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VISÃO ZEN DO SER
Toshihiko Izutsu
Vamos examinar as duas possibilidades teóricas de interpretação
do que poderíamos chamar a experiência Zen, ou a visão
Zen do Ser, formada pela exteriorização do interior, em primeiro
lugar, em segundo, pela interiorização do exterior. Eu qualifico
estes dois caminhos, aparentemente opostos, como possibilidades teóricas,
posto que elejamos um ou outro, o resultado será sempre o mesmo.
Desembocaremos em uma mesma visão do Ser tanto de um modo como de
outro. No entanto, de um ponto de vista histórico, alguns mestres
Zen adotaram a primeira destas vias , enquanto outros elegeram a segunda.
Comecemos, então, pela exteriorização do interior. |
Em um contexto Zen, a exteriorização do interior começa
com a perda da consciência do ego no homem que entra em contato com
um objeto “exterior”. Ao perder a chamada consciência do ego - sujeito
empírico - segundo o budismo, responsável pelo obscurecimento
de nossa olhada espiritual. - o ser humano se perde no objeto. “O homem
se faz objeto”, podemos expressar-nos com o princípio Zen corrente:
“O homem se converte em bambu”, por exemplo, ou o “o homem se converte
em flor”. Dôgen escreve em uma passagem muito conhecida de sua obra
Shôbôgenzô: |
A ilusão consiste em colocar no lugar o
ego-sujeito e em trabalhar através dele sobre os objetos. A iluminação,
ao contrário, consiste em deixar que as coisas atuem sobre nós
e nos iluminem... Contemplando uma determinada coisa, façamos que
todo nosso corpo-espírito se integre no ato; façamos o mesmo
escutando um som [ de tal modo que nosso ego possa perder-se e fundir-se
na coisa vista ou ouvida ]. Então e somente então, estaremos
em condições de captar a realidade em sua aseidade*
primeira. Nossa compreensão espiritual da coisa não será
a de um espelho refletindo a imagem de algo tal como a lua se reflete na
superfície da água [posto que o espelho e a coisa refletida
por ele, a água ou a lua, seguem sendo sempre duas entidades que
conservam cada uma sua própria identidade]. Na unificação
espiritual de nós mesmos e de uma coisa, ao contrário, se
um dos dois se manifesta, o outro desaparece totalmente, fundido no primeiro.
[O que quer dizer que na situação aqui tratada o “eu” desaparece
completamente e somente se manifesta a coisa sozinha]. |
Agora, disciplinar-se no caminho de Budha não significa mais
que disciplinar-se ante o próprio Ser. Disciplinar-se diante
do Ser, por sua parte, somente significa esquecer. Esquecer o próprio
ego significa unicamente ser iluminado pelas coisas “exteriores”. E ser
iluminado pelas coisas não é outra coisa que apagar as diferenças
entre nossos chamados egos e os chamados egos das outras coisas. |
Está claro que uma identificação espiritual profunda
com todas as coisas da natureza é precisamente o que caracteriza
a exteriorização do interior, tal como chega a ser vivida
sob a forma de uma total imersão do ego humano num objeto - imersão
tão completa que o termo “objeto” perde sua base semântica,
No domínio mais limitado do prazer estético, esta espécie
de identificação é normalmente vivida quando, por
exemplo, se escuta intensamente uma bela música. |
Música tão profundamente escutada que não
mais a escutamos, pois que nós mesmos somos a música enquanto
dura...
[T.S.Elliot: Four Quartets] |
Tal como observa acertadamente William Johnston: “Neste intenso
momento, tão característico, a música é escutada
tão profundamente que já não existe uma determinada
pessoa que a escuta nem a música escutada: já não
há um “eu” oposto à música; há simplesmente
música, sem sujeito nem objeto”. Em outras palavras, o universo
inteiro está cheio de música, é música. |
Porém perder-se a si próprio e “converter-se em” música,
em bambu, em flor ou no que seja, não constitui de modo algum uma
experiência Zen no seu sentido pleno. Quando nos encontramos no estado
de total unidade com o “objeto” que for, o que então se produz,
enquanto se está totalmente absorto na contemplação
da coisa, estamos unicamente nas portas do Zen. Falando com propriedade,
tal estado ainda não é o Zen, porem pode nos levar a uma
coisa muito singular. A iluminação, segundo a tradição
do Zen, ainda esta longe de sua realização. |
Suponhamos que me encontro contemplando intensamente uma flor. Suponhamos
que, nesta situação, me perco a mim mesmo e entro na flor,
da maneira que indicamos acima. Do ponto de vista do Zen não é
este o estágio último da disciplina espiritual. O Zen me
pede que siga além, até alcançar o que a terminologia
tradicional designa como estado anterior à distinção
sujeito-objeto. Que dizer, que minha imersão na flor deve cumprir-se
até o ponto em que não reste absolutamente nada da consciência
de mim mesmo, nem sequer da consciência da flor. Este estado espiritual
de unificação absoluta, que é, psicologicamente falando,
uma espécie de inconsciência, implica o total desaparecimento
da flor, ou da música, igualmente que o total desaparecimento do
“eu”. Em semelhante estado, não há nenhuma flor, música,
do mesmo modo não há nem rastro do “eu”. |
O que aqui se atualizou realmente é Algo absolutamente indiferenciado
e indivisível: uma pura consciência sem sujeito e objeto. |
Porém nem sequer aí se encontra o último estágio.
Para que haja uma experiência de iluminação, o ser
humano deve ser despertado desta consciência pura. O Algo absolutamente
indiviso se divide novamente em “eu” e, por ex.: em flor. E no preciso
momento desta divisão, a flor emerge de modo súbito como
Flor absoluta. É uma flor que se abre em uma atmosfera essencialmente
diferente daquela na qual se abre uma flor comum. E, no entanto, ambas
são uma só e única flor. É exatamente esta
situação a qual evoca Dôgen quando aponta que “a montanha
e os rios [tal como aparecem no estado de iluminação] não
devem se confundir com as montanhas e os rios comuns, ainda que sejam
as mesmas montanhas e rios que contemplamos sempre. |
Nada pode apresentar melhor e de modo mais típico do Zen no
processo de instauração desta visão do mundo que as
reflexões do mestre Ch’ing Yüan: |
Há trinta anos atrás, antes que este velho monge
começasse a praticar o Zen, eu contemplava uma montanha como se
fosse uma montanha e um rio como se fosse um rio. |
Tive a sorte de encontrar mestres iluminados e pude, alcançar
assim um certo grau de despertar. Em tal estado, quando contemplava uma
montanha, já não era uma montanha! E, quando via um rio,
não se tratava de um rio! |
Agora me encontro em um estado de quietude última. Do
mesmo modo que nos meus primeiros anos, vejo uma montanha simplesmente
como uma montanha e um rio simplesmente como um rio. |
Aqui temos a visão da realidade característica do Zen
e claramente descrita em três estágios: |
1. O estado inicial,
correspondendo a experiência do mundo que tem um ser humano comum,
na qual o conhecedor e o conhecido estão claramente diferenciados
um do outro como duas entidades separadas e onde uma montanha, por ex.,
é vista pelo “eu” que percebe como uma coisa objetiva chamada montanha. |
2. O estado intermediário,
corresponde ao descrito como estado de identificação absoluta,
de unificação total; estado espiritual anterior a distinção
de sujeito-objeto. Neste estado , o chamado mundo exterior se despe de
sua solidez ontológica. E inclusive a expressão: “eu vejo
uma montanha” é num sentido rigoroso uma afirmação
errônea, posto que não há mais um “eu” que vê,
nem uma montanha a ser vista. Se existe algo aqui, é a presença
absolutamente indivisa de Algo que se ilumina eternamente, como universo
total. Em tal estado, uma montanha não é seguramente uma
montanha: a montanha é irreconhecível a não ser que
se tome como não-montanha. |
3. O estado final, de
liberdade e de quietude infinitas, em que o Algo indiviso se divide em
sujeito-objeto no meio da unidade primitiva, a qual permanece intacta apesar
da aparente dissociação sujeito-objeto. Resulta disso que
o sujeito e o objeto se separam um do outro e, ao mesmo tempo estão
fundidos um no outro, porque a separação e a fusão
são um só e mesmo ato de Algo originalmente indiviso. Desta
modo, no instante mesmo em que “eu” e a montanha saem do Algo, se fundem
um no outro formando uma entidade: essa coisa única que se coloca
como Montanha absoluta. E, no entanto, essa Montanha absoluta, escondendo
em si mesma uma natureza complexa, tal como mostramos, não é
somente uma simples montanha. Assim é a natureza da exteriorização
do interior, tal como se entende no contexto Zen. |
Examinemos agora o processo inverso, quer dizer, a interiorização
do exterior, pelo qual o mundo da Natureza [o chamado mundo exterior] se
interioriza e se coloca enquanto paisagem “interior”. Como apontei anteriormente,
o acontecimento espiritual subjacente é o mesmo em ambos casos.
Como poderia ser de outro modo? Não é possível
que haja duas experiências Zen que sejam tão diametralmente
opostas. Através de sua história, o Zen tem sido sempre um,
porém produziu formas divergentes nos níveis teóricos,
quanto aos modos pelos quais o ser humano pode realizar a experiência
da iluminação e quanto ao que sucede imediatamente depois.
A interiorização do exterior não é diferente,
neste sentido, à exteriorização do interior. |
Nesta última, a nota dominante era uma identificação
profunda do ser humano com as coisas da natureza. A fórmula base
era: o ser humano perde seu “eu”, morre para si mesmo, se funde em uma
coisa exterior, logo perde de vista a coisa exterior para renascer
finalmente sob a forma desta coisa exterior particular, como manifestação
concreta do mundo inteiro do Ser. O homem, em resumo, se converte
na coisa e é a coisa mesma; e, sendo a coisa, ‘’é o Todo”. |
No caso da interiorização do exterior, ao contrário,
o ser humano experimenta subitamente que aquilo que pensava ser exterior
a si mesmo, é na realidade interior. O mundo não existe
fora de mim; esta em mim mesmo, sou eu mesmo. Tudo aquilo que o ser
humano havia imaginado até este instante se desenvolvendo no exterior
dele mesmo se produziu, realmente, no espaço interior. Porém
como compreender esse espaço interior? Será o espírito
humano um espaço interior no qual todas as coisas existem e se produzem
como coisas interiores e acontecimentos interiores? Esta questão
levanta diretamente o problema do Espírito tal como é
concebido pelo Zen. |
O célebre “kôan” da flâmula batida pelo vento, de
Hui-Nêng. é uma clara ilustração do tema. |
Um dia Hui-Nêng escutava uma leitura sobre o budismo em um dos
templos, quando se levantou subitamente um vento e começou a bater
a flâmula da porta do templo. Então teve lugar o incidente
relatado no “kôan”: |
Quando estava ali o Sexto Patriarca, o vento começou a tremular
a flâmula. Dois monges se puseram a discutir sobre o fato. Um deles
apontou: “Olha! A Flâmula se agita!”, o outro respondeu: “Não!
É o vento que se agita!”. |
Discutiram interminavelmente sem poder chegar a conclusão
alguma. Bruscamente, Hui-Nêng pôs fim a estéril discussão
dizendo: “Não é o vento que se agita, tampouco a flâmula.
Queridos irmãos, são vossos espíritos que se agitam”.
Os monges se calaram. |
Em minha maneira de ver, aqui temos o caso mais claro de interiorização
do exterior. O vento sopra no espírito. A flâmula tremula
no espírito. Tudo sucede no espírito. Nada fica no exterior
do espírito. A flâmula batendo ao vento deixa de constituir
um acontecimento que sucede no mundo exterior. O acontecimento inteiro
[e, implicitamente, o universo inteiro] se interioriza e se representa
como constitutivo do espaço interior. De fato, a estrutura da interiorização
de que se trata não é tão simples como possa parecer
à aqueles que leiam este “koan” sem conhecimento prévio do
ensinamento Zen. Tratemos de esclarecer a coisa de um angulo um pouco diferente. |
Chao Chu perguntou a seu mestre Nan Ch’üan quando ainda era um
noviço: Qual é o Caminho? [Quer dizer, a Realidade absoluta?];
o mestre respondeu: “O espírito comum: esse é o Caminho”.
Desta célebre fórmula, o mestre Wu Mên deu uma interpretação
poética em seu comentário ao “koan”: |
As flores perfumadas na primavera, a lua prateada no
outono,
a brisa fresca no verão, a branca neve no inverno.
Se o espírito não se perturba ante perguntas
banais,
cada dia será um instante feliz na vida dos
homens. |
Qual será, pois, esse espírito comum no qual se
abrem as flores na primavera, no qual brilha a lua no outono, no qual sopra
uma brisa refrescante no verão e a neve branqueia no inverno?
Esses dados característicos das quatro estações
são apresentados por Wu Mên como uma paisagem interior do
“espírito comum”, o mesmo que o tremular da flâmula
era para Hui-Nêng o tremular interior do espírito. |
Esta claro, em primeira instância, que o espírito
de que se trata aqui é o do ser humano em estado de iluminação,
o espírito iluminado. O espírito comum de Nan Ch’üan
não é , neste sentido, um espírito realmente comum.
Ao contrário. Longe de constituir a consciência empírica
da substância-ego normalmente designada com esta palavra, o
que se entende por espírito comum é o Espírito [chamado
tecnicamente de não-espírito], que se realiza em um estado
espiritual anterior à distinção sujeito-objeto, ou
que transcende a essa distinção; o espírito comum
como lugar de nossa consciência empírica. É a Realidade,
o fundamento mesmo do Ser, eternamente presente ante si mesmo. |
Um fato insólito que concerne a este espírito
é que não funciona nem pode funcionar de modo concreto com
nossa consciência empírica. O espírito é
uma realidade noumênica** que funciona unicamente
no fenomênico, Precisamente neste sentido Nan Ch’üan o chama
de espírito comum. E a flâmula, o desabrochar das flores
na primavera podem ser dados como acontecimentos interiores também
e unicamente neste sentido, nada existe, de fato, fora do espírito,
nem nada acontece fora do espírito. Tudo quanto existe como fenômeno
no chamado mundo exterior não é mais que uma forma que manifesta
o espírito, o nous. Isso é o que nós entendemos sob
o termo espírito com E maiúsculo. |
A estrutura do Espírito assim entendida é de uma natureza
aparentemente contraditória; por um lado, é inteiramente
diferente da consciência empírica, por outro lado se identifica
completa e indissoluvelmente à consciência empírica.
A fórmula de Nan Ch’üan: “o espírito ordinário:
esse é o Caminho”, se refere precisamente com esse último
aspecto do Espírito. |
Há um antigo adagio Zen que diz: |
“As montanhas, os rios, a terra, tudo quanto existe, tudo que acontece,
tudo, sem a mínima exceção, é vosso próprio
espírito”. |
Comentando esta afirmação , o mestre Musô faz a
seguinte reflexão: “Há monges que tem a tendência
a crer que determinadas atividades quotidianas, como comer, beber, lavar
as mãos, trocar de roupa, ou ir dormir são atos profanos
que nada tem a ver com a disciplina Zen; esses monges pensam que não
praticam seriamente o Zen senão quando estão sentados
com as pernas cruzadas em meditação”. Segundo o mestre
Musô cometem um grave erro, “porque reconhecem coisas fora do espírito”,
quer dizer, porque crêem que o mundo existe fora do seu “próprio”
Espírito. São seres que ainda não compreendem o verdadeiro
sentido da sentença: “As montanhas, os rios e a terra são
vosso próprio espírito”. Em outros termos, ignoram
totalmente a natureza do Espírito que está em ato em todo
momento nos espíritos “comuns” dos seres humanos”. |
Um monge perguntou certo dia ao mestre Chao Chu: “Que
espécie de coisa é meu espírito?”.
Chao Chu respondeu perguntando ao monge: “Fizeste a
tua refeição?”
O monge disse que sim.
Então Chao Chu lhe ordenou: “Então vá
lavar a cuia!”. |
O monge tem fome e come. Quando termina lava a cuia. Chao Chu lhe indica
como o Espírito esta em ato nessas atividades naturais e banais.
Em cada um dos espíritos ocupados nos afazeres mais
comuns, o Espírito está sem dúvida nenhuma em ato.
O “espírito comum” é , desse modo, o lugar energético
espiritual infinito, lugar de uma energia que, uma vez descartada sua tendência
individualizadora, pode estender-se instantaneamente por todo o Universo. |
Desde o ponto de vista de mestres experimentados como Nan Ch’üan
e Chao Chu, o espírito comum é simplesmente um espírito
comum. Porém guarda em seu bojo a presença do Espírito.
É o espírito comum que experimentou do não-espírito.
Dito de outra forma, o espírito comum não é nossa
consciência empírica tal como nos é dada a princípio,
porém o espirito comum obtido depois da experiência efetiva
da iluminação. Os velhos livros Zen abundam em exemplos que
demonstram até que ponto os principiantes se viam em dificuldades
para compreender isto. |
Um monge pediu um dia ao mestre Chang Sha: “Como é possível
transformar [quer dizer interiorizar] as montanhas, os rios e a grande
terra, para reduzir tudo ao meu espírito?”. |
Chang Sha respondeu: “Como é possível, efetivamente,
transformar as montanhas, ao rios e terra para reduzir tudo ao meu próprio
espírito?”. |
No célebre “mondô” que acabamos de inserir, o monge põe
em dúvida a validade do refrão Zen: “Todas as coisas são
Espírito”. Fazendo isso, adota a posição do realismo
mais ingênuo. Aos seus olhos, o Espírito é o espírito
comum, é consciência empírica, dirigida para as montanhas
e os rios como para objetos exteriores a si mesmo. A resposta de Chang
Sha é uma questão puramente retórica, que significa
que para ele é absolutamente impossível trazer o mundo exterior
ao espaço interior de tal espírito. O monge, portanto, nunca
poderia compreender. |
O fato de que o espírito, no sentido que entende Chang
Sha, não seja em si mesmo um mundo interior, oposto ao mundo exterior,
está claramente sublinhado neste célebre mondô: |
Um monge perguntou a Chang Sha: “Que espécie
de coisa é meu espírito?”
Chang Sha lhe respondeu: “O universo inteiro
é teu espírito”.
O monge: “Se assim fosse, não teria onde ficar”.
Chang Sha: “Ao contrário, esse é precisamente
o lugar onde ficar”.
O monge: “”Qual é, pois, o lugar onde devo ficar”.
Chang Sha: “Um imenso oceano! A água é
profunda, insondavelmente profunda”.
O monge: “Isso ultrapassa minha compreensão”.
Chang Sha: “Olha os peixes! Grandes ou pequenos, se
movem por toda parte, como querem”. |
Há uma fundamental carência de compreensão entre
o monge e Chang Sha. Porque o monge fala do espírito como de
sua própria consciência individual, empírica, enquanto
que Chang Sha fala do Espírito. Em lugar de acentuar a identidade
entre o espírito empírico e o Espírito cósmico,
o mestre os distingue intencionalmente um do outro e tenta fazer
com que o monge tome consciência e que considere seu próprio
espírito como Algo que é como um imenso oceano, de insondável
profundidade, no qual os peixes, grandes ou pequenos - quer dizer, tudo
quanto existe - tem seu lugar e gozam de infinita liberdade. |
O mestre Hung Chih expressa a mesma idéia de forma poética: |
A água é límpida, transparente
até as profundezas,
os peixes nadam lentamente nela com prazer.
Imensos são os céus, espaço sem
limites,
os pássaros voam longe, muito longe. |
Igualmente o mestre Dôgen: |
Os peixes na água!
Nadam e nadam, sem alcançar jamais os seus limites.
Os pássaros no céu!
Voam e voam sem alcançar jamais seus limites. |
Nada poderia descrever com mais beleza que estas palavras a paisagem
interior do Espírito. Unicamente na dimensão metafísica
do Espírito podem ser descritas “as montanhas, os rios e a grande
terra” como presentes “no interior do espírito”. Porque toda coisa
singular é, de certo modo, um aspecto ou outro do Espírito,
todo acontecimento é acontecimento do Espírito. Essa é
a interiorização do exterior, tal como compreende o Zen. |
Para terminar, devo chamar novamente a atenção sobre
o que sublinhei no princípio: O problema do interior e do exterior
não é, apesar de tudo, mais que um pseudo-problema, do ponto
de vista Zen. Uma vez feita a distinção entre interior e
exterior, o problema de sua relação recíproca pode
- ou deve - desenvolver-se em termos de exteriorização do
interior e de interiorização do exterior. Porém
não há nenhuma distinção deste tipo, falando
propriamente; a distinção mesma é ilusão. Permita-me
citar novamente um koan : |
Um monge perguntou certo dia ao mestre Chao Chu:
“Quem é Chao Chu?”
E Chao Chu respondeu: “Porta Este, porta Oeste, porta
Norte, porta Sul”. |
Quer dizer: que Chao Chu está totalmente aberto. Todas as
portas da cidade permanecem abertas e nada fica escondido. Chao Chu se
situa exatamente no centro da cidade, quer dizer, no centro do universo.
As portas que em outras ocasiões foram levantadas para separar o
interior do exterior estão agora abertas de par em par. Não
há interior, não há exterior. |
Somente Chao Chu, que é transparência pura. |
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Extratos do livro: EL KÔAN ZEN - Ensayos
sobre el budismo Zen - Editorial Eyras
[Texto selecionado por Flavio Capllonch Cardoso para SAKYA KUN
KHIAB CHO LING].
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* Aseidade : Qualidade ou
caráter do ser que tem em si mesmo a causa e o princípio
do próprio ser. |
** Nôumeno : Realidade
inteligível, essência, oposta a realidade sensível,
fenômeno. |
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