S.S. XIV DALAI LAMA
 
ALÉM DAS DIFERENÇAS
 
 
 
 
 
 
 
 
Conferencia pronunciada no Maracanãzinho, 
Rio de Janeiro, 10 de junho de 1992
 
 
Embora seja esta a primeira vez que venho a esta parte do mundo, há um sentimento quando  viajo para qualquer parte do mundo e vejo tantas pessoas...  tenho a sensação de que, apesar de tantas diferenças, nós todos somos seres humanos iguais. 
A partir da minha própria experiência  também consigo sentir os sentimentos das outras pessoas. 
Todos nós, por nossa própria natureza, temos a sensação de que devemos buscar algo melhor, de ser mais feliz, de termos um futuro cheio de luz. 
Às vezes  penso que minhas próprias experiências são úteis para os outros também. Pois a maior parte de minha vida até hoje foi vivida sob condições difíceis, foram períodos difíceis.
Assim, sob esse ponto... e nessas condições difíceis, aqueles momentos,  aqueles estados mentais  que me propiciaram felicidade e  clareza mental, sobre isso eu gostaria de falar aqui para vocês hoje.
Basicamente o propósito de nossa vida é a felicidade.
E ao mesmo tempo, nas nossas vidas, e isso faz parte da condição humana,  nós vamos estar encontrando períodos difíceis.
Nas circunstâncias difíceis, se nós fizermos uma tentativa de buscar respostas e soluções  nas coisas externas estaremos equivocados.
Isso porque a mente desempenha um fator básico nas nossas vidas. Se uma pessoa estiver cercada por uma situação externa que lhe seja hostil, e se ainda assim ela conseguir preservar a clareza, a serenidade mental vai ser pouco afetada pelas circunstâncias externas. 
Se alguém estiver mentalmente infeliz, mentalmente intranqüilo, mesmo cercado das melhores condições, as melhores facilidades, esta pessoa não vai sentir um sentimento de felicidade. 
Se nós observarmos os países mais ricos, onde vivem pessoas para quem nada material lhes falta, ali poderíamos esperar que aquelas pessoas tivessem ótimas condições mentais também, mas o que às vezes vamos encontrar ali são pessoas muito perturbadas e aflitas. 
Portanto nós não podemos negligenciar a parte mental. 
Se nós conseguirmos equiparar o desenvolvimento material com o desenvolvimento mental vamos ver que as pessoas vão se tornar mais felizes e assim como toda comunidade, todo o mundo vai ter maiores chances de felicidade. 
Agora a questão: como podemos conseguir paz de espírito, serenidade mental? 
Em certas circunstâncias através das preces, da meditação.
Mais do que isso, através do exame da nossa condição mental, através do treinamento da mente. 
A semente da paz mental é a compaixão (prolongadas palmas).
Vamos analisar um pouco mais para ver como a compaixão pode nos proporcionar a paz de espírito. 
Primeiramente eu gostaria de explicar qual é o significado de compaixão.
Compaixão não é somente um genuíno sentimento de proximidade entre pessoas, mas também um verdadeiro sentido de respeito e de responsabilidade pessoal. 
A paz, a compaixão nasce da compreensão de que todos os seres não querem o sofrimento, e querem chegar à felicidade, e querem ter os meios de alcançar a felicidade. Quando nós temos essa compreensão, nós temos a base da compaixão (palmas).
Compaixão não um sentimento que sentimos em relação àquelas pessoas que estão próximas de nós, nossos amigos íntimos, não é disso que eu estou falando. Estou falando, sim, da compreensão, do  entendimento de que existe um Direito à Felicidade, um Direito de as pessoas serem felizes, e de  buscarem a felicidade, e de um respeito nosso quanto a este Direito. Esta é a verdadeira base da compaixão, aquele tipo de compaixão que também se manifesta em relação aos inimigos (palmas). 
Aquele tipo de sentimento que sentimos em relação aos amigos íntimos é quase sempre um sentimento de apego. E o apego, na verdade, vem carregado de preconceitos. A compaixão é isenta de preconceito. O apego normalmente parte de uma projeção mental, de que aquela pessoa nos parece algo bom, algo belo, e aquele sentimento aí se desenvolve. No momento em que aquela aparência muda, ainda que a pessoa seja a mesma, aquele sentimento normalmente acaba.
Assim é importante distinguir apego de compaixão. E é importante ter compaixão sem apego.
Era isso o que eu queria falar acerca da compaixão.
Pois quando um indivíduo desenvolve esse tipo de sentimento automaticamente se lhe abre a porta interior. 
Se você olha por esse ângulo, todas as pessoas são seus velhos amigos. 
Porque, depois que você abre aquela porta interior, você pode se comunicar com qualquer outra pessoa. Como se elas fossem nossos velhos amigos. 
Esta é a verdade que elimina o medo, a desconfiança de uma pessoa por outra. Desenvolve autoconfiança. Desenvolve determinação.
 Por isso a compaixão é uma fonte de força interior. 
Para nós termos uma vida mais feliz, um futuro mais feliz, esta autoconfiança é determinante. 
Por outro lado, se nós alimentamos emoções negativas, como por exemplo o ódio, essa negatividade automaticamente fecha a porta interior. 
E aí, nessas circunstâncias, a comunicação com o outro fica muito difícil. E nasce o sentimento de suspeita, de dúvida. 
Por isso digo que a compaixão é a real fonte da felicidade. Da paz mental.
Agora, para sermos mais práticos, seria muito útil fazermos uma distinção entre raiva e ódio.
Ainda que seja melhor que a raiva também não exista. Embora nós devamos reconhecer que em certas ocasiões, em certas circunstâncias, com uma motivação adequada, com uma motivação de compaixão, a raiva possa aparecer. 
É importante fazermos esta distinção entre raiva e ódio, é importante que a raiva apareça sem ódio (palmas). 
Da mesma forma que nós escolhemos no mundo exterior aquelas coisas que nos são benéficas e afastamos aquelas outras coisas que nos fazem sofrer, da mesma forma no mundo mental existem vários estados mentais, uns nos fazem bem, outros nos fazem muito mal e nós devemos evitar, como a raiva e o ódio.
Devemos cultivar os bons e abandonar os maus estados mentais. 
Muitas vezes quando falamos de compaixão, amor e perdão, as pessoas pensam que tais questão são questões religiosas. Sem dúvida todas as religiões do mundo vão tratar desses valores e vão incorporá-los. 
Mas eu penso que podemos fazer uma distinção entre religião e valores humanos básicos, fundamentais. 
Sem dúvida as diferentes religiões e a fé têm o seu valor para  cultivarmos essas qualidades humanas fundamentais. Porém é possivel o ser humano sobreviver sem religião, mas sem compaixão, sem afeto o ser humano não consegue sobreviver.
Se observarmos o ser humano desde a sua concepção até o final de sua vida nós vamos ver que em cada momento o afeto, a afeição está na base da vida do ser humano todo tempo. 
Por exemplo na sua concepção: se amor e afeto não estão presentes no ato da concepção provavelmente nos vamos ver um efeito indesejável como por exemplo crianças que nascem e não são amadas por seus pais. 
As crianças que recebem afeição e carinho têm uma saúde melhor,  têm um estado mental melhor e podem aproveitar melhor a educação a que têm acesso.
Por outro lado, uma criança privada de carinho vai ter mais dificuldade em aprender, desenvolver o seu potencial mental, estará mais sujeita a perturbações. O que mantém o ser humano é a mansidão, a docilidade, e não a agressividade (palmas). O próprio corpo humano gosta da afeição humana, é fácil nós nos convencermos disso, basta nós observarmos o nosso corpo e vermos como ele aprecia a docilidade. 
De acordo com alguns cientistas após o nascimento da criança o contato físico é vital para que o seu cérebro cresça apropriadamente. 
De acordo com a nossa experiência diária  se nós conseguimos manter uma serenidade, se temos amigos íntimos, isso faz com que nossa saúde mesmo física seja melhor. 
A pessoa que carrega a compaixão dentro do coração não precisa buscar ajuda e alívio em tranqüilizantes e sedativos. 
A mente compassiva é  fonte de boa saúde.
Por outro lado, se sofremos de ódio, se somos tomados por estados mentais muito agitados, aos poucos isso afeta nossa digestão, nosso sono e com o tempo a nossa saúde. 
E uma outra razão - e isto é uma característica singular no ser humano - nós temos o nosso sorriso. 
É possível que alguns macacos também tenha capacidade de sorrir. O sorriso, o sorriso gentil, alegre e genuíno, não o sorriso social e diplomático ou sarcástico, mas o sorriso interior e autêntico, ele mesmo provoca felicidade.
Porque a natureza humana é de que nós somos sociais. E do contato  com a sociedade humana o afeto é a chave. 
Eu penso que temos um número suficiente de razões para afirmar que a natureza humana é afetuosa. 
Cada ser humano tem a semente do altruísmo. A semente da compaixão (palmas). É muito importante compreender isso. 
Isto faz nascer a nossa responsabilidade, os nossos esforços para que desenvolvamos essa potencialidade, para atingirmos essas metas. 
E paralelamente a este trabalho de fazer aumentar a nossa compaixão é importante o nosso maior empenho para reduzirmos o ódio. 
Na vida como seres humanos é inevitável que, num momento ou noutro, coisas desagradáveis estejam acontecendo conosco. 
Quando nos deparamos com esses infortúnios é necessário que nós olhemos para esse fato com uma certa distância. 
Se olharmos o problema muito de perto ele vai nos parecer muito grande! Se olharmos de uma certa distância ele vai diminuir de tamanho e de importância.
E todo acontecimento, todo fenômeno que ocorre é de certa maneira relativo. 
Todo fato tem diferentes aspectos.
O mesmo acontecimento, se você mudar de perspectiva, se você o vê de maneira diferente, por um outro ângulo, você vai ter um diferente sentimento em relação a ele. 
Por exemplo a minha própria experiência. Se eu olhar pelo ângulo de que eu perdi o meu próprio país e há 33 anos vivo no exílio, se eu observar isso de perto isso vai me entristecer muito. Mas também existe um outro lado. Essas circunstâncias puderam propiciar que eu pudesse conhecer novas pessoas, outras culturas, outras tradições, outras religiões, tudo isso me enriqueceu, tudo isso me deu liberdade, hoje eu posso dispensar as formalidades, ficou mais fácil de eu me  comunicar com outra pessoa (muitas palmas). 
Por isso, quando nos defrontamos com problemas, é preciso olhá-lo de diferentes maneiras para reduzir o seu impacto de tristeza. 
E existe também um outro método: Alguns problemas acontecem, e têm solução e não há necessidade de nos preocuparmos. Outros acontecem e não têm solução e não há nenhuma utilidade em nos preocuparmos com eles (palmas). 
Na nossa vida há muitos conflitos e contradições e certamente se olharmos a nossa própria mente vamos lá encontrar muitos conflitos e contradições. 
Se observarmos com uma visão correta, o próprio conflito é causa de nosso progresso. Através de nossa sofisticada inteligência podemos perceber muitos de nossos conflitos. E quando estamos diante de um problema, de um conflito, se olharmos para ele de uma certa distância, vamos sempre encontrar naquela situação um elemento comum que é aglutinador daquela circunstância. E a partir do reconhecimento daquele elemento comum que tem a possibilidade de aglutinar nós nos convencemos de que é necessário  mantermos o controle, não perdermos a cabeça, e a partir dessa postura utilizando a nossa inteligência humana nós vamos trabalhar buscando um caminho para a solução. É a isso que chamamos de Sabedoria. 
Mesmo as diferentes religiões do mundo no passado e nos dias de hoje manifestam um certo conflito. Se observarmos as diferentes religiões ou filosofias vamos ver que  seus fundamentos às vezes parecem contraditórios, por exemplo o Budismo, o Janaísmo não acreditam num criador, mas para a maior parte das religiões a figura de um criador é básica, é fundamental. Mas apesar das diferenças existem pontos de base comuns apesar da maneira diferente que certos valores são apresentados. Por exemplo em todas as religiões  vamos encontrar um ponto comum que é o calor do coração, em todas há a valoração da compaixão, do amor e do perdão.
Uma outra idéia que alimento das coisas religiosas é que como nós seres humanos somos bastantes diferentes como pessoas ou com disposições pessoais diferentes, se houver uma diversidade, uma pluralidade de religiões isso é algo muito positivo. 
Uma única religião não é capaz de satisfazer a diversidade dos seres humanos.
Olhando por este ângulo, não só é possível termos respeito pelas diferentes religiões como também vamos encontrar uma unidade entre as religiões diferentes. Este ponto de vista não só é possível como necessário (palmas). 
A distinção que havia entre Ocidente e Oriente se desfez. E eu acho que isso é uma coisa bastante positiva. Agora nós encontramos uma distinção entre Norte e Sul, basicamente a partir de parâmetros econômicos. 
Se cada país for olhar só para seus próprios interesses vamos ter muitos conflitos. Por isso temos de chegar a ter  uma diferente perspectiva: quer seja no Norte, quer seja no Sul, ambos os lados pertencem a só mundo. 
Antigamente as nações conseguiam sobreviver de forma isolada, até mesmo elas eram eram auto-suficientes, bastavam-se a si próprias. Porém, com a economia que temos hoje no mundo isto é impossível devido à globalização, à comunicação que existe. Agora o interesse de cada um está diretamente entrelaçado com o interesse de todos. O seu próprio futuro depende do futuro das outras. Em outras palavras, há um só mundo. Nessas circunstâncias vai haver o bem geral se houver harmonia, se houver cooperação entre as nações. Isto é principalmente relevante no que se refere à ecologia. Os problemas estão além das fronteiras nacionais. Nessas circunstâncias é crucial ter o sentido da responsabilidade universal. 
Se falarmos em paz, é necessário pensar na paz interior, na paz de espírito
A paz imposta pelo ódio é impossível (palmas). 
A paz mundial, a paz internacional, a paz entre as famílias e cidades  vem do indivíduo, da paz individual, da iniciativa individual. 
Quando proclamamos a necessidade de haver paz  devemos desenvolver primeiro a necessidade de haver paz dentro de nossos corações (palmas). 
A paz com compaixão, a redução dos sentimentos negativos vamos chamar de desarmamento interior (palmas). 
Mas o desarmamento interno é suficiente? 
A resposta é "não". 
Primeiro o desarmamento interior, depois a desmilitarização. 
O aparelho militar é muito caro de ser mantido, ele é um desperdício e é muito destrutivo.
De uma certa maneira a guerra faz parte da História. Através das civilizações as pessoas buscaram o progresso. A tecnologia faz parte da evolução, do progresso. Mas o mundo mudou. Pelos dias de hoje eu penso que a maior defesa que uma nação pode ter é a não-violência e a compreensão.
Chegou a hora de nós pensarmos com seriedade na desmilitarização do mundo. 
É claro que isso não é uma coisa a ser conseguida da noite para o dia. Isso é uma evolução gradual. Podemos começar banindo as armas nucleares, depois armas ofensivas, até chegar a uma desmilitarização. E é possível que continue necessária uma polícia internacional sob um certo controle. Mas eu acredito que se houvesse uma desmilitarização global nós não mais teríamos guerras nacionais, guerra civil, ditadores... (palmas).
Por conclusão eu diria que, apesar de todos os problemas, de todas as dificuldades, as condições hoje são mais positivas, há mais esperanças em um mundo melhor. Se nós utilizarmos a inteligência, se nós planejarmos bem, o próximo Século vai ser um Século mais feliz. 
Para encerrar eu gostaria de agradecer a apresentação que me foi feita [pela artista norte - americana Shirley MacLaine e pelo Senador  Abdias] (palmas). Quando me apresentaram penso que foram muito excessivos nos elogios, eu fiquei um pouco constrangido. De qualquer maneira, meus agradecimentos sinceros (palmas).
Eu tive muito prazer de conversar com vocês hoje, de estar com vocês hoje e de participar de algumas das minhas  idéias. 
Se de tudo que eu disse vocês viram algo útil, tentem praticar. Se sentiram que essas coisas não são úteis, basta esquecê-las (prolongadas palmas)
[A seguir, um vereador cujo nome não foi possível ouvir devido às palmas faz uma saudação em nome da Cidade do Rio de Janeiro]. 
 
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