Introdução de S. S. o Dalai Lama ao Comentário do Texto,

O Caminho do Bodhisattva
de Shantideva

“Essential Teachings,” é a primeira tradução do tibetano, feita em 1995, a partir de uma série de palestras dadas em 1974 em Bodhgaya para refugiados tibetanos e budistas ocidentais.  Este comentário eloqüente e preciso sobre o “Caminho do Bodhisattva” é um dos textos mais importantes do budismo tibetano, um guia minucioso das 37 práticas de cultivo da compaixão por tudo o que vive e  da motivação de estar disponível aos demais, de que consta o cerne do budismo.

Segue-se a apresentação de S. S. o Dalai Lama ao precioso texto:

“Brancos, amarelos ou negros, de qualquer idade ou classe social, todos—do homem ao mais ínfimo inseto—temos a sensação de ser um “eu”.   Ainda que não compreendamos a natureza deste “eu,”  compreendemos tudo o que deseja:  evitar o sofrimento e alcançar a felicidade.  Cremos  ter direito à felicidade, sim temos.  O sofrimento se manifesta de muitas e variadas formas e queremos nos proteger de todas.  Como também se comportam assim, os animais parecem-se com os homens; contudo, não são previdentes nem podem se proteger de certos males.  Assim, enquanto que as  motivações sejam as mesmas—evitar o sofrimento e alcançar a felicidade—nós humanos dispomos de muitos mais meios.  A felicidade que buscamos tem muitas formas mas no fundo não é diferente.

O nosso conceito de “eu” é expansivo:  queremos a felicidade da família, da “minha família,” dos “meus” amigos, do “meu” país e o que denominamos de felicidade ou sofrimento passa a ter um significado muito mais profundo e vasto.  Com a satisfação das nossas necessidades básicas a noção de felicidade se modifica um pouco e os meios de alcança-la se tornam mais elaborados: o surgimento da linguagem e da literatura; da educação e da didática; criamos estruturas sociais distintas com artes, escolas e hospitais, fábricas, progressos no campo da medicina—tudo nos vem deste desejo fundamental, encontrar a felicidade e evitar o sofrimento.  Tudo o que vive nesta terra anseia por este mesmo objetivo.

Diferentes filosofias buscam responder e explicar a existência.  Observando a nossa natureza e a do mundo, elas tratam de conhecer as verdadeiras causas da felicidade do sofrimento e de encontrar uma fórmula.   Certas filosofias são incorporadas no social ou na política.  O comunismo, por exemplo, preconiza que para se alcançar à felicidade e evitar o sofrimento é preciso uma sociedade igualitária em que uma minoria deixe de explorar uma maioria.  As religiões tentam solucionar este eterno problema estipulando as causas segundo seus vários pontos de vista.  Podemos distinguir entre a visão doutrinária—as que buscam a resposta em princípios causais e universais, e a visão não doutrinária que busca uma solução  pragmática no campo social e material.  Neste sentido o Budadharma  seria doutrinário.

Constatamos que o sofrimento do corpo surge na mente, que se duas pessoas estão passando pela mesma intensidade de sofrimento, a que é feliz e tem a mente tranqüila sofrerá menos que a agitada ou ansiosa.  Constatamos também que certas pessoas estão aparentemente bem na vida com tudo o que bens materiais possam proporcionar mas são depressivas e ansiosas .... enquanto que outras que lutam com muita dificuldade encontram  paz e felicidade e parecem serenas.  Uma pessoa equilibrada e privilegiada com uma mente clara e aberta ao se deparar com grandes dificuldades continuará  tranqüila mesmo na dor; enquanto que uma pessoa cuja mente é fechada, agitada e ansiosa se aborrece e é incapaz de lidar com o inesperado. 

A mente é muito mais importante do que o corpo.  Assim, como a condição mental determina, num grau maior ou menor a capacidade que temos para suportar ou até para lidar com o sofrimento, precisamos cultivar a forma de pensar.  A preparação da mente é muito importante e o Dharma é uma excelente preparação.  Deixemos de parte a lei do karma e a reencarnação e vamos considerar apenas os frutos que a prática do Dharma trazem para a nossa existência.  A nossa mente, mas em especial a mente dos outros, vai colher os frutos.  A mente nobre, pura e generosa levará alegria a todo lado, estaremos em paz e teremos grande capacidade de comunicação.

Observemos o mundo que nos rodeia e que dizem “civilizado” e vejam como por mais de 2000 anos estamos em busca da felicidade, evitando o sofrimento por meios escusos:  trapaças, corrupção, querelas, abuso do poder e exploração do nosso semelhante.  Partimos em busca da nossa própria felicidade e sucessos materiais, muitas vezes levando ao confronto facções, etnias e sistemas políticos e aqui estamos nós, dominados pelo medo, pela dor, extermínio e fome.  É verdade que na Índia, na África e em outros países grassa a miséria e a fome, mas não é por terem exaurido os recursos naturais ou por não terem meios de lograr um bem estar duradouro; mas porque cada um só busca o próprio proveito.  Não temos qualquer relutância em subjugar e oprimir para alcançar nossos objetivos pessoais e a conseqüência é este mundo triste e desumanizado.  A raiz desta civilização está podre, o mundo sofre e sofrerá cada vez mais prosseguindo este rumo.

Há quem tenha uma considerável bagagem cultural e intelectual, se considere um liberal e pense que o Dharma é desnecessário e apenas útil para quem viva em lugares isolados ou subdesenvolvidos.  Mas o que é o Dharma?  Claro que não é vestir roupas diferentes, construir mosteiros e dedicar-se a rituais elaborados.  Tudo isto até pode fazer parte da prática do Dharma mas não é de forma alguma o Dharma.  A verdadeira prática do Dharma é oculta e se processa na mente tranqüila, aberta e generosa, a mente que sabemos como treinar e perfeitamente controlada.

Podemos saber de cor todo o Tripitaka e continuarmos maldosos e egoístas se não praticarmos o Dharma.

A prática do Dharma é o que nos permite ser verdadeiros, fiéis, honestos e humildes—ajudar e respeitar nossos semelhantes e nos sacrificarmos por eles. O acúmulo de bens e a projeção social não vão acrescentar à nossa fé ou paz de espírito.  Há quem se vergue bem baixo diante dos poderosos do mundo, adulando-os pela frente e criticando-os pelas costas.  Os cobiçosos muitas vezes não têm uma mente tranqüila; preocupam-se e temem perder o que acumularam com grande sacrifício.  Ao morrer seremos obrigados a deixar tudo para trás, mesmo os bens mais sólidos que nos custaram tanto a consolidar.  Deixaremos também nossos pais e amigos.  Se não tivermos sido corretos nos arrependeremos mas não tiraremos qualquer proveito dos frutos da nossa leviandade.  Deixaremos também nossos corpos.  O meu corpo também, o de Tenzin Gyatso; deixarei para traz, também as minhas vestes, das quais nunca me separei nem por um só dia. Assim, deixaremos tudo e se só possuímos coisas materiais ou uma noção de um eu muito arraigada nossos derradeiros momentos serão de ansiedade e tristeza.

Treinar a mente, renunciar aos excessos e viver em harmonia com todos os que nos rodeiam e com nós mesmos nos fará felizes apesar de um cotidiano rotineiro.  Se tivermos dificuldades seremos ajudados porque também ajudamos.  É bom lembrar que mesmo no ser humano mais cruel e perverso, existe uma semente de amor e de compaixão que fará dele, um dia, um Buda.

Também precisamos pensar na próxima vida.  A lei do carma não é de fácil compreensão, tampouco a reencarnação.  Mas ao examinarmos atentamente a verdade sobre a nossa existência, com honestidade e imparcialidade será possível compreende-las.  Podemos também nos reportar aos ensinamentos do Buda que confirmam estas verdades.

Tudo o que acontece, a nível individual ou coletivo é devido à lei do carma.  O caminho sincero que tenhamos percorrido vai frutificar numa vida futura, o esforço que aplicamos nos permitirá alcançar uma mente nobre e pura.  A presença de vocês aqui ouvindo o Dharma prova o que estou dizendo, o Dharma tem significado.  O Dharma equivale à bondade; quando se rejeita do Dharma é porque não compreendemos esta verdade.  O Dharma é o único caminho que nos conduz à felicidade.

Todas as religiões têm um Dharma; o Budadharma nos foi transmitido pelo Buda.  Mil Budas surgirão neste kalpa; Gautama Buda é o quarto; ele viveu e alcançou a iluminação neste preciso lugar onde estamos hoje.  Tendo sido iluminado ele pôs a girar a Roda da Lei pela primeira vez em Sarnath e depois fez girar muitas mais vezes antes de entrar em parinirvana.  Ele ensinou os seres comuns com uma capacidade limitada de compreensão, mas também outros cujas mentes já estavam abertas.  Ele ensinou em lugares públicos, mas também em grupos fechados.  Ele ensinou em outros níveis de existência, ensinou aos devas.  Seus ensinamentos eram dirigidos a vários níveis, alguns eram de fácil compreensão, outros eram muito profundos e de difícil compreensão.  

Os ensinamentos incluíam tanto o Hinayana quanto o Mahayana.  O Mahayana é mais vasto na motivação, na prática e no objetivo.  A motivação é a felicidade de todos os seres e não apenas a do próprio praticante e acompanha a prática das Seis ou Dez Paramitas. O objetivo do Mahayana inclui não só a libertação do samsara mas a realização dos três kayas:  nirmanakaya, sambhogakaya e dharmakaya.  O Dharma Mahayana inclui os caminhos Paramitayana e Vajrayana, este último tem diferentes qualidades que o torna mais elevado que só a prática do Paramitayana mas é preciso unifica-los.

Fomos muito afortunados no Tibet por termos recebido o budismo diretamente da Índia, portanto um Dharma autêntico e completo.  Segundo uma profecia do Buda, o Dharma será levado do sul para ao norte:  Tibet, Mongólia, China e Japão e agora creio que o percurso está terminado; não sei se existe ainda um outro norte.  Através da história o Budadharma teve períodos em que prosperou e outros em que quase desapareceu.

No tempo em que viveu o Buda Gautama, o Hinayana floresceu porque era de fácil compreensão e podia ser ensinado a inúmeros ouvintes.  O Mahayana, que exigia uma mente previamente capacitada não foi tão popular, portanto a sua divulgação restringiu-se aos discípulos mais avançados.  Foi por isso criticado e a sua existência, que remonta aos primórdios do budismo, foi disputada e continua a ser por alguns.  Contudo, o Mahayana existiu desde os primeiros ensinamentos do Buda Gautama, quando pôs a girar a Roda do Dharma.  Após o parinirvana, parece ter desaparecido por vários séculos, mas ressurgiu na época de Nagarjuna.

Nagarjuna era o restaurador do Mahayana; a sua vinda tinha sido anunciada pelo Buda em vários sutras, em particular no Manjushri Mulatantra.  Nagarjuna viveu cerca de quatrocentos anos depois da época do Buda, e a partir de então, o Mahayana conheceu uma grande expansão e subseqüente renovação, muitos séculos depois de ter degenerado.  Em tempo, o budismo desapareceu quase completamente da Índia.   Desde que chegou ao Tibet e até a pouco tempo, o budismo sempre existiu no nosso país.  Passou por um ocaso de quase oitenta anos durante o reino de Langdar-ma, mas mesmo neste período prevaleceu nas regiões leste e oeste do país.  Mais tarde teria ainda períodos de recessão, mas podemos dizer que durante mil anos a tradição pura do Dharma, que é a união do Paramitayana e do Tantrayana permaneceu no Tibet.

Temos diferentes escolas, cujos nomes foram atribuídos conforme o tempo em que foram fundadas, o lugar, o fundador, ou os ensinamentos*.  Todas estas escolas seguem a mesma tradição, a união dos paramitas e dos tantras.  Existem pequenas diferenças na interpretação do método ou de certas práticas, mas a essência é a mesma.  A prática, o método do Mahayana tibetano e os ensinamentos unificam os sutras e os tantras com o objetivo de cultivar a bodhicitta.  A aspiração da bodhicitta é a base do Paramitayana e o seu objetivo final é a realização da shunyata.  Para se poder praticar o Tantrayana é absolutamente necessário ter a aspiração da bodhicitta.

Bodhicitta é a motivação necessária para o êxito na transformação da mente.  O caminho começa com a renúncia da condição samsárica, continua através do desenvolvimento da mente de amor e compaixão, do estado denominado bodhicitta relativa e conduz à realização da natureza última da realidade:  shunyata, ou pelo menos a uma compreensão conceitual.  Só então é que podemos abordar o tantrismo, que consiste em duas etapas:  a geração e a (accomplishment)  que nos dão os verdadeiros frutos que não podem amadurecer sem terem passado por este processo.  Sem os três fundamentos:  renúncia, bodhicitta e shunyata, a meditação das deidades (entidades do caminho) e os exercícios de respiração através dos nadis, não só não terão resultado, como podem ser danosos, mesmo se temos algum domínio das técnicas da prática.

Para desenvolvermos no tantrismo, a preparação é muito importante.  Não só precisamos compreender o significado de renúncia, bodhicitta e a realização da vacuidade, mas também meditar sobre estes três temas durante muito tempo para que possam ser “gestados”, e incorporando-os no nosso mental.  Só então é que o caminho tântrico traz benefícios.  O essencial é a bodhicitta, e eis porque hoje estou transmitindo a vocês o ensinamento do Guru Thogs-med bsang-po.

Thogs-med bsang-po foi um grande lama, humilde e paciente, transbordando de amor e de compaixão por todos os seres.  Fazia-se acompanhar de um lobo que o seguia fielmente por toda a parte e cuja natureza ele tinha transformado—o lobo tinha-se tornado vegetariano!  Quando o seu dono ensinava bodhicitta, o sofrimento dos seres estava tão presente para ele que as lágrimas corriam de seus olhos.  Ele estudou no mosteiro Sakya e renunciou ao mundo tarde em sua vida, retirando-se para um ermo com o fim de desenvolver mais ainda a bodhicitta.

Seu ensinamento me foi dado pelo Lama Koundo (Tenzin Gyaltsen) que o recebeu, ele mesmo, do abade do mosteiro de Dzogchen.  

A introdução para as “Trinta e Sete Práticas dos Filhos e Filhas do Buda” é uma homenagem dirigida a Avalokiteshvara, aqui chamado de Lokeshvara.  Ele é o objeto desta homenagem porque os versos que descrevem as práticas do bodhisattva são fundamentados na grande compaixão e Avalokiteshvara é a fonte desta grande compaixão.

Lembrem-se que as três portas do Buda são Manjushri (sabedoria), Vajrapani (capacidade) e Avalokiteshvara  que representa a compaixão coletiva de todos os Budas.

Esta homenagem também é dirigida ao guru porque, como Atisha disse, devemos ao Guru todas as qualidades, grandes e pequenas.  Sobretudo as qualidades Mahayana nos vêm do guru; porque é ele ou ela que nos permite encontrar o método adequado para progredirmos e por isso tomamos refúgio no guru.

Este é o texto:

“Homenagem a Lokesvara,

Diante daqueles que viram que todos os fenômenos não têm ir nem vir e que dedicam seus esforços ao bem de todos os seres; diante dos supremos gurus; diante de vós, Lokeshvara o Protetor, prosterno-me rendendo homenagem através das minhas três portas (corpo, palavra e mente).

Os Budas Vitoriosos, de quem nos vem toda a felicidade e boa vontade, alcançaram a realização pela prática do Dharma que depende da compreensão que temos dele.   Portanto, explicarei as práticas do bodhisattva.”

O guru e Avalokiteshvara a quem dirigimos esta homenagem não são seres comuns mas são parte do objeto de refúgio onde vamos encontrar todos os tipos de realização.

A renúncia não se aplica apenas aqueles dominados pelas paixões e delusões mas também para aqueles cujas mentes ainda contêm resquícios de ilusões. Mesmo os grandes arhats não são capazes de perceber as duas verdades—a relativa e a absoluta—simultaneamente.  Absortos na meditação da vacuidade são incapazes de perceber claramente os fenômenos; ou percebem os fenômenos e não “vêm” a vacuidade, mesmo que a tenham, de forma fortuita, realizado durante a meditação.  Só aquele que realizou a budeidade pode ver as duas simultaneamente.  Para alcançar esta realização, ele ou ela terá de ter abandonado todos os resquícios das ilusões.  Ele ou ela sabe que não tem ir nem vir e que shunyata absoluta é constante.

As qualidades de Avalokiteshvara lhe permitem  ajudar todos os seres, conforme as suas capacidades e seus estados despertos e praticar esta meditação da união da realização da vacuidade e da percepção de todos os fenômenos.  Por isso, não só hoje, mas sempre, absolutamente, através das três portas, que eu tomo refúgio em Avalokiteshvara e rendo-lhe homenagem.”

Segue-se a primeira prática

* Por exemplo, a escola Nyingma-pa adotou o nome da época em que se iniciou; Sakya-pa e Kagyu-pa são escolas cujos nomes de referem a um lugar determinado.
 
 
 

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