corrente, que é que lhe impede a dispersão e lhe mantém compacta a unidade? Sem dúvida, trazemos conosco, ao nascer, os resultados de um passado. Mas, onde foi ele escrito? É certo que imaginar uma transmissão hereditária exclusivamente pelos trâmites da célula germinal e por sua capacidade de conter todos seus futuros desenvolvimentos e, depois, de guiá-los de tal modo que saiba reconstruir o ser completo, é tão difícil quanto imaginar uma transmissão hereditária por restituição de vibrações provenientes de um organismo espiritual que, inserindo-se no organismo físico, pelas vias imateriais da percepção interior, lhe guie o desenvolvimento ( ideoplastia ). Tanto mais que o primeiro sistema não pode ser suficiente para transmitir todas as registrações da espécie, porque as melhores experiências, as da maturidade, adquiridas após a idade da reprodução, que é fenômeno juvenil, permaneceriam sem veículo, incomunicáveis. O melhor andaria então, perdido, e a vida dos solteiros se tornaria inútil para a raça, porque inaproveitada. Ora, como pode a natureza deixar-se iludir em um ponto de tão vital importância, dos mais custosos e preciosos resultados? Como pode ela, que é tão previdente e parcimoniosa, abandonar as mais importantes experiências da vida, que são as espirituais, que se processam até a senilidade? Como é possível uma tão flagrante contradição com a habitual economia da natureza? Então o melhor andaria disperso, muitos esforços teriam sido vãos e o seu produtor ficaria destruído, outra flagrante contradição em um mundo em que nada se poderia destruir e no qual estas forças, como tudo, devem ressurgir. E, então, como poderia progredir uma raça que não é capaz de acumular senão experiências elementares e juvenis? Não! Não é possível que a vida seja assim mutilada precisamente no centro de seu sistema que, embora tão perfeito, se tornaria então imperfeito no ponto mais substancial, de tal modo que fecharia a via do progresso com a evasão das mais altas experiências da raça.

    Não basta, pois, a hereditariedade fisiológica. Se os filhos se assemelham aos progenitores, freqüentemente diferem deles e, muitas vezes, os superam. A genialidade não é hereditária. O fenômeno, sem dúvida, deve ser bipolar e, como tal, não pode constituir exceção à universal lei de dualidade. Na realidade, onde tudo é duplo, deve sê-lo também a hereditariedade, isto é, ela deve ocorrer em ambos os caminhos, em posições e com funções complementares. Como dois são os eixos constitutivos da personalidade ( pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas formas de luta, dois os sistemas de forças e duas as evoluções( material e espiritual ), é lógico que duas sejam também as formas de hereditariedade em correspondência com os dois eixos, é lógico que a cada forma de luta corresponda a sua meta e que a cada tipo de evolução, como cada sistema de forças, tenha o próprio e relativo canal de transmissão. As forças caminham e a acumulação das experiências deve culminar em algum resultado. Quem se limita unicamente à hereditariedade fisiológica esquece-se do mundo imenso do espírito, dos valores morais, onde, com plena responsabilidade, se cumpre o nosso destino.

    Temos seguido o caminho da ciência para mantermo-nos positivos e chegamos aos movimentos atômicos, a deslocamentos de trajetória, a ações e reações cinéticas, a absorção de ritmos, a movimentos de correntes vibratórias. E eis que tudo se desmaterializa em nossas mãos e se traduz naquele imponderável que é a característica do espírito. Quando chegamos ao fundo, percebemos que o fenômeno é como desfeito e dele nada mais resta que um jogo de forças, uma estrutura de vibrações, um dinamismo imaterial que tem muito das características do espírito e de suas invisíveis atividades. Mas, então, a oposição, que parece de verdades entre materialismo e espiritualismo, se resolve em mera questão de palavras, pois que por fim tudo termina no mesmo ponto e acaba por descobrir a mesma e única verdade e por exprimir, em substância, a mesma coisa. Quando temos percorrido até o fim as veredas da ciência e da matéria, exclamamos: mas isto é o espírito! E efetivamente é o espírito. Temos visto que ele, no binômio espírito-matéria, está igualmente presente no polo oposto e que o mistério do psiquismo se estende até às profundezas da célula. Dissemos que o eu é duplo, não está só no centro, mas também na periferia; que o espírito central está também em todos os pontos da periferia; é o centro e a periferia. Dissemos também que a registração atávica, a sabedoria adquirida pela raça está infusa e difusa no sistema de todas as células do corpo. Mas, então, falar deste é, em essência, falar de espírito, uma vez que sua substância pode traduzir-se cientificamente em uma orientação de cinética atômica e uma vez que o psiquismo está presente até na intimidade da célula. Ocorre então, esta pergunta: "É, pois, o espírito a causa ou o efeito do sistema? Ou, por outra, é ele o motor determinante das correntes de consciência diretoras do funcionamento orgânico, ou é a síntese das correntes de consciência derivantes dos sistemas celulares?"

    Para Renan a "alma é uma resultante das forças do corpo". Mas, pode objetar-se: se é natural que a síntese de correntes de consciência derivadas dos sistemas celulares atinja o plano biológico, como poderá ela elevar-se até o mundo moral que é qualitativamente de todo diverso? Equilibremos, então, o antagonismo. O homem, por necessidade de luta imposta por sua natureza bipolar, é em geral separado e participante. Materialismo e espiritualismo exprimem unilateralmente cada um, sua parcela de verdade. À questão de saber se o espírito é a causa ou o efeito do sistema, respondemos como acima dissemos: a causa está no efeito, o efeito está na causa. Trata-se, apenas, de dois termos da mesma unidade bipolar, apenas de um caso da universal lei de dualidade. Temos chegado ao limite, onde nós superamos o binômio e saímos da contradição. Tocamos aqui o limiar daquele mundo superior onde a grande ilusão da forma desaparece e tudo se unifica na mesma verdade.


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