Epistemologia Zen 
Toshihiro Izutsu
 
 
 
Quando temos uma experiência, por exemplo. de ver uma árvore, tudo quanto tem lugar no tempo é a percepção de algo. Não sabemos se esta percepção nos pertence, nem reconhecemos o  objeto que é percebido  como estando fora de nós mesmos. A cognição de um objeto externo  pressupõe já a distinção de fora e dentro, sujeito e objeto, a percepção e o percebido. Quando tem lugar esta separação, e a reconhecemos como tal, e aderimos a ela, esquecemos a natureza primeira da experiência, e disto surge uma série interminável de envolvimentos, intelectuais e emocionais”. 
THE ZEN DOCTRINE OF NO MIND  - D. T.  Suzuki 
Na  ótica do budismo Zen, a tendência “essencialista” do ego empírico não é aceitável, não somente porque situa “objetos” por toda parte como se fossem entidades permanentes, como também e sobretudo porque este ego empírico se coloca a si mesmo enquanto substância-ego. E, enquanto tal, não só se liga aos  “objetos” exteriores e a tantas realidades irredutíveis, senão que, o que é mais grave, se agarra a seu próprio ser como a uma realidade autônoma ainda mais irredutível. Isto é o que designa a expressão “espírito submisso” [prasthiam cittam]. Uma visão total do mundo se constrói deste modo sobre a base de uma oposição entre o “espírito submisso”- quer dizer, o  “sujeito” - e seus “objetos”. Esta dicotomia da realidade compartilhada entre sujeito e objeto, entre o homem e o mundo exterior, é  o fundamento de todas as nossas experiências empíricas.
 Naturalmente, inclusive o sentido comum pode estar disposto a admitir que o mundo fenomênico que engloba as coisas exteriores e o ego, se encontra em um estado de fluxo constante. No entanto, tende a ver, no interior ou no fundo desse caráter efêmero de todas as coisas, determinados elementos que permanecem inalteráveis e substanciais. Desse modo se cria uma imagem do mundo do ser como reino de objetos idênticos a si mesmos, na qual o sujeito mesmo não é em pureza nada mais que outro “objeto” entre todos os demais. Precisamente este é o tipo de visão ontológica a qual o Zen parece disposto a por fim.
Para alcançar uma melhor compreensão da visão do mundo próprio da supraconsciência, consideremos primeiro a visão do mundo mais natural e mais familiar ao espírito humano e analisemos sua estrutura no plano filosófico.
Se pode distinguir nela duas formas de aproximação. A primeira é representada de forma típica pelo dualismo cartesiano, que repousa sobre a dicotomia da “res cogitans” e da “res extensa”.
Enquanto forma filosófica, pode ser descrita como um sistema ontológico fundado sobre a tensão dualista entre as duas “substâncias”, irredutíveis uma à outra. Enquanto visão do mundo, se trata de um sistema no qual o ser humano, quer dizer, o ego, olha as coisa do exterior, colocando-se a si mesmo como expectador. Não se encontra subjetivamente implicado nos acontecimentos que se desenrolam ante seus olhos entre as coisa. O homem é aqui um observador neutro, diante de um mundo de objetos exteriores. Todo um panorama ontológico se estende diante dele, enquanto sujeito pessoal e independente, não faz mais que gozar do espetáculo animado dessa cena constituída pelo mundo, Se trata da visão mais afastada da realidade das coisas tal como essas coisas se revelam aos olhos da superconsciência.
A segunda aproximação poderia ser representada de melhor maneira pela concepção heideggeriana do “ser-no-mundo” [Da sein], sobretudo sob o modo chamado de a [Verfallenheit] ontológica. Diferentemente do que acabamos de ver, o homem se encontra aqui subjetiva e vitalmente implicado no destino das coisas que o rodeiam. Em lugar  de permanecer como espectador objetivo, olhando do exterior o mundo como uma realidade independente dele mesmo, o ser humano, o ego, se descobre no centro mesmo do mundo, afetando diretamente as coisas e diretamente afetado por elas. Já não é o observador que goza do espetáculo que se desenrola diante dele na cena [como num filme]. Está ele mesmo na cena, existe no mundo, participando ativamente da representação que é a conseqüência natural de semelhante posição.
Esta segunda aproximação está muito mais próxima do Zen que a primeira. No entanto, a visão empírica do mundo é, em ambos casos, radicalmente diferente quanto a sua estrutura fundamental , da visão Zen do mundo. Se trata de uma visão elaborado pelo intelecto, o qual não pode exercer propriamente sua função senão quando se distingue claramente entre o ego e o alter [outro]. O mecanismo, em seu conjunto, repousa sobre a convicção explicita ou implícita, da existência independente de uma substância-ego, oposta aos objetos substanciais exteriores. Que o sujeito seja apresentado como encontrando-se no exterior ou no interior do mundo dos objetos, tal oposição cartesiana na base é, do ponto de vista Zen, a que convém eliminar o mais rápido possível, se é que o ser humano quer alcançar uma realidade de si mesmo e dos chamados objetos exteriores.
Há, de qualquer modo, inclusive no mais profundo desta visão empírica do mundo, algo assim como um princípio metafísico escondido que, ainda que permaneça invisível, atua constantemente, disposto a realizar-se em todo momento no espírito humano para transformar a visão normal do mundo em algo inteiramente diferente. Este princípio escondido da transformação da realidade é denominado no budismo “Tathâgata-garba” , a  Matriz da Realidade Absoluta. Para entrever a estrutura total desde este ponto de vista particular, nos fará falta submete-la à uma analise mais detalhada e mais teórica.
A relação epistemológica do ego com o objeto na visão comum ou empírica do mundo pode ser representada pela formula:  s  o , que se lerá como eu vejo isso.
Nesta fórmula e nas que vão se seguir, as palavras escritas em minúsculas se referem às coisas e aos acontecimentos referidos à dimensão da consciência comum, enquanto que as escritas com maiúsculas se referirão à dimensão da superconsciência. A palavra VEJO pode ser a tradução literal da palavra chinesa “chien”, que aparece na célebre expressão “chien hsing”, “ver na natureza”.
Deste modo, na fórmula  s  o = eu vejo isso,  o sujeito gramatical  s  representa a conciência-ego do ser humano a nível da experiência empírica. Se refere a tomada de consciência do ser  como [Dasein] de Heidegger, em seu sentido literal de “estar aí” de um sujeito ante o mundo objetivo. O eu é aqui uma substância-ego que subsiste independentemente. Enquanto o ego empírico permanece em uma dimensão empírica, não será consciente de si mesmo mais que enquanto esta aí, como centro independente de todas as percepções, pensamentos e ações físicas. Não tem absolutamente consciência alguma de ser algo mais que isso.
No entanto, do ponto de vista Zen, que infunde em todos os lugares e em todos os atos a Tathâgata-garbha, a Matriz da Realidade Absoluta, há de modo perceptível atras de cada eu individual, Algo  cuja atividade pode ser expressa pela fórmula  ( S  )  ou  EU VEJO;  neste caso, os parênteses indicam que esta atividade permanece ainda escondida nos níveis empíricos da consciência do ser. Deste modo, a estrutura do ego empírico,  s  , deve ser expressa - ao menos do ponto de vista do Zen - pela fórmula:     ( S  ) s 
                  ou (EU VEJO) eu mesmo
Como poderemos observar mais adiante, o ego empírico,  s  , não pode ser de nenhuma maneira o centro real de todas suas atividades  senão graças a esse princípio escondido, ( S  ), funcionando constantemente através de  s .  O ego empírico pode ser ele mesmo unicamente porque cada movimento subjetivo que realiza é na realidade a atualização desse Algo que é o Ser real. A natureza da atividade de  (EU VEJO)  pode ser compreendida melhor se a comparamos com seu paralelo islâmico, o tipo  “irfan” da filosofia Sufi, que encontra uma referencia explicita no mesmo tipo de situação nas palavras de Deus no Corão: “Não eras tu que disparava  quando disparaste era [na realidade]  Deus que disparava”. O ponto importante, entretanto, é que  um estado semelhante de coisas se encontra nestes níveis ainda inteiramente escondido e escapa ao ego comum. Por isso, este último se encontra sozinho; totalmente inconsciente da parte que se encontra entre parêntesis:   ( S  ) .
Tudo isso pode se aplicar igualmente ao lado objetivo da relação epistemológica [representada na fórmula por um  minúsculo]. Aqui entretanto, o ego empírico não tem consciência além da presença das “coisas”. Estas últimas surgem diante do ego como entidades autônomas que existem independente  dele. Aparecem igualmente como substâncias dotadas de propriedades diversas e, enquanto tais, fazem frente a um sujeito  que as percebe, que as vê no exterior. Portanto, considerado do ponto de vista de “prajnâ”  o “conhecimento transcendental”  já mencionado, uma “coisa” não aparece aos olhos do ego empírico senão graças  à atividade  desse certo Algo  ( S  )  que, como vimos, instaura o ego enquanto que ego mesmo. Uma coisa determinada,  o  é instaurada como coisa  o  em si mesma, quer dizer, como atualização concreta desse Algo.  Temos que observar precisamente nela uma forma que se automanifesta da mesma  “Tathâgata-garba”, a Matriz da Realidade Absoluta, eterna e permanentemente ativa através de todas as formas fenomênicas das coisas.
Deste modo, a fórmula que representa a estrutura interna de  o  deve tomar uma forma mais analítica: 
( S   )  o 
(EU VEJO)  isso
Esta nova fórmula quer indicar que também aqui  o  é a única coisa que pode manifestar-se externamente, porem que atras dessa fórmula fenomênica se mantém escondida a atividade de  ( S  ),  cujo ego empírico está ainda inconsciente.
Desse modo, a chamada relação sujeito-objeto ou processo epistemológico completo pelo qual uma substância-ego [em aparência] autônoma percebe uma substância-objeto [em aparência] também autônoma - relação que representamos inicialmente pela fórmula  s  o  - deve dar, se a expressamos sob a forma completa, algo que mais ou menos poderemos expressar do seguinte modo: 

A esfera do sujeito                           A esfera do objeto 
( S  ) s                                             o (  S ) 

                                S 

Nesta última formulação, o  ou ego empírico, que não é uma atualização particular de  ( S  ) , está colocado em uma relação especial ativo-passivo com o “objeto” ou  o  , o qual não é igualmente uma atualização particular do mesmo   ( S   ) . O processo, em seu conjunto, deve entender-se como uma atualização concreta de  EU VEJO   ou  sem parêntesis. Porém inclusive no  EU VEJO  subsiste todavia uma débil marca de consciência-ego. O Zen insiste vigorosamente para que semelhante resto se apague do espírito, afim de que tudo se reduza, no final das contas, ao ato simples e puro de  VER .  O termo “não-espírito” que temos feito referencia se enlaça precisamente no ato puro de VER  no estado duma atualização imediata e direta, quer dizer, ao eterno verbo  VER  sem parênteses.
Começamos a compreender que a realidade do que expressamos mediante a fórmula  eu vejo isso  é de uma estrutura extremamente complexa, ao menos enquanto se descreve analiticamente do ponto de vista do ego empírico. A verdadeira situação que está indicada de modo implícito e de forma velada pela fórmula  s  o  surge como algo inteiramente diferente do que compreendemos ordinariamente tendo em vista  a estrutura gramatical aparente da frase. E o fim primeiro e mais elementar do Zen [frente ao qual, enquanto prisioneiros  do círculo mágico da dicotomia ontológica, não podíamos ver além da significação superficial de  s o  ou de  eu vejo isso   , tal como vem sugerido pela estrutura sintática: sujeito = ato = objeto], consiste em tratar de romper o sortilégio do dualismo e liberar o espírito para que  se encontre em condições de abordar, face a face, isso que designamos simbolicamente como verbo  VER .
Temos que recordar aqui que o budismo, em geral, descansa filosoficamente sobre o conceito do “pratîtyasamutpâda”, que é a idéia segundo a qual toda coisa chega ao estado de ser e existe como tal graças ao infinito número de relações que mantém com outras coisas e que cada uma dessas outras deve por sua vez sua existência aparente e autônoma a outro indeterminado número de coisas. Filosoficamente falando, o budismo é, neste aspecto, um sistema fundamentado na categoria da “relatio”, em oposição, poderíamos dizer, ao sistema aristotélico-platônico fundado sobre a categoria da “substantia”.
A Realidade, no verdadeiro sentido da palavra,  é esse Algo que se manifesta ao mesmo tempo por traz do sujeito e do objeto e faz surgir cada um deles sob sua forma específica, deste enquanto sujeito, daquele enquanto objeto. O princípio último que rege a estrutura completa é Algo que circula através da relação sujeito-objeto e permite que essa mesma relação possa ser atualizada. Este é o princípio penetrante e ativo que queremos indicar pela fórmula  S   ou, melhor ainda, em sua forma ultima, pelo verbo  VER.
Porem uma vez mais  o termo “algo” ou “princípio ultimo” não deve induzir-nos a pensar que por trás do véu dos fenômenos se dissimula determinada substância metafísica supra-sensível,  que rege o mecanismo do mundo do mundo fenomênico.  Porque, segundo o Zen, na realidade nada há além do mundo fenomênico ou de qualquer outro mundo. O Zen não admite a existência de uma ordem transcendental puramente espiritual além e a parte do mundo fenomênico.  Sua única observação neste sentido é que o mundo fenomênico não é simplesmente a ordem sensível das coisas, tal como aparece ao ego empírico comum, senão que o mundo fenomênico se desvela ante a consciência Zen do Ato de VER. O sentido real desta afirmação não será esclarecido, até que se tenha analisado em detalhe a estrutura interna deste campo dinâmico.
A fórmula   s o  , ou  eu vejo isso, que pretende descrever de modo sistemático a relação epistemológica entre o sujeito que percebe e o objeto percebido, dissimula pois um mecanismo muito mais complexo que não se manifesta inicialmente. Pois, segundo a análise budista, atrás de  se encontra escondido  ( S  )  e atrás de  o  também está  ( S  ). E o conjunto, como vimos, se relaciona em definitivo com o ato (exteriormente) muito simples, porém (interiormente) abrangente e omnipenetrante de VER.
Sucede  que este VER , que não é mais, no espírito do Zen, que a Realidade Absoluta ou última, se sensibilize ante o espírito humano que vive na dimensão empírica da existência. O primeiro sintoma da irrupção da Realidade Última na dimensão está carregado de um poder dinâmico de um tipo muito particular que pode muito bem ficar indicado mediante a utilização do verbo VER.
Deste modo, o que se entende por VER  não é de maneira alguma uma Entidade Absoluta, transcendental, que se sustentaria a si mesma, à margem das manifestações fenomênicas. É, melhor, um Campo integral que não é nem exclusivamente subjetivo nem exclusivamente objetivo, senão que engloba ao mesmo tempo sujeito e objeto em um estado específico, anterior a sua dissociação.
A forma verbal mesma de VER pode, ao menos de certo modo, sugerir que em lugar de uma coisa - ainda que se tratando de uma coisa absoluta ou de uma substância transcendental, se trata de um ato  que carrega um Campo integral com sua energia dinâmica. 
Sucede com freqüência  que este VER, que não é mais, na visão Zen,  que a Realidade última ou absoluta, se sensibiliza ante o espírito humano que vive na dimensão  empírica da existência. O primeiro sintoma da Realidade última que irrompe na dimensão empírica se reconhece pelo fato de que o homem situado em tal tessitura começa a sentir um vago sentimento de que a realidade autêntica, tanto sua como das coisas exteriores, deve ser de uma natureza inteiramente distinta. Também de um modo muito vago, compreende ao mesmo tempo que se encontra sujeito às tribulações e às misérias da existência humana, simplesmente porque se sente incapaz de ver a realidade tal como teria que vê-la. Este fenômeno, de importância decisiva no plano religioso e filosófico, recebe o nome  “fa shin” no budismo chinês e significa literalmente o surgimento do espírito, quer dizer, o surgimento de uma profunda aspiração para a iluminação de Budha. Filosoficamente, temos que entende-la como a primeira manifestação do  metafísico.
Uma vez atualizado o primeiro estágio, o “Dasein”  [ o “Ser-aí” do existencialismo heideggeriano], tal como se apresenta naturalmente, perde subjetiva e objetivamente sua aparente solidez. Começa a pressentir-se que o “Dasein”, em sua forma empírica, não é a forma autêntica de Ser, que não é mais que uma pseudo-realidade. Sob o impulso irresistível que extrai da pseudo-realidade para o que pensa que possa ser a Realidade - seja esta o que seja e esteja onde estiver, - o homem se compromete por um caminho ou outro que lhe pareça ser o de sua salvação. 
O budismo Zen propõe uma meditação sentada com as pernas cruzadas “zazen”, como meio mais autêntico de obter o modo especial que permitirá ver a realidade tal como é, em sua nudez original.
Zazen”  é  uma postura psicossomática, graças a qual a tendência naturalmente centrífuga do espírito pode ser inflexionada e orientada no sentido contrário, até que o pseudo-ego se perca finalmente na realização do Ser vardadeiro que indicamos por meio da fórmula  ( S  ) .
O Zen considera que este tipo de postura psicossomática é uma necessidade para a realização do verdadeiro ser, quer dizer, de superconsciência, porque o ser real, nunca pode ser encontrado por meio de um processo puramente mental, quer se trate de imaginação, de representação ou de pensamento. Porque não é questão neste caso de um simples problema de conhecimento. O problema não é de conhecer o ser verdadeiro, senão o de converter-se nele [reconhecer-se].  Se não descobrimos que somos Um com ele, nenhum conhecimento poderá ser de algum valor. Se tentarmos conhece-lo doutro modo ele se transformará em um “objeto”, a conhecer. O ser, enquanto que objeto a conhecer, por mais alto que seja esse conhecimento não escapará da dualidade sujeito-objeto. Para realizar o ser em estado de subjetividade pura e absoluta é necessário que nos “convertamos”, em lugar de “conhecer” simplesmente. Para  se conseguir este estado, a unidade total do “corpo-espírito” , deve precipitar-se [compreender que sempre fomos Um com o Ser]. “Zazen”  é, segundo  o Zen, o melhor caminho possível, senão o único, de realizar em primeiro lugar a unidade “espírito-corpo”, logo a unidade mesma “em precipitação”.
A expressão “espírito-corpo-precipitado” significa, na terminologia budista mais tradicional: experimentar com todo o ser o estado metafísico-epistemológico do Nada [ em sânscrito: “Sunyatâ”, em chinês: “k’ung”, em japonês:“ku”]  Entretanto, o termo Nada, tal como utiliza o Zen, deve ser compreendido em um sentido muito particular.
O Nada, neste contexto, se refere em primeiro lugar ao estágio último na atualização da consciência Zen; estágio no qual o ser, cessando de colocar-se ante si mesmo como “objeto”, “se converte” no ser mesmo; e isto de um modo tão profundo que já nem sequer é seu próprio ser. De fato, este é um dos princípios filosóficos fundamentais do budismo Zen: que quando uma coisa   - seja qual for -  se converte em seu próprio ser, plena e absolutamente, até as fronteiras do possível, termina por forçar seus limites e por ultrapassar suas determinações. O  Nada se refere  em primeira instância a anulação do ser empírico, do ego, concebido e apresentado como uma entidade autônoma. O centro do ego, que se distinguiu até este momento de todos os outros, está  agora destruído e anulado. Porém a anulação do ego, tal como concebido no budismo Zen, não pode ter como conseqüência uma anulação total da consciência. O  nada epistemológico do qual fala o Zen não deve se confundir com o estado de pura inconsciência.
Para falar a verdade, a consciência do “eu mesmo”, tal como aparece na fórmula citada acima (EU VEJO) eu mesmo, desapareceu. Neste sentido e somente neste sentido, o Nada epistemológico é uma região do inconsciente. No entanto, no lugar da consciência do ego se encontra, atualizada, a Consciência Absoluta mesma, que expressamos pela fórmula ,  ou por  VER  , e que trabalhou no campo de ação do ego empírico. O Zen a chama freqüentemente de “Consciência definitivamente lúcida” ou “liao liao ch’ang chih”, expressão atribuída ao segundo patriarca  Zen, Hui K’o (487-593). Falando apropriadamente, não há nesta tomada de consciência absoluta nenhuma espécie de “EU”, de modo que a fórmula ,  ou  EU VEJO,  deve ser reconvertida, como já vimos, a unicamente  VER. Longe de ser o Nada na acepção negativa do termo, se trata de uma consciência extremamente intensa - quase diríamos violenta, - tão intensa que escapa a qualquer descrição verbal.
Na correspondência exata com a transformação total do sujeito, uma mudança radical acaba  de operar-se do lado dos “objetos”, a um ponto tal que deixam de existir enquanto  que objetos. Naturalmente, posto que onde não existe “sujeitos”,  é impossível que continuem  existindo “objetos”. Todas as coisas, nesse estágio, perdem suas delimitações essenciais. E, como não estão mais confinadas por seus próprios limites ontológicos, todas se fundem umas as outras, refletindo cada uma a outra e sendo refletida por esta no campo sem limites do Nada. 
A montanha já não é aqui montanha, o rio deixa de ser rio, porque, na esfera subjetiva da visão, “eu” deixei também de ser “eu”.
A experiência do Nada não significa de modo algum que nossa consciência deve ficar totalmente vazia e sem conteúdo. Muito ao contrário, a consciência é aqui o próprio Ser em sua pureza primitiva, pura Luz ou Iluminação. é o VER anteriormente evocado.
Porem esta iluminação, iluminando-se a si mesma, ilumina ao mesmo tempo o mundo inteiro do Ser. Isto significa que, por parte do “objeto” também, as coisas não são simplesmente reduzidas a “nada”,  no sentido negativo do termo.
Realmente, nenhuma existência individual pode existir de maneira autônoma. O que não quer dizer que sejam simples nulidades. Ao contrário estão aí enquanto individualidades concretas, sendo ao mesmo tempo atualizações do aspecto sem limites, do aspecto “sem” aspecto de um Ato constantemente  mutante e criador. Porém este Ato é, para a consciência Zen a Iluminação de VER a si mesmo, que acabamos de definir como o lado “subjetivo” da experiência do Nada.
Em lugar de descrever o VER como Luz ou Iluminação, o Zen substitui freqüentemente este simples verbo VER pelo termo “hsin”,  ou  Espírito. E fala muitas vezes de todas as coisas como se fossem produto do Espírito. Esta afirmação como outra similares, não repousam em uma visão idealista que reduziria tudo ao “pensamento” ou às “idéias”.
Porque o Espírito, tal como entende o Zen, não é de modo algum o espírito de pessoas individuais. O que se entende por Espírito é a Realidade antes de sua divisão entre “espírito” e “coisa”, quer dizer, um estado anterior a dicotomia  “sujeito-objeto”.
Que pensas ser a Realidade?  A Realidade não é mais que  o Espírito-Realidade. Ele não tem forma definida. Impregna e percorre todo o universo. Está neste instante e neste lugar vivamente presente. Porém os espíritos das pessoas comuns  não estão suficiente maduros para vê-lo. Põe nomes por toda parte, aplicam conceitos  (tais como  Absoluto, Santo, Iluminação, etc.) e buscam em vão a Realidade entre esse nomes.
Agora estamos em condições de analisar de um modo mais teórico a estrutura básica da epistemologia Zen. para isso, queria introduzir o conceito de “Campo”.
Porque o “lugar” em torno do qual temos nos movido até agora recorrendo ao termo chave  “Espírito” pode ser apresentado filosoficamente  como uma espécie particular de Campo dinâmico,  a partir do qual se pode obter, por meio da abstração o sujeito que percebe e, sempre por abstração , o objeto percebido. O Campo compreendido nesses termos se refere à unidade original e não fragmentada do todo, funcionando como algo previsto epistemológicamente por nossa experiência do mundo fenomênico.
O pensamento filosófico do Zen - e do budismo em geral - se funda e se centra sobre a categoria da “relatio” e não sobre a da “substantia”. O mundo inteiro de Ser, é considerado do ponto de vista relacional. Nada deve ser visto como autônomo e independente. O sujeito é sujeito porque se relaciona com o objeto. O objeto é objeto porque esta relacionado com o sujeito. Não há neste sistema, nenhuma “coisa em si”. O  “em si”  se nega do modo mais absolutamente formal, porque uma coisa não pode colocar-se como coisa senão quando está penetrada pela luz do sujeito. Igualmente, não há sujeito que careça de uma referencia à esfera das coisas. E como o sujeito, que é deste modo essencialmente relativo ao objeto é, como já vimos, ao mesmo tempo “espírito” individual e “Espírito” universal, o conjunto, ou seja, o Campo mesmo, deve necessariamente também ser de natureza relacional. Há, de fato, uma relação entre o sensível e o supra-sensível. Diante deste ponto de vista, o que chamamos e consideramos ordinariamente como “espírito” (ou sujeito, “consciência”, etc.) não é mais que uma abstração. 
Não convém confundir o Campo com o aspecto puramente objetivo do mundo do Ser, quer dizer, com a natureza concebida como algo que pudesse existir independente do “espírito”. Nem devemos também confundi-lo com a consciência puramente objetiva do ser humano.
 Extratos do livro:    EL KÔAN ZEN - Ensayos sobre el budismo Zen - Editorial Eyras 
[Texto selecionado por Flavio Capllonch Cardoso para SAKYA KUN KHIAB CHO LING].

 
  
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