ENCONTRAMOS O CAMINHO SOB OS NOSSOS PÉS
David Schneider nasceu em Kentucky, nos Estados Unidos, filho de pai judeu e de mãe batista. Em 1967 começou a estudar Zen com Phillip Kapleau Roshi e em 1971 conheceu Shunryu Suzuki Roshi que passou a ser seu mestre. Viveu no Centro Zen de São Francisco de 19972 a 1985 e foi ordenado monge. O seu primeiro livro, “Zen de Rua” relata a vida de Issan Dorsey; e o seu segundo livro, “Zen Essencial,” é uma coletânea de poemas. Em 1985 David foi aceito como discípulo por Trungpa Rinpoche e em 1995 foi nomeado Diretor da organização, Shambhala Europa, por Mipham Rinpoche. Issan Dorsey, o herói do livro de
David Schneider, “Zen de Rua,” costumava dizer, “encontramos o caminho
sob os nossos pés,” o que acreditava literalmente. Como
é dado o nosso próximo passo: é este o
caminho do Buda.
Não me parece possível falar de um caminho no budismo porque quando aludimos a um caminho nos surge uma imagem; um rumo e várias placas de sinalização. Mas o caminho budista é quase sempre invisível. Os textos sagrados explicam que o caminho budista conduz de um estado meditativo apenas visível para o caminhante. Talvez em vez de nos oferecer um caminho o budismo nos ofereça um par de botas para ir onde nos levam mos nossos passos ou para onde nos vejamos compelidos a rumar. Quando aludimos a um “caminho” está implícita a idéia de rumo, quem sabe mais prazeroso, mais satisfatório ou com um destino incerto; foi o que atraiu a maior parte dos praticantes do budismo: não estávamos satisfeitos com o rumo de nossas vidas e queríamos mudar. Segundo o Buda, é por aí que devemos começar: tomando consciência de que sofremos palmilhando sempre a mesma rota batida. Contudo, quando interiorizamos o caminho budista nos damos conta de que ele não nos leva a lugar nenhum porque está precisamente sob os nossos pés. Este é o lado simples da questão. As botas budistas são o despojamento e a meditação que nos levam a toda a extensão do mapa espiritual do budismo. Vamos situar o caminho no esquema tradicional. Num dos primeiros ensinamentos do Buda, no sermão de Benares, ele proclamou as Quatro Nobres Verdades e o Nobre Caminho Óctuplo. As quatro Nobres Verdades são: a verdade do sofrimento, a verdade da causa do sofrimento, a verdade que podemos encontrar a cessação do sofrimento, e a quarta verdade, o Nobre Caminho Óctuplo—o caminho budista, se é que existe... As muitas tradições tibetanas, contudo, colocam este caminho num outro lugar: reconhecem que o Nobre Caminho Óctuplo nos conduz à cessação do sofrimento mas também proclamam os Cinco Caminhos. O primeiro, é o Caminho da Acumulação, no qual reunimos as nossas condições: praticamos e acumulando ações meritórias e conhecimentos. A seguir, o Caminho da Unificação, em que são aglutinados os elementos do anterior. O terceiro, o Caminho da Visão ou Compreensão e depois o Caminho da Meditação—este quarto caminho é o Nobre Caminho Óctuplo. O quinto é denominado o Caminho Fim-do-Aprendizado—o que seria um alívio se não constasse de 10 alíneas! O Nobre Caminho Óctuplo é considerado um dos ensinamentos do Hinayana, a escola dos Anciões, a base de todas as tradições budistas. Pelo ponto de vista do Mahayana e do Vajrayana há quem pense não ser dos mais importantes; um mero primeiro passo a ser assimilado antes da parte suculenta, interessante e sedutora do caminho. Mas é um equívoco! Na verdade, o Nobre Caminho Óctuplo é válido e verdadeiro por todo o Caminho. É um ensinamento muito profundo e, na medida em que retorna insistente e sempre presente, também um tanto irritante. Mesmo quem o estuda e dedica-se incansavelmente à sua prática; se não o levar sempre em conta, o caminho não transparece. Ainda que se faça uma requintada e elevada prática tântrica a maior parte de nós não a pode sustentar durante o dia—no trem, no ônibus ou numa multidão—tornando indispensável esta prática básica. O Nobre Caminho Óctuplo se assemelha às fundações de uma casa da qual o Vajrayana é o telhado dourado, mas sem sólidas fundações o telhado assentaria no chão. O Nobre Caminho Óctuplo é: Pensamento Correto, Intenção ou Compreensão Correta, Fala Correta, Ação Correta, Meio de Vida Correto, Esforço Correto, Atenção Plena Correta, Concentração Correta. Quando dizemos “correto” não estamos dizendo “correto,” o sentido oposto de “equivocado.” A palavra sânscrita que traduzimos por “correto” é samyak, que quer dizer “completo” ou “inteiro.” Pensamento Correto ou Pensamento Completo é onde começamos porque o significado de Pensamento Correto é “ausência de pensamento.” É muito importante não ter pensamento porque é a qualidade do caminho sob os nossos pés. Por exemplo: um amigo telefona para dizer que tem um problema e por ser amigo o escutamos de boa vontade, aliás já estamos acostumados. Começa a falar e logo adivinhamos qual é o problema e de que vai dizer. Não só isso, até sabemos porque aconteceu e mesmo a solução e então nos impacientamos com os detalhes do relato e deixamos de prestar atenção. “Sim.” “Hmmm.” E vamos pensando noutro assunto. É então que nos afastamos do Pensamento Correto já que, adotando o Pensamento Equivocado, formamos a nossa própria idéia. O seu pensamento pode até, coincidir com o Pensamento Correto, mas também pode não coincidir. Assim, o Pensamento Correto é Ausência de Pensamento: saber ouvir e estar presente, deixar se surpreender. Esta postura é a de não saber onde vai dar o caminho. Não precisamos temer este despojamento, esta qualidade de estarmos plenamente disponíveis, presentes e abertos porque este é o Pensamento Correto. Não oferece muito, pode ser mesmo subtração mais do que uma adição. Aliás todo o Nobre Caminho Óctuplo é de subtração. Já trazemos toda a nossa incômoda bagagem quando nos sentamos para meditar. O caminho budista é o caminho do despojamento e quase todo de mera subtração. O segundo, é a Intenção Correta, por vezes traduzido por, Compreensão Correta. Quando interiorizamos o Pensamento Correto e conseguimos simplesmente permanecer no momento presente, optamos por continuar assim; a nossa intenção é de estar presentes. O budismo lida com o corpo, a palavra e a mente e assim, o segundo, terceiro e quarto itens do Caminho Óctuplo estão individualmente associados a uma destas três formas, sendo que a Correta Compreensão está associada à mente. O terceiro está associado à fala: Fala Correta. Existe uma qualidade da Fala Correta ou Fala Completa que é muito precisa e incisiva. Devido às duas etapas anteriores do Caminho, o Pensamento Correto e a Intenção ou Compreensão Corretas, passamos a estar muito conscientes de tudo o que nos rodeia que se traduz numa fala precisa e correta, expressa apenas o que interessa sem se estender e sem omitir o que quer que seja. Outra fórmula consagrada é Domínio Correto. Quando lemos os textos sagrados aprendemos que não podemos mentir, tagarelar gerando mal entendidos através da fala. Há muitas formas de considerar o despojamento da fala. Fala não diz respeito apenas ao que é dito mas também a qualquer tipo de relação com o mundo fenomenal. Assim, a forma como nos projetamos no mundo é parte da Fala Correta. Isto não exclui divertimentos ou anedotas, mas sabemos todo o tempo o que estamos fazendo, estando presentes para a nossa fala e também a dos demais: estamos no campo da comunicação, presentes à nossa própria projeção no mundo e à comunicação dos demais conosco. Segue-se o quarto, a Ação Correta, o papel do corpo e de como agimos. Outra vez temos mais fórmulas consagradas e muitas regras associadas à moralidade, ou como se diz, o certo ou o errado. Acontece que hoje em dia temos acesso a muitas diferentes hierarquias de valores. Numa estante se encontram livres sobre a moralidade da China, do Japão, do Tibet, da Europa Medieval, da América do Sul, dos Índios Americanos, dos Esquimós, etc. Retiramos e folheamos alguns deles (quem medita se dá muitas vezes a este ócio...) Quando nos tornamos sensíveis a esta qualidade “do caminho sob os nossos pés,” folheando estes livros e não deprecamos a sabedoria encontrada ali, tampouco a que se encontra sob os nossos pés. A leitura, muitas vezes, pode ser uma fuga.
“Oh! Dizem que este livro tem coisas interessantes, talvez encontre aqui
com que me distrair, uma “consolo” para me ajudar a passar o tempo nesta
tarde tristonha.” Ação Correta é estarmos dispostos,
firmes e atentos capazes de permanecer na incerteza do momento.
O quinto é, Meio de Vida Correto. Admiro o sentido prático do Buda ao considerar também o Meio de Vida Correto porque mostra que seus ensinamentos são verdadeiramente compassivos que era sensível à realidade de cada um já que muitos de nós ocupamos ao mesmo tempo vários espaços estanques. Por exemplo, posso ter um espaço aqui para a minha prática e outro lá para o meu meio de vida. Fazemos um retiro, ouvimos os ensinamentos e nos sentimos muito bem! Tudo é simples e óbvio, mas depois voltamos para o trabalho num outro espaço estanque e então.... Então é importante lembrar a qualidade samyak, a inteireza ou completude que precisamos adotar no Meio de Vida Correto. O ensinamento diz que o meio de vida correto é uma parte muito importante da nossa existência, o que mais nos preocupa. Se os relacionamentos do passado, do presente e do futuro não nos preocupam; o dinheiro preocupa. O que diz este ensinamento é que não devemos estar preocupados em “incluir,” porque a nossa espiritualidade não é para ser escamoteada ou aferrolhada num espaço aparte com visitas curtas e intermitentes. Quando o trabalho é parte da nossa meditação é possível associar o contentamento ao meio de vida. Para estarmos no mundo precisamos trabalhar, não haverá alimento se não houver lavradores. É questão de reconhecer esta nossa dependência e a nossa relação com o mundo para o incluir no nosso processo de conscientização. Não quer dizer que ficando em casa e nutrindo elevados pensamentos filosóficos seja uma opção mais espiritualizada, ou santificada, porque ir à luta e cuidar da terra ou trabalhar numa empresa também é caminho. O que é interessante é que quando colocamos este enfoque na vida passamos a ser vistos como um tanto.... excêntricos porque parece que estamos nos divertindo ou sempre desfrutando de algo que os outros desconhecem. Há quem se acerque discretamente para perguntar o que é o que é um meio muito propício para difundir a energia da prática. Mesmo quando não estamos trabalhando precisamos estar conscientes do fato de que não estamos trabalhando ou vamos nos deixar adormecer outra vez pelo ócio. Nos Estados Unidos o ócio assusta porque quem não tem um meio de vida acaba tendo que morar na rua. Já na Europa, o seguro social ampara os desempregados que desfrutam de alguma segurança. Conheço gente que vive bem e por muito tempo apenas com o salário desemprego. Não quer dizer que tenhamos que aceitar uma atividade qualquer, mas o trabalho precisa ser incluído no contexto do nosso desenvolvimento mental. Esforço Correto ou Energia Correta é o sexto aspecto do Nobre Caminho Óctuplo. Quando permanecemos intensamente no momento presente, encarando as suas múltiplas facetas podemos nos sentir impotentes: estamos perante o que sempre nos intimidou e que requer energia. Quando observamos que determinada situação requer ação tratamos de reunir energia. Não se trata de competir e se outra pessoa está pronta para entrar em ação, tudo bem; aqui consideramos apenas a energia de que necessitamos para levar a cabo a ação. Será preciso muita energia para sustentar esta visão completa do Caminho; assim, este sexto aspecto nos diz: “Vai em frente! Faz! Anime-se! Troca o rolo de papel higiênico no banheiro, senão ninguém vai trocar!” Vamos estar conscientes do nosso limite na meditação no que toque a energia e aprender muito sobre o seu caminho, do nosso estilo pessoal, da nossa disposição de reunir, ou não, a nossa energia. É uma faceta muito promissora e exeqüível do Nobre Caminho Óctuplo. Muitas vezes trata-se apenas de permitir esta conscientização. “Será que tenho ânimo/energia para ouvir o que estou ouvindo?” Sim. Tem sim! Não vai acabar com você. Assim, munidos de energia tomamos o próximo passo. Meditação Correta, também chamada de Plena Atenção Correta ou Relembrar Correto. O relembrar é um aspecto interessante de tudo isto já que nos leva a considerar o que foi feito, o que foi esquecido por nós e pelos outros e trazendo à memória a nossa própria energia e sabedoria. Podemos considerar com satisfação e uma ponta de vaidade, o caminho que percorremos. “Hoje consegui fazer a meditação!” Também é parte do caminho. O Relembrar Correto é parte importante do caminho porque quando vemos os grandes heróis e heroínas budistas cujos retratos estão diante de nós, lemos as suas histórias de vida e comparamos com as nossas podemos desanimar e achar que jamais iremos tão longe. Constatamos o abismo que existe entre estes nobres mestres e os trapalhões que somos. Então, é bom lembrar que tudo o que os nobres mestres fizeram foi para nós e que os ensinamentos perduram para nós. Viajaram para receber os ensinamentos para nós, escreveram livros para nós, transmitiram os ensinamentos para nós, construíram mosteiros—tudo para nós. Então, animem-se! O Relembrar Correto ou a Plena Atenção Correta não é apenas uma retrospectiva, é também o desenvolvimento de uma consciência panorâmica. Passamos a estar dispostos a observar o que nos rodeia: a nossa vida, a vida das pessoas que nos cercam... permitimos à nossa mente penetrar estes lugares, observa-los, senti-los. Resta o aspecto tradicional de estarmos atentos, de unir o nosso corpo e a nossa mente para poder agir com todo o nosso ser. Isto faz lembrar um episódio singelo na vida do Buda. Ele passava por um poço quando uma mulher aproximou-se e pediu que a ensinasse a meditar; então Ele disse: “Quando você estiver tirando a água do poço; tira a água do poço.” É muito simples mas infelizmente hoje em dia tudo nos distrai, poucas pessoas nos animam e algumas nos agridem por estarmos onde estamos. Pessoalmente sou sensível a relatos. Costumo fazer longas viagens de carro e se ligo o rádio e ouço uma notícia interessante sobre o um acontecimento no deserto, vejo a areia ardente, as ondas de calor na estrada, sinto o cheiro do capim... estou lá. Não importa se estou na estrada dirigindo a 80 km por hora, rodeado de carros que me ultrapassam... não sei como, mas sou transportado para o deserto. Como pessoas vão para a academia fazer ginástica ou correr na praia e levam o radinho. Querem se manter em forma mas não querem pensar no que estão fazendo; e ainda os telefones celulares presentes em todos os ambientes que tocam e nos obrigam a escutar a conversa. Hoje em dia é tão fácil sermos transportados para um lugar outro do que o que estamos plantados... enquanto o caminho budista consta de permanecer, corpo e mente, onde quer que estejamos. Qualquer que seja a etapa do caminho budista em que estivermos, permanecemos ali mesmo. O oitavo é a Concentração Correta. Quando comecei a meditar gostava da idéia de que em qualquer lugar poderia me ligar ao estado de samadhi—que este era o objetivo da meditação—estar ligado durante a meditação e desligado no fim da sessão para depois tratar da vida, mas há 25 anos que tento e não consigo. Quando se fala de Concentração Correta não é isto que se quer dizer. Samadhi não é um estado de transe em que entramos por uma porta ficamos durante um tempo em êxtase místico, na mais completa e prazerosa paz e saímos por outra, transformados. Claro no budismo existem técnicas, que se forem levadas ao extremo, nos conduzem a este estado de mente; contudo, Concentração Correta quer dizer não entrar neste estado de mente mas presente a tudo o que possa surgir mente. Não quer dizer depurar o conteúdo na mente, mas muito mais permanecer com os seus conteúdos. Por este ponto de vista pode-se dizer que a meditação profunda não existe. Ouvimos dizer que fulano de tal estava am meditação profunda mas a meditação profunda e a meditação menos profunda são a mesma coisa: o esforço para estar presente a tudo o que surge na mente. Parece ser um processo longo e moroso porque levamos muito tempo a descobrir todos meios de fuga que adotamos. Muitas vezes durante cinco, dez, ou quinze minutos não nos damos conta de que estamos em fuga! Podemos estar recitando um mantra ou fazendo uma prática de visualização, ou simplesmente meditando e subitamente nos damos conta que não estamos presentes. Uma das palavras tibetanas para meditação é gom, que quer dizer, se familiarizar. Podemos dizer que a meditação é de certa forma uma prática mundana. Não se trata de mudar de lugar—provavelmente não vamos nos sentir rodeados de nuvens cor de rosa e músicos celestiais—mas de ir para a almofada e se familiarizar com quem você é. O caminho budista trata de fazer apenas isto, uma e outra e outra e outra vez, é muito sutil, e invisível. Mais ninguém saberá se estamos neste caminho, pelo menos por vários anos. A transformação será sempre muito sutil e constará de uma disposição de retornar sempre ao ponto onde estávamos anteriormente e esta disposição, segundo o Buda, é que nos permite esgotar o sofrimento calcado no egoísmo. É esta mesmo disposição que nos conduzirá ao Mahayana e ao Vajrayana porque se aplica a qualquer tipo de meditação ou prática espiritual. Podemos até pensar que estai prática é apenas para principiantes mas Trungpa Rinpoche disse: quanto mais intensa for a nossa capacidade de permanecer plenamente atentos mais elevado será o grau de iluminação. Publicado na revista View No.8 |