Quando nos sentamos para começar uma sessão de prática
e examinamos o nosso espírito, por vezes surpreendemo-nos por descobrir
que ele está espontaneamente positivo. Noutros momentos achamos
por bem agir, já que a disposição interior não
é verdadeiramente positiva. Acontece ainda que o espírito
pode dispersar-se num estado nem positivo nem negativo. A deixá-lo
vaguear à sorte, não surtirão efeitos nem positivos
nem negativos, só perdemos tempo e energia.
Observar regularmente o seu espírito para registar a sua orientação
é um hábito a adquirir, mesmo fora de toda a prática
espiritual. Obteremos assim, pouco a pouco, uma abertura autêntica,
permitindo ter uma atitude construtiva em todas as circunstâncias.
Uma tal disposição revela-se preciosa na vida quotidiana.
Ao contrário, um espírito negativo faz nascer tensões
que acabam por perturbar a comunicação, seja em família
ou na vida profissional e social.
Tudo está estreitamente ligado à perspectiva que escolhemos
adoptar. Com um estado de espírito positivo, podemos transformar
todas as suas actividades. Mesmo as tarefas fastidiosas tornam-se interessantes,
e as tensões interiores que elas ocasionavam antes desaparecem...
No princípio, é preferível sentarmo-nos para habituarmo-nos
a tomar consciência da inclinação do nosso espírito.
Quando despejamos água lamacenta num recipiente, é preciso
deixar decantar para que ela reencontre a sua limpidez. Estando alguns
instantes tranquilos e sem tensões, vemos melhor em nós mesmos.
Com tempo, essa faculdade torna-se natural. Consciente sem demora do que
se passa no espírito, não nos deixamos mais ser assaltados
por sentimentos negativos ou por sonhos inúteis que não se
realizam nunca.
É preciso um ambiente especial para fazermos acalmar o nosso
espírito e observar a sua atitude? Todos nós sabemos que
é muito difícil encontrar um lugar solitário e sagrado.
Na realidade, a casa, o escritório ou o carro são também
lugares propícios. Onde quer que estejamos, o importante é
consagrar alguns minutos a este exercício. Tiraremos proveito dos
mais pequenos instantes. A calma irá estabelecer-se gradualmente,
para tornar-se habitual, depois natural. O exame da motivação
faz-se então de maneira espontânea, mesmo em plena actividade,
o que é precioso se temos intenção de pisar terrenos
férteis em conflitos como o trabalho e a família; aí
onde outrora o espírito teria sido solicitado em várias direcções,
será mais fácil ficar calmo e construtivo.
Para funcionar, o espírito apoia-se nas energias mais ou menos
perceptíveis que circulam nos canais físicos ou subtis,
consoante o caso. No Tibete, nós comparamos a energia a um cavalo
selvagem e cego montado por um cavaleiro inteligente mas deficiente...
Uma postura correcta mantém os canais direitos e permite que a energia
circule livremente e sem choques. Expulsar o ar viciado e desfazer os bloqueios
alojados nos canais grosseiros e subtis purifica o corpo e o espírito,
que reencontram assim um equilíbrio harmonioso.
A postura em sete pontos
A utilidade desta postura é extensamente explicada nos textos
sobre os diferentes yogas. Mas sucintamente, o objectivo é permitir
aos elementos subtis nos diferentes centros do corpo que recuperem o seu
equilíbrio.
(1) As pernas estão na posição de lótus
ou de vajra (cruzadas uma sobre a outra) ou na posição
dita do bodhisattva (cruzadas uma à frente de outra).
(2) a coluna vertebral é mantida direita como uma flecha.
(3) os ombros estão puxados para trás, «como as
asas dum abutre».
(4) as palmas das mãos estão postas sobre os joelhos;
ou ainda, a mão direita repousa dentro da mão esquerda
ao nível do umbigo, as palmas das mãos viradas para
cima com a extremidade dos polegares em contacto;
(5) a língua, nem enrolada nem crispada, repousa confortavelmente
contra o palato;
(6) os olhos podem estar abertos ou fechados. No caso presente, deixamo-los
numa posição perfeitamente natural, nem fechados, nem
encarquilhados;
(7) a cabeça não deve pender nem para trás nem
para a frente: o pescoço deve estar direito e o queixo ligeiramente
para dentro, de forma a manter a coluna direita.
Cada ponto desta postura tem a sua importância. Por exemplo, pousar as palmas das mãos sobre os joelhos, ou pousá-las uma sobre a outra ao nível do umbigo, equilibra as energias físicas e estabiliza o espírito. Com efeito, cada um dos principais centros do corpo, ou chakras, está relacionado com um dos cinco elementos: a água, o fogo, a terra, o vento e o espaço (que chamamos por vezes de metal ou madeira). É suficiente tocar em vários sítios do corpo para nos apercebermos de que certas zonas são mais quentes que outras. Isso indica que as energias se parecem consigo mesmas em pontos particulares do corpo.
Expulsar o ar viciado
No exercício que se segue, trata-se de, durante a expiração,
expulsar todas as energias perturbadas pelas acções negativas
(uma acção pode ser física, verbal ou mental) praticadas
sob a influência dos cinco venenos (4). O ar expirado drena também
os bloqueios físicos ou mentais que daí resultam, fontes
de irritação, de tensões e de reacções
agressivas. As cinco «emoções perturbadoras»
tornam-se de facto em energia e alteram a saúde, a paz mental e
o ambiente circundante.
Adoptem a postura em sete pontos, as palmas das mãos pousadas
sobre os joelhos. Apoiem a extremidade do polegar na base do anelar de
cada mão, e mantenham uma ligeira pressão, o que terá
por efeito converter a energia negativa em energia positiva. Depois, inspirando
normalmente, levem a mão direita à cara, tapando a
narina esquerda com a extremidade do anelar e expirando pela narina direita,
enquanto abrem a mão esquerda pousada sobre o joelho esticando os
dedos. Enquanto expiram, considerem que estão a expulsar todas as
energias poluídas pelo ódio e pela agressividade. Pensem
que libertam assim os bloqueios em todo o corpo, e que todos os nós
subtis se desfazem.
Repousar a mão direita sobre o joelho e, durante a inspiração,
levantar a mão esquerda. Tapar a narina direita com a extremidade
do anelar. Com os polegares pressionando sempre a base dos dois dedos anelares,
expirar pela narina esquerda esticando os dedos da mão direita.
Ao mesmo tempo, considerem que estão a expulsar as energias
adulteradas pelo apego egoísta; pensem que todos os bloqueios físicos
e subtis ligados ao desejo, à frustração e à
inveja se desfazem. Apegar-se aos seres e às coisas procurando um
prazer pessoal e imediato bloqueia a corrente da alegria e da felicidade
verdadeiras.
Finalmente, fechem os punhos sobre os polegares, pousem-nos sobre os
joelhos e inspirem lentamente, depois expirem com força pelas duas
narinas. Abram as duas mãos esticando os dedos. Considerem que expulsam
a energia adulterada pela ignorância. Pensem que os bloqueios devidos
a conflitos exteriores e interiores causados pela ignorância se dissolvem.
A ignorância fundamental mantém-nos num estado de confusão;
desorientados, agimos sem compreender realmente os actos, nem mesmo ter
uma clara consciência, e isto perturba a circulação
da energia.
Estes exercícios podem ser feitos três vezes. No decorrer
da primeira série, a expiração far-se-á docemente,
enquanto que na segunda, mais profundamente, e para terminar, muito profundamente.
Esta técnica de respiração, que acompanha a concentração
mental, age de uma maneira subtil e poderosa sobre o espírito, sobre
a circulação da energia e sobre o corpo. No fim do exercício,
considera-se que os canais subtis estão completamente limpos: tudo
se torna perfeitamente límpido e transparente.
Alternância de concentração e repouso
Estar fisicamente num lugar tendo o espírito noutro, não
é difícil, todos sabemos como isso se faz: a maior parte
do tempo o espírito está disperso e galopa em todos os sentidos.
Saber centrá-lo e repousar é um verdadeiro trunfo, particularmente
num mundo onde projectos e actividades são incessantes. O treino
da concentração num ponto é um meio excelente de aí
chegar.
No caso presente, a respiração será o objecto
da concentração. O exercício consiste em estar atento
à respiração durante alguns minutos, o que conduz
a um estado de calma. Experimente contar tranquilamente os movimentos da
respiração, sem alterar o ritmo natural e sem se distrair
um instante sequer, a fim de estar realmente presente, aqui e agora. Uma
vez que o espírito fique perfeitamente focado no vaivém da
respiração durante sete respirações, será
possível prolongar a duração da concentração
e contar onze respirações, vinte e uma ou mais.
Duma maneira geral. Respiramos pelo nariz. Quando estamos ao pé
do mar, ou na montanha ou num lugar desimpedido em plena natureza, podemos
respirar suavemente pela boca, os lábios entreabertos.
É conveniente alternar cada período de concentração
com um momento de descanso de duração equivalente ou, sem
contar nem se concentrar seja sobre o que for, procura-se ficar simplesmente
no aqui e agora. A alternância destas duas fases evitam o defeito
de uma grande crispação e permite que a energia se equilibre
de uma maneira harmoniosa.
Praticada regularmente, esta técnica traz uma clareza de espírito
cada vez mais profunda que acalma o corpo e o espírito. É
um treino muito útil, para si mesmo e para todos os seres, Assim
que ele for explicado em detalhe no capítulo dedicado à técnica
do tonglen, podemos ajudar os seres apoiando-nos na respiração.
Quando inspiramos tomamos os seus sofrimentos e quando expiramos deixamos
verter sobre eles rios luminosos de compaixão.
Depois da concentração sobre a respiração,
manda a tradição que se concentre sobre as luzes de cor e
das sílabas sagradas a fim de desenvolver os diferentes aspectos
da sabedoria. Entre todas as cores, retemos cinco: o branco, o vermelho,
o azul, o amarelo e o verde. Cada uma delas produz efeitos diferentes sobre
os centros e os órgãos do corpo, que por sua vez estão
em correspondência com os elementos e as energias. Da mesma maneira
os sons Om Ah Hung Svâhâ agem sobre os chakras e sobre as emoções
perturbadoras que lhes estão ligadas. Na prática quotidiana,
contentamo-nos em utilizar as três cores principais: o branco, o
vermelho e o azul, e as três sílabas Om Ah Hung.
Sentados, o corpo ao mesmo tempo direito e livre de toda a tensão,
imaginem no espaço à vossa frente um disco luminoso branco,
tal como uma lua radiosa e tranquila que se levanta no horizonte. Pensem
que esta fonte luminosa contém as bênçãos do
corpo, da palavra e do espírito de todos os seres despertos, e se
expande em inumeráveis raios irisados.
Se quiserem aguçar as vossas faculdades de concentração,
imaginem que o círculo cresce até encher o espaço
todo e depois de reduz a um ponto minúsculo de intensa luz branca.
Podem experimentar visualizar perante vós a forma luminosa,
limpa e transparente de um ser perfeitamente iluminado. Da sua testa, da
sua garganta e do seu coração partem alternadamente e depois
ao mesmo tempo, brilhantes luzes brancas, vermelhas e azuis que são
absorvidos pelos vossos três centros. A luz branca, que penetra pela
testa, inunda o vosso corpo, desfaz as energias boqueadas e restabelece
o equilíbrio. Ligeiro e livre, um profundo bem-estar invade-vos.
Os raios de luz vermelha brilham na garganta do ser desperto e vêm
dissolver-se na vossa garganta. Eles purificam os bloqueios e acalmam os
desequilíbrios ligados à fala. Depois, emanando do seu coração,
uma luz azul vem encher o vosso coração.; essa luz dissolve
todos os vossos bloqueios, medos e angústias. A paz estabelece-se
em vós.
Durante toda esta visualização, recitem em silêncio
ou em voz alta as sílabas do mantra (5) Om Ah Hung tantas
vezes quanto possível. O som Om ressoa naturalmente no centro da
fronte, o som Ah no centro da garganta e o som Hung no centro do coração.
Em resposta à infinita variedade de situações,
os seres despertos transmitiram inúmeros mantras. As três
sílabas Om Ah Hung são alternadamente a fonte e a essência
desses mantras. Capazes de desfazer os bloqueios e de transformar as emoções
perturbadoras ficando inalteráveis, chamamo-las as três sílabas
adamantinas, por analogia com a pedra preciosa e indestrutível que
é o diamante.
As práticas que utilizam estas três sílabas são
múltiplas. A luz branca está geralmente relacionada com a
sílaba Om, a vermelha com a sílaba A e a azul com a sílaba
Hung. Podemos utilizar as três sílabas uma a seguir a outra
ou em conjunto, mantendo sempre a concentração no disco luminoso.
Podemos ainda associá-las aos três movimentos da respiração:
Om à inspiração, Ah durante um ligeiro tempo de retenção,
Hung à expiração.
Aqueles que quiserem tratar ou curar os outros podem praticar todos
os dias a visualização de luzes recitando longamente as três
sílabas. Com efeito, trazer uma ajuda eficaz requer muita força
e energia. Cultivamo-las recorrendo a esta técnica experimentada
que consiste em receber as bênçãos dos seres despertos
e em avivar a essência subtil dos elementos; reter o ar e regenerar
os elementos internos com A; e expirar com Hung enviando a luz em direcção
àqueles a quem procuramos ajudar.
Estas técnicas de meditação sobre um ponto luminoso
ou sobre as luzes associadas às sílabas têm variadas
aplicações. Quando a prática se relaciona com o corpo,
utiliza-se a luz branca. Se queremos antes agir sobre a palavra e a circulação
das energias, visualizamos uma cor vermelha como um sol nascente. A cor
azul está mais ligada ao espírito.
As cinco cores são utilizadas para purificar e dissolver os
bloqueios que provocam os cinco venenos ou emoções perturbadoras.
O branco age sobre a agressividade, o vermelho sobre o apego, o azul sobre
a ignorância, o amarelo sobre o orgulho e o verde sobre a inveja.
Logo que aplicadas às actividades, cada cor tem a sua função.
O branco pacifica e purifica; o amarelo aumenta (a energia vital, por exemplo);
o vermelho controla as forças; o verde estimula a actividade; o
azul traz equilíbrio e harmonia.
Visualizar regularmente as sílabas com as suas cores respectivas
faz florescer as capacidades auto-curativas: os nós formados nos
canais subtis pelos bloqueios de energia desfazem-se e a atenção
aos outros aumenta. Isto melhora no princípio a comunicação
e, no fim, desenvolve a capacidade de apaziguar e curar o próximo.
As luzes e o mantra têm também uma virtude purificadora,
pois eles agem em profundidade para desbloquear e reequilibrar corpo, palavra
e espírito. Eles constituem suplementarmente uma protecção
muito eficaz contra as substâncias tóxicas. Esta técnica
tem ainda outras aplicações, muito numerosas. Um exemplo:
temos muito calor? Imaginamos rios de luz refrescante. Temos frio? A luz
torna-se num raio de calor agradável que enche o corpo de bem-estar.
No momento de concluir a sessão e de oferecer os méritos,
podemos hesitar: mesmo em ausência de toda a distracção,
os conflitos interiores podem ter perturbado o curso da meditação.
É bem preferível que esta seja harmoniosa. Entretanto, se
ela não o foi, o tempo e a energia que a ela foram consagrados guardam
sempre o seu valor e merecem ser dedicados. A dedicatória dos méritos
preserva as virtudes de uma sessão; eles propagam-se indefinidamente.
De acordo com a tradição, depois de ter aberto o seu espírito
com os exercícios precedentes, entregamo-nos numa reflexão
sobre os quatro temas que incitam o espírito a reencontrar a sua
liberdade intrínseca. Estas reflexões tratam de realidades
quotidianas que, geralmente, evitamos ou nos fazem recuar de medo por acordar
perguntas destabilizadoras. A tradição budista considera
que é preferível olhar estas realidades de frente e utilizar
toda a sua força para levar a busca interior tão longe quanto
possível. Apresentados brevemente aqui, certos temas voltarão
a ser tratados ao longo do nosso estudo.
(1) O Buda e os nossos mestres afirmaram-no: em comparação
com outras formas de vida, a vida humana tem um valor particular. Ela torna-se
«preciosa» quando aquele que a possui tem as liberdades e as
condições favoráveis que, por si, permitem conquistar
a liberdade última, para si mesmo e para o bem de todos. (As liberdades
e as condições favoráveis serão explicadas
em detalhe no capítulo consagrado ao yoga do mestre). Em todos os
outros estados de existência, o sofrimento que resulta de actos passados
entrava todo o progresso espiritual.
(2) Esta preciosa vida humana, apesar das liberdades e condições
favoráveis, continua a ser efémera. A sua duração
é forçosamente limitada e o surgimento da morte é
totalmente imprevisível. O grande mestre Dilgo Khyentse Rinpoche
disse:
Possamos nós sentir até que ponto a loucura humana
se assemelha a um bando de pássaros que se encontra à tardinha
em cima de uma árvore; desde que o dia começa a raiar, eles
levantam voo e dispersam-se. Tudo será destruído ou dissolvido,
como um jarro de barro não cozido sobre o qual deitamos água.
Toma consciência de que a morte é não somente certa,
mas que ela chega sem avisar, fazendo-nos compreender até que ponto
é urgente praticar a via espiritual. É insensato crer que
teremos tempo livre para praticar mais tarde! Não percamos tempo,
todas as actividades desta vida são fúteis. Pensem no ditado:
As actividades, como jogos de crianças, não acabam por si
só; tal é a sua natureza: eles param quando as abandonamos.
(3) O terceiro tema refere-se à necessidade de conhecer a natureza
das acções e dos seus efeitos para compreender a importância
de uma atenção constante. «Acção»,
ou «acto», cobre neste contexto todas as acções,
sejam elas físicas, verbais ou mentais. Cada acção
chama uma «reacção»: feliz no caso de um acto
altruísta, dolorosa no caso de um acto negativo. Ninguém
deseja o sofrimento; a solução passa pelo abandono de comportamentos
que o produzem e a procura de comportamentos que dão resultados
positivos.
(4) O quarto tema de reflexão refere-se às experiências
resultantes dos actos. Os nossos actos passados condicionam também
as diferentes dimensões onde se apresentam os fenómenos de
que nos apercebemos (6) da vida presente e das existências seguintes.
Nesta vida, certos acontecimentos ou fenómenos são compreendidos
como positivos, outros como negativos. Os primeiros resultam de actos positivos,
enquanto que as circunstâncias desagradáveis provêm
de actos negativos. A multitude de acções sustentadas pelas
emoções perturbadoras criam espécies de campos de
energia subtil. É a partir daí que os fenómenos se
podem manifestar desta ou daquela maneira. Uma predominância negativa,
por exemplo, produz dimensões onde os fenómenos parecem desagradáveis
ou assustadores. Tudo isto confirma que os diferentes estados de existência
no qual os seres são levados a nascer são determinados pelas
suas próprias acções . (Os seis estados de existência
serão abordados mais em detalhe no capítulo consagrado ao
yoga do mestre, a propósito das liberdades e das condições
favoráveis).
Como é isto possível? Cada ser,
desde que passe por experiências
desagradáveis, guarda a marca disso na sua consciência
fundamental, um estado de consciência muito subtil que é a
base de outras formas de consciência. De resto, toda a acção
ou situação vivida, seja ela positiva, negativa ou neutra,
é registada nessa consciência fundamental. Quando o espírito
está livre de tensões, ou quando a energia subtil circula
livremente no corpo, como no decurso do sonho por exemplo, as percepções,
os sonhos ou pesadelos inesperados podem surgir: são as impressões
acumuladas na consciência fundamental de cada um que produz esta
infinita variedade de percepções imprevisíveis,
Os sonhos não são os únicos que se formam desta
maneira, todas as experiências vividas na vida presente estão
condicionadas pelos nossos actos passados. Os actos presentes irão
condicionar as nossas percepções futuras.
O resultado de uma acção depende parcialmente da intenção
que a motiva, e depende por outro lado também da intensidade
do sentimento que a impregna. Uma acção motivada por uma
intenção muito positiva e executada alegremente com o corpo
e o espírito, trará rapidamente um resultado feliz. Um acto
violento cometido sob a influência da agressividade amadurece rapidamente
também mas trará como consequência um grande sofrimento.
Isso não é todavia sempre o caso, pois os resultados
das acções não são necessariamente visíveis
de imediato. Estaremos assim inclinados a pensar que a lei da causa e do
efeito não se verifica. Na realidade, é possível que
as reacções não se produzam senão em vidas
ulteriores. É interessante notar também que uma só
acção pode engendrar um ou vários efeitos. Um só
acto inspirado pelo desejo de ajudar todos os seres e executado com uma
alegria sincera produz frutos positivos inconcebíveis e inesgotáveis.
Lamentar ter agido com bondade atrasa os efeitos felizes de um acto positivo,
sobretudo se ele não foi dedicado. Lamentar sinceramente um
acto nocivo pode anular o resultado. É por vezes possível
contrabalançar um acto negativo com um acto positivo.
Os quatro temas servem para demonstrar a urgência de procurar
a liberdade última. Mas ainda é preciso saber do que temos
que abrir mão a fim de conseguir essa liberdade... Nós somos
todos detentores da essência fundamental da liberdade. Nem num só
momento este estado de iluminação esteve separado de nós:
ele pertence a cada um de nós de maneira intrínseca. Por
isso, no plano relativo, os véus mentais impedem-nos de o reconhecer.
Esses véus, em número de vinte e quatro mil, conduzem a cinco
tipos que correspondem aos cinco principais venenos já mencionados,
e dos quais três são facilmente reconhecidos: a aversão,
que abrange todos os aspectos do ódio e da cólera; o apego
egoísta com o seu cortejo de desejos e paixões; a ignorância,
ou confusão mental. Os dois outros, o orgulho e a inveja (ou desejo),
são por vezes mais difíceis de serem distinguidos.
As cinco emoções perturbadoras tecem permanentemente
véus que impedem de reconhecer a liberdade e a paz fundamentais.
É por isso que, qualquer que seja o seu nível, todas as técnicas
de meditação, e em particular as cinco práticas preliminares
que vamos abordar, servem para mostrar como é possível trabalhar
com os cinco venenos de maneira a libertá-los no estado de sabedoria.
Esta meditação, como todas as outras, será abordada
aplicando as técnicas já descritas: a intenção
altruísta, a postura em sete pontos, os exercícios
de expiração e a concentração sobre o vaivém
da respiração. Visualizem em seguida diante de vós
um vasto espaço azulado, tal como um céu sem nuvens. Aí
aparece uma esfera luminosa, no centro da qual desabrocha uma flor de lótus
encimada por dois discos de luz horizontais, um lunar, o outro solar.
A luminosidade da esfera representa a claridade da verdadeira natureza
do espírito. O lótus simboliza a pureza, livre de todas as
emoções perturbadoras. Da mesma maneira que esta planta tem
as raízes no lodo sem que a sua flor fique suja, a compaixão
mergulha as suas raízes na lama dos cinco venenos permanecendo sabedoria
imaculada. O disco lunar simboliza a sabedoria e o conhecimento, enquanto
que o disco solar representa a grande compaixão.
Sobre o disco solar, visualizem de acordo com a vossa conveniência
uma esfera luminosa branca ou uma forma simples do Buda.
Pronuncie três vezes a homenagem:
Namo Bouddhâya
Namo Dharmayâ
Namo Sanghâya
e cante em seguida o mantra dos seres iluminados:
Téyathâ Om Mouni Mouni Mahâ Mounayé Svâhâ
Com a ajuda desta luz e do poder do mantra, deixem que o vosso amor
se expanda. Depois, fique alguns minutos no estado de simplicidade natural
do espírito.
Concluam dedicando as forças positivas nascidas do tempo e da
energia consagrados a esta meditação: possam elas eliminar
o sofrimento, a miséria e as frustrações físicas
ou mentais de todos os seres! Do fundo do coração, desejem
a felicidade de todos, humanos e não-humanos.
Com frequência, antes de começar uma prática espiritual
ou um trabalho importante, é bom consagrar o local e a nossa intenção
com o mantra da sabedoria transcendental.
Téyathâ Om Gaté Gaté Pâragaté
Pârasamgaté Bodhi Svâhâ
Todos os aspectos da sabedoria e do conhecimento podem ser explicados
a partir deste mantra, da essência do prajñapâramitâ
ou sabedoria suprema, pois ele contém a essência de todos
os ensinamentos dados por Buda.
Literalmente, as sílabas do mantra significam:
Têyathâ: como os Budas.
Om: de bom augúrio (pode ter outros sentidos, consoante o contexto).
Gaté: que foi, ou que teve sucesso. Esta palavra é repetida
quatro vezes, em referência aos quatro níveis de sucesso que
leva à bodhi.
Pâragaté: que foi sem dificuldade, ou que conseguiu sem
dificuldade.
Pârasamgaté: que foi completamente.
Bodhi: a perfeição do despertar.
Svâhâ: omnipresente.
Uma tradução simples poderia ser: «Como os budas,
possamos nós concluir sem obstáculos tudo aquilo que começamos».
Este mantra evoca assim as cinco vias sucessivas percorridas pelos
budas para atingir a iluminação absoluta: a via da acumulação,
a via da junção, a via da visão ou dacompreensão,
a via da meditação e do treino espiritual, e a via além
da meditação.
Este conjunto de sílabas foi transmitido de mestre a discípulo
desde Buda Shakyamouni até aos nossos dias. Ele explica as diversas
etapas da prática, da qual a conversão dos cinco venenos
em cinco sabedorias, e a maneira de seguir as cinco vias que levam à
realização dos cinco budas centrais do mandala.
Podemos também aplicar este mantra aos acontecimentos da vida
quotidiana para que tudo se passe sem obstáculos. Antigamente nos
países budistas, os ferreiros, os médicos, os carpinteiros
ou os sapateiros utilizavam este mantra consoante as necessidades da sua
arte; alguns tornaram-se assim, sob uma aparência vulgar, grandes
siddhas (7). Para um médico por exemplo, as sílabas do mantra
representam os cinco órgãos, a essência dos cinco elementos
e as diferentes maneiras de socorrer a outrem. Desde que um camponês
receba o mantra do seu mestre espiritual, ele poderá aí encontrar,
sob forma codificada, todas as informações necessárias
ao seu trabalho. Significando exactamente “possa tudo ser favorável”,
o mantra traz a ciência das cinco etapas que um camponês tem
obrigação de conhecer: o local, a orientação,
a estação, a forma de fertilizar a terra e de associar as
plantas para afastar insectos, bem como o momento propício à
colheita. O carpinteiro, por sua vez, pode deduzir o modo de fabricar os
seus utensílios, as essências que deve usar, o momento propício
para cortar a madeira, os segredos da montagem, etc.
Nos nossos dias, o saber é encarado de um ponto de vista meramente
técnico, enquanto que outrora ele consistia num conhecimento sagrado
transmitido de mestre a discípulo no seio de cada corporação:
a profissão era um ritual que tinha em conta a via espiritual. Aqueles
que, tendo recebido tais ensinamentos, sabiam integrá-los na sua
vida quotidiana, tornavam-se com frequência grandes sábios.
As sílabas de um mantra não são anódinas,
elas detêm um poder estimulante. O simples facto de recitar regularmente
o mantra da prajñapâramitâ aumenta as capacidades intelectuais
do praticante libertando os bloqueios que o impedem de estudar, de compreender
ou de memorizar.
As aplicações deste mantra são múltiplas.
Ele oferece uma ajuda preciosa no momento de começar uma tarefa
quando nos encontramos num ambiente adverso, ou ainda se acordamos com
uma sensação desagradável, uma angústia ou
um mau pressentimento. Sonhar, em geral, não é exactamente
fazer o visionamento de uma cassette de video: os sonhos que o espírito
projecta no decurso do sono são simples reflexos ilusórios
do jogo de energia passando sobre as impressões que pensamentos
e acções deixaram na consciência fundamental. Mas por
vezes as energias de quem dorme estão em perfeito equilíbrio
e o seu espírito encontra-se num estado particularmente subtil.
Os sonhos trazem-lhe então indicações específicas,
donde alguns podem revelar-se premonitórios e avisar, por exemplo,
dum perigo iminente para si próprio, seus parentes ou outros. Se
tal é o caso, ele pode fazer apelo ao mantra da prajñapâramitâ
: recitar nove ou vinte e uma vezes tem por efeito afastar ou dissipar
completamente as dificuldades que se anunciam.
Nesta circunstância é preciso visualizar da seguinte maneira:
durante a primeira parte da recitação, vagas de bênçãos
de todos os seres iluminados inunda-vos e vós tomais a forma luminosa
dum buda radiante de compaixão. Continuem recitando pelo menos nove
vezes o mantra, conscientes do valor inestimável desta prática
transmitida oralmente através de uma linhagem ininterrupta de mestres.
Sobre a palma da vossa mão direita, visualizem um disco solar, e
sobre a mão esquerda, um disco lunar. Obstáculos, forças
negativas e outras causas de eventuais acidentes ou dificuldades juntam-se
no centro do disco lunar. Sentindo claramente isso, recitem ainda o mantra
e depois batam energicamente palmas por três vezes. Nesse preciso
instante, os obstáculos são aniquilados e todos os perigos
desaparecem, desintegrados entre o sol e a lua.
Esta técnica aliando concentração mental e a recitação
do mantra pode, pela força da prática, tornar-se muito poderosa.
Transmitida em linha directa, ela já provou a sua eficácia
imensas vezes. Antes de a exercer, é preferível receber a
transmissão de um mestre que a detenha.
Todos sabemos que duas pessoas sensíveis podem comunicar-se mentalmente
desde que elas estejam «em sintonia». A oração
procede deste plano subtil. Que ela tome a forma de palavras, de mantras
cantados ou de silêncio, um simples pensamento ou um desejo emitidos
do fundo do coração, ela tem o seu poder dentro das profundezas
do espírito. Quando mais este último se aproximar da sua
simplicidade natural, maior o poder dinâmico e a eficácia
da oração. O estado no qual se encontra o espírito
influencia profundamente a acção. Multiplicar os pensamentos
positivos permite transformar aquilo que é negativo.
Rezar utilizando mantras transmitidos por seres iluminados veicula
uma grande força, uma vez que cada sílaba, cada palavra,
cada frase, e mesmo a sua melodia, são consagradas por poderosas
bênçãos.
Para quê serve a oração? Ela é uma ajuda
preciosa desde que desejemos o desaparecimento do sofrimento. Temos sem
dúvida uma consciência aguda do sofrimento desde que esta
se manifesta abertamente; é por isso natural que desejemos a sua
desaparição. Mas o importante é aí reconhecer
as causas e desejar que elas desapareçam o mais depressa possível.
Na origem da ausência geral de segurança no mundo encontram-se
os cinco venenos do espírito. Exteriormente, eles provocam toda
a espécie de catástrofes; interiormente, eles engendram perturbações
mentais. A oração tem o poder de apaziguar ou de transmutar
estes venenos e de parar então o sofrimento.
Os ensinamentos de Buda falam de quatro grandes rios de sofrimento
que trazem os seres: o nascimento, o envelhecimento, a doença e
a morte. Cada um atravessa essas quatro experiências no decorrer
da sua existência.
(1) No Ocidente, o nascimento não é geralmente considerado
como uma experiência negativa. Todavia, se olharmos de mais perto,
é difícil avaliar as sensações dolorosas que
a maioria dos seres encontra no decurso do período perinatal. A
primeira angústia é a de encontrar uma matriz. Em seguida,
para conseguir manter-se durante nove meses nesse refúgio, é
preciso ter estabelecido nas vidas passadas uma relação estreita
com a sua futura mãe, aquilo que não é simples. A
terceira etapa, a do parto e do nascimento, é mais frequentemente
vivido como um sofrimento intenso tanto para a mãe como para a
criança; o choque é de resto tão violento que a consciência
prefere esquecer.
(2) O segundo rio de sofrimento é a doença. Toda a patologia
reveste-se de um aspecto geral ligado às suas causas, as emoções
perturbadoras, e aos aspectos particulares ligados aos seus efeitos. O
traço principal da doença consiste na dificuldade de encontrar
rapidamente medicamentos eficazes.
(3) Ninguém duvida que a velhice seja, na maioria do tempo,
uma experiência dolorosa... As forças estiolam, os sentidos
ficam entorpecidos, as faculdades declinam e o menor gesto exige uma energia
que rareia.
(4) Naquilo que diz respeito ao quarto rio de sofrimento, a morte,
nota-se, para ser breve, que poucos seres parecem tirar algum prazer disso...
As outras aflições são consideradas menores; mas
serão elas portanto menos dolorosas que as anteriores? Numerosos
são os seres que vivem precariamente ou com privações:
excluídos, sem amizade, sem abrigo, eles não possuem nem
mesmo o estritamente necessário... Outros, que tiram prazer de grandes
riquezas e de uma posição social elevada, vivem em permanente
pavor de ladrões e na obsessão de perder o seu estatuto.
Esses que estão rodeados de familiares e de amigos temem o dia da
sua separação. Ao contrário, numerosos são
aqueles que vivem na apreensão de se encontrar face a face com aqueles
que eles temem ou detestam.
Os ensinamentos citam ainda três grandes flagelos - a guerra,
a fome e as epidemias - os quais afligem os seres desde sempre.
Nas vossas orações, pensem desejar do fundo do coração
a desaparição dos quatro grandes rios a fim de que cada ser
não tenha jamais que passar por tais experiências. Enviem
pensamentos positivos a todos aqueles que sofrem. Possam todas as formas
de medo, de dor e de desastre, naturais ou não, desaparecer!
Os cinco venenos, sobretudo a aversão, o apego e a ignorância,
entravam a oração e os pensamentos de benquerença.
Os exercícios descritos acima constituem a melhor forma de se preparar
para que a oração seja eficaz e tenha efeitos benéficos:
a expiração permite expulsar as energias poluídas
e desfazer os nós nos canais subtis; é em seguida importante
procurar o equilíbrio e o apaziguamento do espírito alternando
a concentração sobre a respiração e o descanso.
Depois, experimentem sentir a presença dos seres iluminados. A sua
luz enche-vos e purifica-vos. Com estas técnicas como prelúdio,
as vossas orações e desejos terão mais força.
Um outro método muito eficaz consiste em associar a oração
à respiração dentro da prática de tonglèn,
que será explicada mais adiante,
Não se esqueçam de concluir dedicando todos os vossos
pensamentos positivos à paz no universo.
É certo que a tarefa parece gigantesca e até podemos
perguntar como é que pensamentos podem ser uma ajuda seja
ela qual for ao sofrimento omnipresente. A todo o momento, num ou noutro
lugar do globo, pessoas morrem de fome, outras são massacradas ou
sucumbem à doença. Como podem os pensamentos ajudá-los?
Cada um de nós está intimamente ligado a todos os seres
do universo. É por isso que importa pensar no bem de todos. Pensamentos
de amor e de compaixão emitidos por um espírito concentrado,
claro e livre de tensão, são extremamente poderosos. Quando
os seres são torturados pela fome, guerra ou na impossibilidade
de comunicar, é o seu espírito que experimenta o sofrimento,
seja ele físico ou mental. Um corpo sem espírito não
sofre. Na morte, o espírito separa-se do corpo; todos sabemos que
um cadáver não sente a dor. Porque é o espírito
que sente o sofrimento, pensamentos positivos podem contribuir para a cura.
Os resultados das orações são em função
da força mental e da habilidade adquiridas graças a um treino
constante. Numerosas são as tradições que reconheceram
nos sábios mais notáveis a capacidade de apaziguar ou de
tomar a dor de outrem. Essa faculdade é acessível a todos,
é uma simples questão de prática: só podemos
dar a paz a outrem se a tivermos em nós mesmos.
Para começar uma sessão consagrada à prática
da troca (tonglèn), adoptamos a postura em sete pontos e aplicamo-nos
aos exercícios de respiração e de concentração
que já foram referidos. Uma vez o espírito estabilizado,
meditamos sobre a compaixão: desejamos que todos os seres sejam
libertos do sofrimento e das causas do sofrimento, Depois, seguindo o ritmo
natural da respiração, consideramos que, quando inspiramos,
tomamos o sofrimento de outrem, visualizado sob a forma de uma nuvem escura.
A compaixão que sai agora impetuosamente em si, transforma esta
nuvem em luz que, pela expiração, se propaga a todos
os seres. Esta imensa claridade dissolve os seus véus mentais e
enche-os de paz e de bem-estar, tão simplesmente como se ligássemos
o interruptor para acender uma luz que dissipa instantaneamente todas as
trevas do mundo.
Todas as espécies de circunstâncias podem ser postas à
prova para praticar a troca. Estamos ao pé do mar? Pensemos na multidão
que povoa os oceanos e entreguemo-nos ao tonglèn. É certo
que, à primeira vista, os seres marinhos não se parecem connosco.
Mas o seu espírito não difere fundamentalmente do nosso.
A sua forma actual é o resultado dos seus actos anteriores. Como
todos os seres do universo, eles procuram o bem-estar e temem o sofrimento.
Os grandes peixes comem os pequenos, as espécies minúsculas
devoram os grandes, e todos são pescados pelo homem. A sua vida
não é mais que incerteza e terror. Desejemos tomar esse sofrimento
mental e físico para dar em troca rios de luz e de compaixão.
Estamos de passagem por uma grande cidade? Pensemos em todas as pessoas
que aí vivem, em todos os seres, visíveis ou não,
que a povoam, e pratiquemos a troca.
Quando nos aplicamos a ajudar os outros de esta maneira, apagamos pela
mesma ocasião os traços que os actos negativos imprimiram
na nossa consciência fundamental. Um treino assíduo permite
mesmo, a longo prazo, apagar os traços de outrem.
No momento de inspirar, não deixe que o medo de não poder
assumir todo o sofrimento o faça hesitar. O pensamento do despertar
é suficientemente poderoso para transformar tudo. É a este
pensamento que devem apelar com todas as vossas forças. Este amor
é inerente a cada ser. Mesmo o predador mais feroz é sensível
à fragilidade e ao sofrimento dos seus filhotes; para protegê-los
e alimentá-los, ele enfrenta todos os perigos.
Esta bondade profunda está adormecida em cada um de nós,
sendo preciso acordá-la: ela é a aliada mais poderosa para
transformar o sofrimento em liberdade.
Talvez achem surpreendente considerar os seres humanos, animais e outras
formas de vida como nossos semelhantes em espírito? Na realidade,
não é do ponto de vista da aparência que eu os comparo,
mas do da sua natureza fundamental. A maneira através da qual cada
ser se manifesta é função da forma física que
ele se reveste, e depende dos limites desta. Cada vez que um ser muda de
corpo, ele é como um viajante que muda de hotel e que pode encontrar-se
um dia no mais simples albergue e no dia seguinte num palácio. As
condições exteriores variam mas o viajante não muda.
Da mesma maneira, os seres podem renascer dentro de um ou outro dos seis
mundos de existência, pois o seu potencial profundo não se
altera (8).
Nos já vimos que o espelho da nossa vida presente reenvia a
imagem dos nossos actos passados, e que a vida futura será o reflexo
dos nossos actos presentes; daí a importância de ensinar a
todos a não-violência. É um meio seguro de obter, a
breve ou a longo termo, a paz para si mesmo e para os outros.
Talvez se interroguem sobre a justificação dum treino
como o da troca. Não é desperdiçar o seu tempo em
vez de consagrar alguns minutos ou algumas horas da vida quotidiana a praticar?
Não de todo. O treino permite em primeiro lugar compreender melhor
o sentido da vida, e revela-se a seguir um trunfo precioso no momento da
morte. Bem entendido, a morte não é um tema sobre o qual
as pessoas gostem de falar. Todavia, uma vez que nascemos, inevitavelmente
teremos que morrer um dia. Nesse dia, só o treino espiritual adquirido
durante a vida nos ajudará a encontrar a liberdade.
No momento da morte, a consciência deixa o corpo tendo como a
sua única bagagem o karma resultante dos seus actos passados. Tal
como a sombra segue o corpo, os resultados dos actos benéficos ou
nocivos seguem o princípio consciente. No momento da passagem, se
o espírito estiver todo impregnado de benquerença e de compaixão,
a experiência da morte, tal como as condições da vida
futura serão inteiramente transformadas. Eis porque esta fase é
crucial, e é importante fazer com que estes pensamentos se tornem
familiares durante toda a vida presente. O treino de tonglèn fará
com que, no momento da morte, eles voltem naturalmente ao espírito.
A prática da troca será assim uma grande ajuda durante
essa travessia perigosa. Poderemos aplicar esse treino quando um parente,
um amigo ou um animal familiar se encontra no seio da morte. Assistir a
um moribundo na fase crítica pode constituir uma verdadeira salvação.
É preciso, no momento em que a consciência deixa o corpo e
começa a errar no estado intermediário, ser capaz de tomar
o sofrimento para, em troca, inundá-lo de luz.
Nos estados próximos da morte, o espírito passa por experiências
comparáveis às vividas nos sonhos: durante o sono o corpo
está imóvel enquanto que o espírito continua a funcionar,
e conhece uma imensidão de experiências. Imediatamente após
a morte, o corpo, inerte, é abandonado, mas o espírito continua
a viver toda a espécie de acontecimentos. As primeiras percepções
estão principalmente relacionadas com recordações
da vida que acabamos de deixar. A seguir entramos numa fase onde se vê
o que será a próxima vida. Tudo é vivido no plano
mental e subtil.
Antigamente, existia quase em todo o lado uma tradição
de acompanhar os moribundos. Hoje em dia isso faz imensa falta. A maior
parte das pessoas não quer sobretudo pensar na morte, e assistir
a alguém nesses momentos que precedem a morte e que a seguem está
frequentemente fora do seu alcance. Eles não dispõem de tempo
suficiente ou, muito simplesmente, não sabem o que fazer. Muitos
pensam que só um padre está indicado para fazer o que é
preciso para acompanhar aqueles que partem. Na realidade, cada um pode
desenvolver a capacidade de socorrer os moribundos com a ajuda de pensamentos
positivos e de oração, já que todos os seres sem excepção
partilham desta base comum que é a natureza do despertar.
Nós veremos nos capítulos seguintes os treinos que associam
o tonglèn às meditações sobre o amor, a compaixão.
A alegria e a imparcialidade; esses são os utensílios de
primeira importância que nos servirão para toda a vida.
No dia a dia, praticar a troca facilita de imediato a comunicação
e apazigua rapidamente qualquer conflito. Nós estamos de facto sempre
fortemente inclinados a nos queixarmos perante as dificuldades, atirando
constantemente a culpa para cima dos outros: pai, mãe, o patrão,
o vizinho, o governo ou a sociedade... Não será mais inteligente
inverter esta atitude e questionarmos a nós próprios? Não
teremos nós uma parte da responsabilidade em tudo o que nos acontece?
Esta maneira de pensar apresenta pelo menos uma vantagem: em lugar de nos
pormos no papel de vítimas, somos livre de trabalhar sobre nós
mesmos para agir sobre a situação.
3.1 - O refúgio, antídoto do orgulho
Na maior parte do tempo, o orgulho, que nasce e cresce sob a influência
da ignorância, leva-nos a sustentar com tenacidade posições
sem fundamento real. O orgulho não é de facto a tendência
de pensar e de tentar provar que as nossas ideias, mesmo falsas, são
as melhores? Se elas o fossem verdadeiramente, isso não seria tão
grave. Mas com frequência esse não é o caso, e nós
sofremos terrivelmente por não termos sempre razão. Certas
formas de orgulho, muito subtis, são difíceis de reconhecer.
De uma maneira geral, o orgulho impede-nos de estarmos satisfeitos com
aquilo que temos. Esta insatisfação traz consigo sentimentos
de insegurança e de angústia crescentes e, para acabar, deixam-nos
totalmente desorientados. Assim, a primeira das práticas preliminares
é o «refúgio», uma técnica de meditação
que transforma a nossa propensão de sermos terrivelmente egocêntricos.
Para transformar o orgulho em sabedoria libertando-o na natureza absoluta,
a prática do refúgio associa visualização,
oração, mantras e exercícios físicos.
Em tibetano, refúgio diz-se kyap dro (kyap: refúgio,
protecção; dro: ir, tornar-se).
Como regra geral, os seres que não se sentem em segurança,
vão à procura de protecção. A prática
do refúgio dá confiança àquele que a ela se
consagra fazendo-o redescobrir a protecção da sua natureza
profunda. A aquisição duma verdadeira confiança interior
varre todos os véus que geram o medo e a insegurança.
Uma tal confiança não pode eclodir se não for
sob a protecção de um mestre cuidadosamente escolhido: um
cego não pode guiar outro cego. Temos necessidade de nos apoiarmos
em seres completamente despertos, e isso, até à descoberta
do verdadeiro refúgio interior, a natureza de buda latente em cada
um de nós. ‘’Todos os seres possuem o embrião do despertar,
e é isso que lhes permite atingir o estado de buda» dizem
os ensinamentos. Ninguém poderá jamais perder este potencial
que lhe é natural; só os nossos véus mentais nos impedem
de o reconhecer. Todos os treinos têm por fim dissipá-los.
Pode parecer inconcebível que um minúsculo grão
guarde uma árvore magnífica, e todavia... Da mesma maneira,
todos os seres dispõem do potencial do despertar total. Assim, para
acedermos ao refúgio último, o estado de buda, é necessário
que primeiramente nos entreguemos a seres perfeitamente despertos. A prática
do dharma permite a seguir ter uma realização íntima
do refúgio. Os ensinamentos tornam-se assim no caminho que leva
a bom porto - o despertar perfeito.
Do ponto de vista exterior, é o Buda que é o refúgio
inultrapassável. Do ponto de vista interior, o termo «buda»
designa o estado desperto do nosso próprio espírito. O ensinamento,
ou dharma, constitui a via necessária ao desabrochar das qualidades
do espírito. Para seguir este caminho, é necessário
apoiarmo-nos no sangha, a comunidade daqueles que conhecem o dharma.
Podemos dizer assim: ‘’O refúgio absoluto é o estado
de buda, o dharma é a via, e o sangha aqueles que nos acompanham
na via’’.
O Buda
Em sânscrito, boud significa «totalmente desperto do sono
da ignorância». Dha quer dizer «eclosão perfeita
da potencialidade fundamental» e designa o pleno desabrochar do conhecimento,
da sabedoria, da compaixão - em resumo, de todas as qualidades que
é possível desenvolver.
Dentro desse contexto, quando falamos de «buda», trata-se
não somente do Buda histórico chamado Gautama (ou Shâkyamuni),
mas também de todos aqueles que atingiram o despertar. Isso situa-se
acima do plano universal, bastante além das limitações
específicas do Oriente e do Ocidente. Os budas desvendaram perfeitamente
os dois aspectos da omnisciência: eles conhecem todos os fenómenos
logo que eles aparecem, e a natureza de todas as coisas tal como ela é.
Os seres despertos actualizaram as cinco sabedorias: para eles, os cinco
venenos transformaram-se em cinco sabedorias, Tendo libertado tudo o que
há a libertar (boud) e realizado tudo o que havia para ser realizado
(dha), eles são budas, «despertos».
Na impossibilidade de encontrar tais seres, é possível
tomar refúgio no ensinamento que eles deixaram, apoiando-nos naqueles
que seguem esta via e o assimilaram.
O Dharma
A palavra ‘’dharma’’ tem etimologicamente dez sentidos. Aqui significa
«aquilo que guia, que leva a um bom caminho» indicando aquilo
que devemos adoptar e rejeitar. O dharma, também chamado de «caminho»,
inclui todos os ensinamentos de nos chegaram desde Buda até hoje
por uma transmissão ininterrupta de mestres.
Existem diferentes níveis de ensinamentos. O ensinamento principal
descreve em detalhe como os seres estão mergulhados na ilusão,
e a forma pela qual se poderem libertar. A característica dos ensinamentos
de Buda é que, pondo-os em prática, traz uma claridade de
espírito que mostra a totalidade do caminho e dissipa os obscurecimentos.
Encontramos por todo o mundo uma abundância de ensinamentos religiosos
e filosóficos. Alguns têm por efeito aumentar a cólera
e as emoções. O «dharma» de que falamos aqui
possui, ao contrário, o poder de libertar os seres de emoções
perturbadoras. Essa é a sua primeira virtude, consequência
de ele estar fundamentado na não-violência. O aspecto irado
de algumas representações de budas na iconografia tibetana
é puramente simbólica. A espada que o buda Mañjushri
brande, por exemplo, representa a sabedoria que corta os obscurecimentos
e subjuga as manifestações demoníacas interiores.
O Sangha
Em tibetano, qualificamos o sangha em duas palavras, rig dreul, expressão
que une a sabedoria (rig) e a liberdade (dreul); mais precisamente, a tomada
de consciência do nosso potencial e a libertação daquilo
que nos afasta dela. Aquele que consagra a sua vida ao caminho da liberdade
faz parte do sangha. Não podemos considerar como membro do
sangha uma pessoa que não tem a menor noção do que
é a via, nem o menor desejo de dedicar a sua vida a outrem; como,
então, apoiarmo-nos numa pessoa tal para atingir a libertação?
O sangha designa todos aqueles que detêm e vivem os seus ensinamentos
e as suas práticas. Esse termo tem vários níveis
de significado mas traduzimos literalmente por «aqueles que inspiram
o desejo de seguir o caminho da virtude», os amigos espirituais,
o grupo de praticantes, ou de maneira mais geral, todas as pessoas que
consagram a sua vida ao socorro e à paz de todos os seres.
O voto do refúgio
Quando fazemos a escolha consciente de tomar refúgio, é
melhor escolher o refúgio último. É a melhor maneira
de progredir no caminho espiritual.
Entre as Três Jóias, Buda, dharma, sangha, alguns dão
primazia ao mestre ou ao guia espiritual, uma vez que ele representa os
seres despertos sendo a fonte dos ensinamentos. Outros dão mais
importância aos ensinamentos, pois eles permitem atingir o despertar.
Para outros ainda, o contacto com os companheiros espirituais tem um papel
maior. Não existe uma regra absoluta, somos todos diferentes e podemos
escolher de acordo com as nossas necessidades e inclinações.
Saibam sobretudo, no momento de tomar refúgio, que a vossa motivação
pode ser mais ou menos vasta: podem considerar o triplo refúgio
como um barqueiro, indispensável somente para vos fazer chegar à
outra margem, ou decidir tomar enquanto vós e todos os seres não
estiverem livres do sofrimento e do perigo. Assim cada um toma refúgio
pelo tempo que corresponde à medida da sua motivação.
De facto, alguns tomam refúgio para se protegerem durante esta vida
apenas, e preferem não pensar naquilo que a seguir se passará;
outros, com uma abertura de espírito inconcebível, a compaixão
imensa, comprometem-se até que todos os seres sem excepção
tenham atingido o despertar. Definitivamente, cada um é livre de
orientar a sua ou as suas vidas de acordo com os seus desejos e capacidades.
A seguir, aquele ou aquela que decidir apoiar-se nas Três Jóias
deve saber o que é preciso evitar ou adoptar:
Tomando refúgio no Buda, renunciamos a tomar refúgio
em seres ou pessoas que não estão ainda perfeitamente despertas,
ou de objectos exteriores (árvores, montanhas, sol, etc.).
Tomando refúgio no dharma, comprometemo-nos a fundamentar pensamentos,
palavras e actos na não-violência e a não fazer mal
aos outros, bem como a todas as formas de vida em geral.
Tomando refúgio no sangha, escolhemos evitar associarmo-nos
àqueles que perturbam os outros ou que os prejudicam, pelo menos
até termos adquirido a capacidade de libertá-los da sua confusão,
e comprometemo-nos a cultivar o altruísmo incansavelmente.
A prática do refúgio
Apesar desta prática ser um antídoto eficaz para todas
as emoções perturbadoras, a prática do refúgio
tem efeitos principalmente sobre o orgulho. Esta prática recorre
a duas abordagens, uma relativa, outra absoluta.
No plano relativo, fazemos apelo às técnicas que tomam
a luz como suporte da concentração. Visualizando diante de
vós uma forma luminosa e vazia de seres despertos, concentrem-se
na sua presença e recitem os diferentes mantras e orações
ligadas ao refúgio. Podem por exemplo reportar-vos ao texto do refúgio
dos «Preliminares do Novo Tesouro» de Dudjom Rinpoche:
A forma elaborada desta prática é acompanhada de prosternações.
Mantenham a mesma visualização e ofereçam uma prosternação
por cada recitação da oração.
No plano absoluto, o refúgio consiste em deixar o espírito
repousar no estado livre de todos os conceitos de sujeito, objecto e acção,
experimentando ficar na simplicidade natural do espírito. (Aqui
o sujeito é aquele que toma refúgio, o objecto aqueles em
quem tomamos refúgio, e a acção o facto de tomar refúgio.
Este tema será aprofundado em capítulos seguintes).
Vejamos mais precisamente este treino. O princípio é
de implicar simultaneamente o corpo, a palavra e o espírito no processo
da purificação. Sentem-se confortavelmente mantendo a coluna
vertebral bem direita. Podem juntar as mãos à frente do vosso
coração ou pousá-las sobre os joelhos, de acordo com
aquilo que melhor vos convier. Na moldura duma meditação
extremamente simplificada, é suficiente concentrar o espírito
sobre uma esfera de luz. Com um pouco de treino poderão visualizar
no espaço à vossa frente um ser desperto e considerá-lo
como a essência de todos os budas do passado, do presente e do futuro.
Se as inquietações ou os pensamentos começarem a desfraldar,
apliquem-se simplesmente a afinar os detalhes da visualização.
Mantendo quer a visualização, quer o estado de simplicidade,
cantem as estrofes do refúgio, recitem mantras e, em casos limites,
multipliquem as prosternações.
Consoante o nível da prática, uma prosternação
pode ser considerada como uma homenagem, ou como um meio de se ligar à
energia interior. O exercício físico é o seguinte:
pomo-nos de pé, os pés unidos, as mãos em «botão
de lótus» diante do coração. Elevando as mãos
juntas para levá-las sucessivamente à frente da testa, à
garganta e ao coração, abrimo-las seguidamente inclinando-nos
para pousá-las no chão ao lado dos nossos joelhos, antes
de escorregar para a frente, de maneira a alongarmo-nos completamente.
A testa vai tocar o chão entre os braços estendidos, as mãos
juntam-se na parte mais elevada do crânio. Levantando-se rapidamente
no movimento inverso, tomamos a posição inicial.
Este treino de movimentos reveste-se de um simbolismo muito completo.
Os pés unidos representam o equilíbrio das energias solar
e lunar que se apoiam sobre a terra, recordando também que o relativo
e o absoluto se unem sem conflito. As mãos unidas ao nível
do coração - a base das palmas das mãos unidas, as
extremidades dos outros dedos tocando-se ligeiramente, os polegares no
interior da cavidade - formam um botão de lótus representando
a sabedoria (ou a vacuidade) inseparável da compaixão. Aliás.
Este gesto ou mudra leva todas as energias positivas ao coração.
Levar as mãos sucessivamente à testa, à garganta e
ao coração, exprime a sublimação das energias
desviadas do corpo, da palavra e do espírito. Tocar o chão
com as mãos, os joelhos e a testa (portanto em cinco pontos) simboliza
a libertação dos bloqueios físicos.
É uma prática muito eficaz, um yoga completo posto em
prática especialmente por praticantes que dedicam a maior parte
do seu dia à meditação imóvel. Estaríamos
muito errados se a puséssemos de parte alegando que ela é
muito simples.
A formulação da oração do refúgio
é especial para cada conjunto de práticas preliminares. A
sua expressão mais breve é:
Isto significa: «Homenagem ao Buda, homenagem ao dharma, homenagem
ao sangha».
Quem rende homenagem, e a quem? Visualizem no espaço à
vossa frente o objecto do refúgio: um buda ou uma assembleia de
seres despertos, emitindo raios de compaixão e de luz. Em toda a
vossa volta, vejam a infinidade de seres do universo a tomarem refúgio
convosco: à direita e à esquerda os vossos pai e mãe
actuais, que vos deram esse precioso corpo humano, em seguida os vosso
familiares e amigos e todos os seres sem excepção.
A prática dos ensinamentos fundamenta-se na não-violência,
pelo que devem pôr à vossa frente os vossos inimigos. Serão
eles realmente inimigos? Examinem em quê eles vos parecem hostis:
o mais frequente é por causa duma ligação negativa
estabelecida pelo passado que um ser será julgado ameaçador.
Na realidade, nada nem ninguém pode ser qualificado como «inimigo».
Mesmo uma pessoa maldosa não procura fazer mal se não estiver
sob a influência do seu próprio sofrimento; ela merece por
isso um lugar de eleição nas vossas orações.
Durante a recitação do refúgio (ou durante as
prosternações), pensem que os raios de luz provenientes dos
budas transmutam todo o sofrimento: esta luz enche e purifica todos os
seres, dissipando os bloqueios e os véus ligados ao corpo, à
palavra e ao espírito. Ela regenera as vossas forças e protege-vos,
evitando que executem actos negativos. Inundando o corpo, a palavra e o
espírito de todos os seres, as suas vagas purificam igualmente a
atmosfera e o ambiente.
Pratiquem assim o refúgio durante um certo tempo, mergulhados
na oração e na luz. No fim da sessão, considerem que
vós mesmos e todos os seres saem purificados. Dissolvendo-se em
luz, estes últimos dissolvem-se uns nos outros e fundem-se em vós.
Agora, vocês tornam-se luz, para se dissolverem finalmente na forma
do ser desperto que, por sua vez, desaparece em luz.
O espírito fica no momento presente, aqui e agora, sem seguir
os pensamentos do passado, do presente ou do futuro: é a purificação
absoluta. É aquilo a que chamamos «repousar no estado natural
do espírito», um estado de frescura e de simplicidade, além
de todos os conceitos.
Treinar encontrar esta simplicidade fundamental permite restaurar a
confiança na nossa verdadeira natureza. A pulsão do orgulho,
essa necessidade de provar a nossa superioridade que não é
mais do que um sintoma de falta de confiança em nós, desaparece,
completamente liberta dentro do estado da sabedoria equânime.
Conclua cada sessão de prática dedicando os méritos
ao despertar de todos os seres.
Tomar refúgio é uma forma de dar de si, uma oferenda.
Com o voto do refúgio, comprometemo-nos a consagrar o treino espiritual
ao bem de todos; esta resolução suporta a nossa prática
e atrai, por intermédio do mestre espiritual, o apoio de todos os
seres despertos. Pronunciar formalmente o voto do refúgio e receber
um nome espiritual estabelece com efeito uma ligação profunda
com a linhagem de transmissão de Buda. Um praticante sente com frequência
a necessidade de se comprometer de uma forma tradicional, não porque
seria impossível de progredir sem isso, mas simplesmente porque
a sua prática recebe muitos benefícios.
Para concluir este capítulo, citarei três estrofes dum
ensinamento de um dos meus mestres principais, Dilgo Khyentse Rinpoche:
Para desenvolver a verdadeira confiança
Que varre tendências e véus kármicos
Fazendo-nos reconhecer o nosso despertar inato,
Tomemos apoio no refúgio relativo.
O refúgio absoluto, nosso despertar inato, é o fruto:
A natureza de buda, presente mas ignorada,
O estado natural de cada ser, de cada coisa.
Ao reconhecer o nosso despertar inato, tomamos refúgio absoluto.
O refúgio absoluto é a verdadeira natureza do espírito
Cujo conhecimento imediato tem três aspectos:
A vacuidade, que constitui a sua essência, a luminosidade a sua
expressão.
E a sua bondade profunda como uma imensidade onde nada faz obstáculo.
As expressões «espírito de despertar» e «pensamento
de despertar» que traduzem o termo sânscrito «bodhicitta»
- bodhi, iluminação ou despertar, e citta, coração
ou espírito - designam o estado desperto do espírito.
Dilgo Khyentse Rinpoche explica porque estamos tão longe do
despertar:
O apego e a aversão são as verdadeiras causas do nosso
vaguear contínuo no samsara. (9) Como chegámos a
isso? No princípio tivemos um pensamento individualista. A seguir
a esse pensamento desenvolveram-se toda a espécie de noções
tais como «meu corpo», «meu espírito», «meu
nome» e assim por diante. A seguir formou-se o pensamento de «o
outro». À força de considerar que alguns destes «outros»
eram agradáveis ou benéficos ao «eu», nasceram
sentimentos de apego e de desejo, e, inversamente, sentimentos de aversão
e ódio em relação àqueles que julgámos
desagradáveis ou nocivos para esse «eu». Nós
somos incapazes de atingir o despertar, porque nós estamos presos
em ciclos incessantes de atracção-repulsão.
Desenvolver a bodhicitta é uma prática que permite varrer
os véus mentais e subjugar todas as emoções perturbadoras.
Ela é particularmente eficaz para reconhecer e transformar a inveja.
Os ensinamentos falam da bodhicitta como base, via e fruto. O potencial
de despertar é a base que possuem todos os seres, sejam eles minúsculos
ou agressivos. A via é o ensinamento que nos ensina a desenvolver
esse despertar. O fruto é o pleno desabrochar desta potencialidade
e correspondente ao nível dos seres perfeitamente despertos.
Como para refúgio, a fim de entrar na prática da bodhicitta
de forma tradicional, podemos confiar na linhagem ininterrupta de bênçãos
transmitidas de mestre a discípulo pronunciando formalmente o voto
dos bodhisattvas na presença de um mestre espiritual ou de um objecto
sagrado. Esta transmissão confere uma força espiritual importante,
que nos ajudará a cultivar o espírito de despertar sem interrupção
e sem dificuldade. Podemos escolher um dia especial para tomar ou renovar
este compromisso, mas a bem dizer nos dias em que decidirmos desenvolver
o espírito de despertar, esse dia será «especial».
Tradicionalmente, os dias de lua cheia, de lua nova e de mudança
de fase são considerados propícios, por causa da influência
da lua sobre os movimentos de energia subtil no corpo; um voto tomado nessa
altura ganha em poder. Para tomar um exemplo que não é muito
feliz, é como se preparássemos uma emboscada a um inimigo
num desfiladeiro sabendo o dia e a hora da sua passagem: o sucesso está
garantido. Mas não pensem sobretudo que a bodhicitta só se
cultiva em presença de um ser desperto, ou no tal dia de calendário.
Podemos bem fazê-lo sozinhos, a todo o momento; podemos mesmo começar
de imediato! A bodhicitta está em cada um de nós. Ela não
está reservada a uma elite. Extremamente vasta, ela é universal:
todos os grandes sábios do mundo deram este ensinamento sobre o
amor, eu não vos peço que façam eclodir um amor «oriental»
ou «búdico», eu peço-vos que permitam simplesmente
que o vosso potencial de amor universal se expanda.
No que se refere à duração deste compromisso,
é possível adoptar a via dos bodhisattvas por uma hora, um
dia, um mês, ou então até que todos os seres tenham
atingido a liberdade perfeita. O essencial é começar e concluir
este acto com uma atitude resolutamente positiva.
A bodhicitta relativa; os quatro pensamentos ilimitados
A prática que visa o desenvolvimento da bodhicitta comporta,
como o refúgio, um aspecto relativo e um aspecto absoluto. Para
aprofundar o primeiro, apoiamo-nos em diversas técnicas de meditação,
em particular nessas que se referem aos «quatro pensamentos ilimitados»:
o amor, a compaixão, a alegria e a equanimidade.
O amor
O amor, ou a benquerença, é aqui o desejo de que todos
os seres sejam felizes e conheçam a causa da felicidade. No plano
relativo, a verdadeira causa da felicidade é a bondade, simplesmente
«ter bom coração». Portanto, os pensamentos negativos
ou violentos produzem infalivelmente o sofrimento, sem um só instante
de tranquilidade ou de alegria, enquanto que a benquerença e o altruísmo
são sempre uma fonte de felicidade e de paz. No plano absoluto,
desejar aos seres que conheçam a causa da felicidade implica que
eles possam reconhecer o estado de sabedoria que não é nem
obscurecido nem alterado pelas emoções perturbadoras.
Cada um já experimentou sem dúvida um rasgo de amor ou
de bondade incitando a oferecer a felicidade a outrem, alguém próximo
ou estranho. Um tal sentimento irrompe das profundezas do ser e ultrapassa
de longe o pensamento intelectual. De facto, é uma qualidade inata;
numerosos exemplos provam-no. Uma imagem marcante é a do amor maternal.
Dentro do reino animal, por exemplo, a mãe ave é conhecida
pela sua ternura imensa e espontânea para com os seus filhos. Antes
da postura de ovos, ela constrói cuidadosamente um ninho macio ao
abrigo dos predadores. Em seguida, ela choca os ovos quase sem interrupção,
apesar da fome e das intempéries. Quando as aves nascem, ela defende-as
com o bico e com as garras sem pensar na sua própria vida. Mesmo
fatigada e esfomeada, ela alimenta sempre os seus filhos em primeiro lugar.
Ela faz tudo isso naturalmente, sem jamais esperar nada em troca. Uma tal
forma de abertura desinteressada, que nós sentimos mais voluntariamente
por aqueles que nos estão ligados, é bastante próximo
daquilo que convencionamos chamar de «amor» no presente contexto.
Esta faculdade de desejar tornar todos os outros felizes existe em semente
no fundo de cada um; é suficiente fazê-la crescer.
Pode acontecer que esse sentimento irrompa espontaneamente mas que
seja difícil de tirar proveito disso, pois não sabemos como
exprimi-lo ou aumentá-lo. É por isso uma qualidade universal,
que nos liga uns aos outros; e porque nós temos esta potencialidade,
fonte de toda a felicidade, porquê não desenvolvê-la
até que ela se exprima continuamente?
É preciso começar por olhar em si mesmo para fazer eclodir
a bodhicitta, depois desenvolvê-la e estabilizá-la, para estendê-la
ao infinito. Nós sentimos com facilidade o afecto pelos nossos amigos;
abramos então o nosso coração a todos os seres, sejam
eles humanos ou não. De seguida, não será somente
necessário solidificar esse amor, mas ainda de dar-lhe uma dimensão
ilimitada: desejemos que em todos os reinos de existência os seres
encontrem a verdadeira felicidade e a sua causa profunda - o estado de
liberdade total que é a sabedoria interior.
Alguns conselhos do coração
Vários obstáculos interiores podem-se manifestar quando
começamos a meditar sobre o amor. Um deles consiste em excluir-se
a si próprio da globalidade desse amor. Pensar em todos os seres,
humanos ou não, inclui a nossa pessoa. É um ponto que convém
não esquecer. Se pensar «sim, eu sinto amor por todos os seres»,
faça com que isso não seja apenas palavras. Seria fácil
de mais. Por vezes não englobamos nesse amor todos os aspectos de
que somos feitos. Na aparência cremos que devemos devotar-nos a todos
os seres, mas no fundo não nos ocupamos de nós mesmos. Para
amar e ajudar os outros é preciso saber amar-se. Sentir um amor
muito vasto desbloqueia naturalmente as tensões físicas e
mentais. É suficiente que o espírito abandone a conceptualização
para que as tensões se apaguem. A profunda diminuição
da tensão interior que daí resulta, dissipa as doenças
físicas e as perturbações mentais.
Um outro obstáculo que pode surgir é o desvio egoísta.
Vendo de perto, não estaremos nós um pouco obcecados pelo
nosso próprio prazer, nosso conforto exclusivo, tomando-nos como
o centro do universo? Nós cremos amar as pessoas que nos rodeiam
e desejar o seu bem-estar, mas com frequência amamo-los pelo conforto
e segurança que eles nos trazem. Este egoísmo cai inevitavelmente
com fracasso desde que cultivemos o amor verdadeiro. Tornamo-nos então
uma grande ajuda para os outros.
«Mas, pensam talvez, tirar toda a subjectividade da minha faculdade
de amar, e estendê-la sem limites, isso não diminui a minha
felicidade e a minha estabilidade?». Pelo contrário, desabrochará
de dentro um bem-estar real, mais profundo e mais autêntico.
«Será oportuno, numa época tão dura como
a nossa, de acarinhar um sonho tão maravilhoso? É mesmo esse
o meu caminho, perguntam-se talvez, não é preciso temer que
todo o mundo procure tirar proveito de mim, que isso se torne um desastre,
e assim por diante?» Não se deixem entravar por tais pensamentos.
Tentem quanto antes deixar que o espírito de desspertar desabroche
o mais possível. «Ajudando os outros, ajudamo-nos a
nós mesmos», dizem os sábios. O amor é, antes
de tudo, uma atitude interior; quando agirem, procurem fazer o que é
melhor para os outros. Sobretudo, face a uma situação que
exija firmeza, tenham a certeza de que a vossa acção se fundamenta
na bondade antes de mostrar o mínimo de severidade.
Amar a outrem é vital. Por isso, a menos que essa abertura não
seja já espontânea e permanente, há que ser cultivada.
O primeiro passo, já referido, consiste em se comprometer a seguir
a via dos bodhisattvas e a juntar-se a esta linhagem viva.
No decurso da prática, apoiem-se nos budas e nos bodhisattvas,
tomando-os como testemunhas do vosso desejo e da vossa decisão de
cultivar desde o presente o amor pelo bem de todos.
Sintam a presença de todos os seres despertos sob a forma de
uma poderosa luz branca cujos raios purificam tudo o que possa impedir
o desabrochar do espírito de despertar. A luz derrama-se sobre vós
e sobre todos os seres. Utilizem a respiração e façam
propagar à vossa vez esta luz sobre a infinidade de formas de existência,
considerando que o espírito de despertar latente em cada um se desabrocha
plenamente. Existem orações particulares para este treino,
como esta contida no breve texto dos Preliminares do Novo Tesouro:
De hoje em diante, e enquanto o samsara não se esgotar,
Trabalharei para o bem e a felicidade de todos os seres,
meus verdadeiros pais.
Podemos também simplesmente servirmo-nos do pensamento.
Para progredir na via, treina-se aumentar sem cessar a benquerença.
Uma técnica consiste em interiorizar e pensar numa primeira fase
num ser que nos é caro, depois tentar estender este amor a um número
crescente de seres.
Como vimos, este tipo de introspecção faz às vezes
ressurgir um ponto sensível ou um bloqueio vindo de experiências
passadas. Isto pode ir até à descoberta do ódio em
relação a si próprio. Ora, é difícil
desenvolver a faculdade de amar e de servir a outrem se formos incapazes
de amar a nós mesmos.
Nesse caso, a primeira etapa consiste em trabalhar sobre si. Para ultrapassar
todos os bloqueios, olhem o problema bem de frente e concentrem-se na luz
dos seres despertos. O vosso corpo é constituído por cinco
elementos (terra, fogo, água, ar e espaço). Os cinco elementos
encontram-se também, no estado de energia pura, na presença
dos seres despertos, cuja luz transbordante de bênçãos
vos enche dissolvendo o ponto preciso onde nasce o vosso ódio por
vós próprios. Sirvam-se igualmente da vossa respiração:
absorvam sob a forma de luz a benção dos seres despertos
e, em particular, a essência subtil dos cinco elementos. A luz que
vos inunda varre os defeitos e age sobre os bloqueios e os pontos em desarmonia.
Ao expirar, pensem que libertam todas essas tensões, que são
retiradas e dissolvidas. Perseverem assim, sessão após sessão,
até fazer desaparecer esta intolerância em relação
a vós.
Uma vez restabelecido o equilíbrio e a confiança em si,
os sentimentos de culpa e de incapacidade para fazer face às situações
da vida acabam por se dissipar. Desde agora, é possível desejar
o bem-estar do próximo, da sua família e de todos os seres.
Começa-se portanto, numa primeira fase, por aprender a amar-se e
a encontrar a sua autonomia. Mas cada ser não pode sobreviver só
no universo; não estamos todos ligados uns aos outros? Importa,
consequentemente, estender este amor a todos aqueles que nos rodeiam, sem
esquecer os animais e as outras formas de existência.
Podem orientar esta reflexão para um ser particularmente próximo,
vossa mãe por exemplo. Não se detenham nos seus eventuais
lados negativos, considerem antes as suas qualidades. Quaisquer que sejam
as relações que hoje mantêm com ela, a vossa mãe
deu-vos afinal esta preciosa vida humana da qual gozam neste momento. Tomar
nascimento não é uma tarefa menor: durante uma grande parte
do bardo (o período intermediário entre uma morte e um renascimento),
o princípio consciente erra desesperadamente à procura de
uma matriz para aí se refugiar. Não se encontra com facilidade
uma mãe, pois só nos podemos abrigar numa matriz dum ser
com quem uma relação muito forte foi estabelecida no passado.
Durante os nove meses da gestação, a mãe alimentou
com a sua própria essência vital a criança que viria.
Esta última só traz consigo o princípio consciente,
o pai doa a sua semente e tudo o resto incumbe à mãe. Raros
são os nascimentos que se passam sem dor ou dificuldade para ela.
Os ensinamentos dizem que no momento do parto, ambas, mãe e criança,
se encontram a meio-caminho da morte. Se a seguir a passagem do nascimento
ao estado adulto tivesse lugar instantaneamente, isto seria perfeito; a
mãe poderia enfim estar tranquila. Mas a sua criança tem
necessidade de cuidados constantes durante muitos anos.
Após um nascimento, a família e os amigos chegam e extasiam-se
à frente do bebé; este último, de facto, está
tão desprovido como uma larva. Incapaz de se mover e de falar, ele
só pode mexer-se um pouco e chorar. Quando nós éramos
bem pequenos, não nos sentámos nunca nos joelhos da nossa
mãe para que ela fizesse as nossas toilettes? Foi preciso que ela
se ocupasse incansavelmente de nós, em todos os planos, até
que nos tornássemos independentes.
Alguns pensam que a sua mãe lhes deve isto por causa de uma
ligação kármica, e que é o dever dos pais ocuparem-se
das crianças. Mesmo se assim fosse, era preciso saber reconhecer
o que isto representa em termos de tempo e bondade. Ora, por enquanto,
uma tal compreensão é ainda problemática: como explicam
os ensinamentos, até à abertura do olho da sabedoria, temos
a tendência de ver nos outros os defeitos mais depressa que as qualidades.
Quando a sabedoria eclode, o que se passa no estado intermédio é-nos
revelado; sabemos então até que ponto é difícil
encontrar uma mãe.
Pensando assim na amplitude do serviço prestado, perguntemo-nos
como agradecer à nossa mãe e como aligeirar o sofrimento
de todas as mães, esta da nossa vida presente e essas das nossas
inumeráveis vidas passadas. Com efeito, desde tempos sem começo,
por ocasião de milhares e de milhões de encarnações
que vivemos sobre esta terra e sobre outros planetas, foi-nos sempre preciso
tomar corpo. Quantos seres foram nossas mães, num ou noutro momento,
sob uma ou outra forma, dentro dum ou doutro mundo? Não há
um único ser ao qual não estamos ligados.
Uma das maneiras de manifestar o reconhecimento a todos os seres, nossos
pais, consiste em esforçarmo-nos em trazer a cada um aquilo que
lhes faz falta. A melhor maneira de o conseguir é ter um bom coração
e dispensar a todos amor, compaixão e alegria, com toda a imparcialidade;
praticar e realizar intimamente o espírito de despertar é
a maneira mais eficaz de os ajudar na sua vida presente e no bardo.
A compaixão
A compaixão é o desejo de libertar os seres, sejam eles
quem forem, de toda a forma de sofrimento. O sofrimento, físico
ou mental, toma raiz nas atitudes e actos negativos, e prolifera numa multitude
de frustrações e de males. Ela impregna todas as formas de
existência. Os ensinamentos classificam estes diferentes modos de
ser em seis estados: dum lado, os reinos dos seres humanos, os seres celestes
e os animais, e do outro lado, num plano estritamente mental, os reinos
dos infernos, dos espíritos esfomeados e dos titãs.
O budismo considera de facto que o mundo dos homens não é
o único; existem outros mundos e outras dimensões. Nós,
humanos, só nos apercebemos geralmente do nosso reino e do reino
animal. Mas não é por não vermos os quatro outros
reinos que convém negar a sua existência.
As nossas faculdades mentais e visuais não estão à
medida de tudo conceber. O homem vulgar é dotado daquilo que damos
o nome em tibetano de «olhos de flictena» (bolha de serosidade
transparente, ampola) que só apreendem um campo de visão
imediato e limitado. De facto, o ser humano dispõe de diversos tipos
de visão. Alguns possuem aquilo que em tibetano se chama os «olhos
da carne», capazes de ver muito longe e mesmo através de objectos
sólidos como as colinas e as montanhas. A vista daqueles que têm
os «olhos celestes» cobre distâncias imensas. Os «olhos
do conhecimento», adquiridos pelo treino e experiência, podem
ver o passado e o futuro.
Quanto à visão «desperta» dos seres realizados,
ela não tem limites: abraçando o universo inteiro, ela conhece
a natureza dos fenómenos tal qual ela é. Segundo esta visão
perfeitamente clara, paralelamente aos reinos humanos e animal, existem
outras dimensões, e uma coisa é certa: nenhum dos seres que
erram nestes diferentes mundos pôde encontrar a liberdade interior.
Na imensa maioria, eles padecem de sofrimentos extraordinários.
Donde provém todo este sofrimento? De emoções perturbadoras
e de consequentes actos negativos. De acordo com Buda, só o facto
de conceber os diferentes reinos está ligado aos nossos actos passados
e presentes. As experiências duma pessoa sob o efeito de uma droga
não são todas tingidas por efeitos alucinantes desta? Sucede
quase o mesmo para os diferentes fenómenos apercebidos nos seis
reinos de existência; eles são projectados pelas emoções
perturbadoras e os actos consequentes. Dilgo Khyentsé Rimpoché
explica:
Como um artista possuidor de uma vasta paleta pode pintar uma infinidade
de
telas, da mesma forma as misturas de positivo e negativo determinam
onde
retomamos nascimento.
Os actos inspirados por uma grande aversão dão nascimento
àquilo a que chamamos de «infernos quentes» e de «infernos
frios». A agressividade é um sentimento tão explosivo,
e a sua expressão tão violenta, que cria percepções
intoleráveis de infernos quentes. Porém, a violência
não se mostra sempre abertamente; às vezes ela é muito
forte mas não expressa; está-se gelado de cólera e
de ódio contidos. As acções impregnadas por este tipo
de cólera criam percepções atrozes de infernos frios.
Os seres que, sendo largamente providos, são incapazes de partilhar
a mais pequena parte com aqueles que têm necessidades, por outras
palavras, os seres dominados pela avareza, prometem-se experiências
alucinatórias do reino dos espíritos famintos: uma fome e
uma sede que nada pode apaziguar.
Aqueles que têm preguiça intelectual e a fraqueza de intuição
preparam alucinações do estado animal, com a sua servidão,
o seu medo constante e os seus outros sofrimentos mentais.
As acções positivas embuídas de orgulho conduzem
os seres às alucinações dos reinos «celestes»:
durante longas eras, os deuses de longa vida dispõem instantaneamente
de tudo o que lhes faz feliz, mas no momento de morrer, o facto de sentirem
este maná escapar causa-lhes um sofrimento e uma angústia
indizíveis.
A inveja engendra pela sua parte as ilusões do reino dos titãs
e o sofrimento de guerras perpétuas.
Enfim, uma mistura destas emoções perturbadoras onde
domine o apego produz percepções do reino humano, no qual
os principais sofrimentos são o nascimento, a doença, a velhice
e a morte.
Mas não existe senão sofrimento? Estes seis reinos de
existência não comportam verdadeiramente nenhum aspecto positivo?
Sim! A motivação positiva e os quatro pensamentos ilimitados,
que podem conduzir os seres para além do círculo vicioso.
As boas acções estão necessariamente na origem da
preciosa vida humana, nosso quinhão actual. É primordial
tirar partido de todas as possibilidades que ela nos oferece: é
ela que permite a libertação e o socorro de todos os seres.
Se consagrarmos o tempo e a energia necessários à exploração
perfeita desta oportunidade, nós poderemos mesmo atingir a libertação
última desde esta vida, bloqueando à partida as vagas de
emoções perturbadoras cujos efeitos já avaliámos
em tantas vidas de sofrimento.
O comprimento da nossa vida é função das nossas
acções no decorrer de existências precedentes. A menos
que acumulemos acções extremamente positivas, não
a podemos prolongar, e cada segundo nos aproxima da morte. Mesmo que hoje
em dia se considere que a esperança de vida no Ocidente é
de 70 ou 80 anos, inúmeras causas podem interromper o curso duma
existência. Três factores entram em jogo: a duração
da vida, a energia vital e o princípio vital. Se um destes três
factores for fortemente perturbado por uma ou outra razão, torna-se
difícil continuar a habitar o presente corpo. Este carácter
efémero da vida sublinha a urgência de desenvolver o mais
depressa possível a capacidade de se ajudar a si mesmo e a ajudar
os outros. É uma incitação mais para cultivar o espírito
desperto, a fim de atingir custe o que custar o nível último
da libertação.
Sob o seu aspecto absoluto, a compaixão sublima a causa do samsara:
pois são as emoções perturbadoras que engendram atitudes
e actos negativos, são elas que é necessário libertar
no estado de sabedoria sem limites, onde cessam os conceitos de sujeito,
objecto e acção.
Resumidamente, a compaixão relativa leva a trabalhar com todos
os seres no plano material, físico e espiritual; a compaixão
absoluta trata as verdadeiras causas do sofrimento.
No decurso da meditação sobre a compaixão, pensem
no sofrimento, nas suas causas e deixem crescer em vós uma aspiração
profunda: desejem que todos os seres não sejam jamais confrontados
com a dor, a miséria, a frustração e às acções
que elas originam.
Como na meditação sobre o amor, podemos começar
por aqueles que nos são próximos e estender em seguida de
maneira ilimitada a compaixão a todos os seres.
A alegria
A alegria é a capacidade de sentir júbilo cada vez que
encontramos pessoas felizes. Em vez de sentir inveja pela sua felicidade
física, mental ou material, desejamos que o seu bem-estar não
só aumente, mas dure indefinidamente. Dentro deste contexto, «cultivar
a alegria» significa apreciar a felicidade de outrem, deixando de
lado a inveja que a torna insustentável.
Esta faculdade de sentir júbilo em vez de se deixar ir numa
inveja subtil ou malvada comporta um aspecto superficial e um aspecto profundo.
Alguns pensamentos ou simples palavras não bastam. Trata-se de fazer
brotar este sentimento das profundezas do ser. Esta prática aumenta
a propensão a ser feliz e permite regular as numerosas dificuldades
físicas e mentais ligadas à inveja. Fonte de felicidade e
de longevidade, ela amplia e prolonga a alegria dos outros.
O treino da alegria é idêntico ao do amor e da compaixão:
no decurso da meditação, exercitamos a engendrar este sentimento
e a mantê-lo durante o máximo tempo que for possível.
A seguir, aplicamo-nos a integrá-lo continuamente em todas as situações
da vida corrente. É um muito bom meio de libertar as vagas de alegria
que, do círculo próximo, se estendem cada vez mais.
A equanimidade
Cultivar o amor, a compaixão e a alegria em relação
àqueles que já amamos ou àqueles que nos são
próximos é relativamente fácil. Mas para que estes
sentimentos incluam todos os seres sem excepção, é
indispensável cultivar a equanimidade (10). Na moldura da prática,
comecem por sentir esses três sentimentos em relação
àqueles que vos são próximos e que já amam,
depois estendam-nos àqueles que conhecem menos bem. Para terminar,
chegam ao nível dos grandes sábios do passado em que o amor,
a compaixão e a alegria abraçava todos os seres, compreendendo
os seus «inimigos», com toda a imparcialidade. Dilgo Khyentse
Rinpotche o disse nestes termos:
Sem alguma parcialidade, a terra suporta tão bem os reis e os
poderosos
como os mendigos e os criminosos. Ela não suporta apenas os
bons para
afundar-se sob os pés dos maus. Nós devemos sentir esta
mesma imparcialidade
no amor e na bondade que estendemos a todos os seres, na verdade nossos
pais.
A equanimidade é adquirida exercitando-se primeiro mentalmente,
depois integrando-a na vida quotidiana. O objectivo é chegar a um
estado de igualdade onde não se faça a menor distinção
entre si mesmo e os outros. Esta imparcialidade sem limites estende-se
aos animais e a todos os outros seres. Como poderíamos excluí-los?
Sentimos a afeição pelo nosso animal da casa. Apercebemo-nos
de que ele precisa, tal como nós, de felicidade e de bem-estar.
Os outros animais não são diferentes: todos procuram o bem-estar,
nenhum deseja o sofrimento. Quando eles têm fome, frio, ou quando
eles são torturados, eles sofrem da mesma maneira que nós.
Alguns terão dificuldade em admitir que a potencialidade de
despertar existe no reino animal. Todavia, os ensinamentos de seres realizados
afirmam-no. O facto de os animais manifestarem amor pelas suas crias é
disso um sinal. O pensamento que poderemos igualmente cuidar de todos os
animais do planeta como fazemos com o nosso animal doméstico pode
parecer ridículo. Na realidade, a prática da equanimidade
pede que, numa primeira fase, façamos nascer o pensamento, e depois
cultivar uma atitude que englobe todos os seres. Pouco a pouco adquirimos
de uma forma natural a faculdade de passar da teoria à prática.
É muito mais simples do que se imagina.
A meditação sobre os quatro pensamentos ilimitados
Quando, pelo hábito da prática, se oferece uma perspectiva
sem limites ao amor, à compaixão, à alegria e à
equanimidade, podemos legitimamente falar de «quatro pensamentos
ilimitados». De facto, em lugar de reduzir o seu alcance a um pequeno
grupo de indivíduos, aumentamo-la a fim de incluir um número
infinito de seres; em lugar de a confinar à vida presente, estendemo-la
às vidas que virão. É assim que se cultiva o aspecto
sem limites destes sentimentos. O facto de se treinar primeiramente em
sessão de meditação traz um suporte indispensável
ao desabrochar dos quatro pensamentos ilimitados.
Depois de ter adoptado a boa motivação, expulsado o ar
viciado, e estabilizado o vosso espírito pela alternância
de concentração e de descanso, meditem sobre o amor, a compaixão,
a alegria e a imparcialidade. Podem escolher aprofundar um tema por sessão,
ou consagrar alguns minutos a cada um deles no decurso da mesma sessão.
Utilizem a vossa respiração: inspirem primeiro as vagas luminosas
de bênçãos dos seres despertos e a essência subtil
dos cinco elementos, assim como a sabedoria e a compaixão dos budas
dos três tempos. Sintam esta luz fazer parte de vós, enchendo
o vosso corpo até à mais pequena célula; um calor
que faz bem conquista-vos. A luz transmuta todo o sofrimento e restabelece
o equilíbrio onde houver uma fraqueza. Isto confere-vos a força
de desenvolver o pensamento ilimitado sobre o qual estão a trabalhar
equilibrando as energias subtis. A alegria invade-vos. Inspirem de seguida
o sofrimento dos seres e depois expirem, derramando sobre eles, sob a forma
de luz, o pensamento que tiverem cultivado.
Utilizamos por vezes esta técnica de maneira específica,
por exemplo para ajudar uma pessoa doente. Considera-se que a luz inunda
e dissolve todos os seus males. Mas é importante antes de mais trabalhar
de forma mais abrangente, fazendo raiar a luz em todos os seres. Concentrem-se
em primeiro lugar na expiração: com a respiração,
enviem vagas de luz que se expandem no início sobre aqueles que
nos rodeiam, depois estendendo-se progressivamente até penetrar
com a sua claridade os confins do universo.
Deixem a seguir que o espírito repouse dentro do seu estado
de limpidez e de simplicidade, sem conceitos de sujeito, de objecto e de
acção. Fiquem alguns instantes na pureza perfeita do estado
natural do espírito. Depois concluam dedicando o tempo e a energia
investidos nesta meditação a todos os seres sem excepção.
Progredirão nesta prática se consagrarem diariamente
um ou vários períodos que vão de alguns minutos a
uma meia hora. O ponto essencial consiste em exercitar-se primeiro na sessão
de meditação, para se fixar a seguir a fazer ressurgir o
mesmo estado de espírito na vida corrente. Com este método,
a paz interior e a força de abordar serenamente todas as circunstâncias
da vida não deixarão de se desenvolver.
Esta oração tradicional de uma grande força é
excelente para concluir toda a meditação:
O espírito de despertar é a mais preciosa das jóias:
Engendremo-lo se a coisa não estiver já feita;
Depois de engendrado, que ele nunca enfraqueça
Mas não cesse de se intensificar.
Possam todos os seres progredir até ao nível do despertar
total!
A bodhicitta absoluta: para além do sujeito, do objecto e da
acção
No início do treino para o espírito de despertar, trata-se
com amor os seres que têm necessidade de ternura e de calor humano.
Neste estado, considera-se que existe um sujeito (o próprio), um
objecto (o destinatário da acção) e uma acção
(a acção altruísta). Experimenta-se aplicar da mesma
maneira a compaixão, a alegria e a equanimidade a todas as situações
da vida corrente. Uma pessoa tem fome, por exemplo? Damos-lhe de comer.
Ela tem frio? Tentamos aquecê-la. Ela tem necessidade de roupas ou
de consolo? Esforçamo-nos para lhos dar ... Não é
inútil agora manter estes três conceitos (sujeito, objecto
e acção) presentes na mente. É preciso pelo menos
saber que eles provêm do nível relativo, e que no final eles
deverão ser transcendidos.
No momento de avaliar a sua atitude e a sua acção. O
«sujeito» pode dizer: «Eu hoje servi para alguma coisa,
que formidável! Pude verdadeiramente ajudar alguém...»
e sentir uma grande alegria. Essa alegria tem o seu valor naquilo que ela
reforça a energia na nascente de tais acções. Mas
não caiamos todavia na armadilha que consiste em se crer o único
a bem agir, o único que tenta verdadeiramente ajudar os outros.
Sob a aparência duma atitude positiva, produzir-se-ia agora uma energia
negativa subtil: uma forma de orgulho quase imperceptível que virá
diminuir a acção positiva.
Agir com amor ou compaixão sem estar consciente das nossas intenções
subjacentes pode constituir uma outra armadilha. Com frequência fazemos
prova de bondade, mas de uma certa maneira esperamos o reconhecimento.
Se a nossa «B.A.» não é suficientemente apreciada,
nós temos a impressão de estarmos expostos à ingratidão.
Uns indignam-se, outros irritam-se. Eis como uma espera interessada pode,
ela também, alterar um acto positivo.
Se é seguramente útil distinguir o sujeito, o objecto
e a acção, o essencial acaba por ser o não deixar-se
apanhar pela armadilha do orgulho e da esperança. Seria preciso
poder fazer o bem de maneira natural, sem estar agarrado pelas noções
de sujeito, objecto e acção.
Conta-se que outrora existiam excelentes mágicos que dominavam
a sua arte ao ponto de poder produzir ou transformar uma quantidade de
coisas. Enquanto que eles se não deixavam apanhar pelo seu próprio
jogo, eles mantinham a capacidade de projectar toda a espécie de
ilusões que encantavam a multidão de espectadores. Um bom
mágico sabia alegrar-se da beleza que ele oferecia ao público
mantendo-se consciente do seu carácter ilusório, ao qual
ele não se agarrava. Diz-se que a partir da crina de um soberbo
cavalo ou do cabelo de uma jovem deslumbrante, alguns mágicos podiam
fazer aparecer o cavalo ou a menina em tudo iguais ao original. Mas atenção
ao mago que fosse tomado do desejo de querer montar o cavalo-ilusão
ou de casar com a menina-miragem! Ele teria pura e simplesmente dissipado
a sua arte.
É melhor não imitar os maus mágicos. Deixem desabrochar
na espontaneidade os actos úteis aos amigos, à família
e aos outros seres, sem expectativa ou cálculo, sentindo apenas
a alegria de agir assim. A acção inspirada por uma tal atitude
só pode ser bem sucedida. Pelo contrário, mesmo um bonito
gesto verá o seu resultado falseado se o seu autor se prender às
noções de sujeito (ele mesmo), destinatário e de acção
executada.
A introspecção permite ultrapassar os limites que se
impõem nestas três noções. Se nós
pensamos: «Eu fiz uma acção positiva», procuremos
esse eu. O que é o eu? Quem é ele? Onde mora ele? Dentro
do corpo? Nós afirmamos ter um nome e um corpo, e consideramos que
o eu reside dentro desse corpo. Analisemos quem é o proprietário
do nome e do corpo. Acabaremos por concluir que o eu é talvez o
espírito.
Se assim for, o que é o espírito? Será o desenrolar
de pensamentos relativos ao passado, presente e futuro? Levemos a nossa
análise um pouco mais longe. Os pensamentos passados não
podem ser o eu. Tão pouco podem os pensamentos futuros e os pensamentos
presentes. Porquê? Os pensamentos passados são como um cadáver,
o que sobra dele? Dos nossos pensamentos de ontem e de toda a hora não
sobra senão uma lembrança, como pelos mortos. Quanto aos
pensamentos futuros, eles não existem ainda e são-nos desconhecidos.
Nós teremos eventualmente deles uma leve ideia, mas na realidade
ignoramos quais as vagas de pensamentos que se irão manifestar num
ou noutro instante, pois eles não são ainda nascidos. Quanto
aos pensamentos presentes, podemos dividi-los em presente-passado, presente-presente
e presente-futuro, e de novo em passados, presentes e futuros. Podemos
em verdade aplicar-lhes uma noção de identidade permanente
dizendo: «Este é um pensamento»?
Continuemos a análise. O que resta? Um estado de atenção
e de liberdade, um estado no qual a mente está às vezes alerta
e calma. Mas nós não conseguimos quase ficar neste estado
de liberdade total da mente se estivermos convencidos de que existem pensamentos
passados, futuros e presentes e que eles têm um valor. De facto,
aquilo que nos perturba e nos impede de ir além, é de ficar
agarrados à memória de pensamentos do passado, de querer
prender pensamentos que ainda não se manifestaram e de nos quedarmos
em pensamentos do presente. Uma tal investigação mostra a
importância de atingir um nível muito profundo da consciência,
que nós chamamos de a consciência desperta, livre de toda
a obstrução.
Voltemos à análise e consideremos agora o nome. Para
comodidade social, cada um traz um nome. Ele designa-nos e nós podemos
assim dizer que possuímos um nome. Mas o que é este nome?
O nome David, por exemplo, não é mais do que um conjunto
de letras. Separamos os diferentes caracteres D, A, etc. que o compõem,
onde está então o nome? Habitualmente, juntamos um grupo
de sílabas, depois conceptualizamos: «Isto é o meu
nome». Separemo-lo em diferentes sons, e o nome desaparece. Todavia,
antes de termos recebido um nome, não existíamos? E quando
mudamos de nome, o que se passa?
Continuamos o nosso exame: «Eu, eu fiz esta boa acção»,
dizemos para nós mesmos apontando com o dedo o nosso peito, como
se uma entidade sólida aí se encontrasse. Analisamos e verificamos.
Onde então reside esse eu? Na nossa mão, na parte superior
do nosso corpo, na sua parte inferior? Este corpo é composto de
diferentes agregados. Decomponhamo-lo nas suas partes constituintes; subdividamo-las
até ao infinitamente pequeno; não existe mais entidade sólida,
não sobra senão um campo de energia. É impossível
apontarmos o dedo sobre o que quer que seja afirmando: «Isto sou
eu».
Aplicando o mesmo método ao beneficiário da acção,
chegamos novamente a um campo de energia, e a ausência de toda entidade
substancial torna-se evidente. Pelo hábito de analisar desta forma,
desembocamos de repente num estado de liberdade, um estado virgem de conceitos
de entidade sólida «sujeito-objecto-acção».
Dilgo Khyentsé Rinpotché disse a esse propósito:
Realizar a vacuidade autêntica, é realizar a bodhicitta
absoluta. Não
há mais nada a fazer que ficar nesta simplicidade primordial,
livre
de toda a elaboração e actividade conceptuais.
Alguns objectarão: «Mas então, porquê agir
positivamente se não existe nenhuma entidade sólida sujeito-objecto-acção?».
Num plano relativo, o sujeito, o objecto e a acção existem.
É por isso que deveríamos imitar o bom mágico; saibamos
regozijar e apreciar o poder agir, mas evitemos crer no sujeito, agarrar
o objecto e implicar-nos exageradamente na acção. Ajamos
espontaneamente com confiança e alegria, sem abrir a porta às
emoções perturbadoras. Aliada à alegria, uma intenção
positiva e espontânea dissolve os bloqueios do corpo e do espírito
permitindo às coisas o desabrochar naturalmente.
A propósito desta análise, uma outra pergunta pode ser
posta: «Negar a existência do sujeito, do objecto e da acção,
não será niilismo?». De forma alguma. O espírito
de despertar, donde jorram amor, compaixão, alegria e equanimidade,
é a base de tudo, a primeira nascente. É um campo de energia
extremamente poderoso. Ao mesmo tempo, ele é intangível,
e difere nisso da percepção muito concreta que nós
temos da miragem sujeito-objecto-acção. É por isso
que, desde que tenhamos receio de percorrer o caminho errado, é
essencial virarmo-nos para o exame e a análise para chegarmos à
nascente: o espírito de despertar.
Alternando contemplação e análise, consegue-se
desenvolver um amor, uma compaixão, uma alegria e uma equanimidade
sem fronteiras. Dissemos já que era de importância capital
cultivar desde o começo os quatro pensamentos ilimitados na sessão
de meditação. Mas o que entendemos por meditação?
Isso é exclusivo dos praticantes experientes? Não verdadeiramente.
Também não é necessário ir a um templo ou a
um mosteiro, ou ainda de se encontrar na presença de qualquer alta
personalidade espiritual. O termo tibetano correspondente ao verbo «meditar»
significa de facto «acostumar-se a». Trata-se por consequência
de um exercício onde habituamos a mente a encontrar e a manter o
seu estado de espontaneidade, de bondade e de frescura naturais, esse estado
que os pensamentos não podem perturbar e que propaga a harmonia
e a benquerença.
As seis transcendências
Fora das sessões de meditação, e para melhor integrar
os quatro pensamentos ilimitados na vida quotidiana, apoiamo-nos nas seis
paramitas ou acções transcendentes: a generosidade, a disciplina
mental, a paciência, a perseverança, a concentração
e a sabedoria.
A generosidade
O dom material não é mais do que um dos aspectos da generosidade.
Ser generoso é também e sobretudo consagrar tempo e energia
a outrem. Na prática espiritual, isto significa agir com equanimidade,
amor, compaixão e alegria, adoptando uma perspectiva imensamente
aberta. De acordo com o tempo e a energia que dispomos, fazemos todos os
possíveis para responder às necessidades de cada um. É
preciso começar de forma comedida e desenvolver progressivamente
a faculdade de partilhar. Tentar, dum golpe inicial ultrapassar as suas
capacidades, é arriscar, em caso de insucesso, experimentar amargura
e arrependimento. A generosidade torna-se «transcendente» quando
ela é livre de conceitos de sujeito, de objecto e de acção.
É esta liberdade que permite realizar actos verdadeiramente benéficos.
A disciplina mental
A disciplina mental, que previne as acções negativas,
ajuda a actualizar os quatro pensamentos ilimitados. Trata-se em primeiro
lugar de conhecer as causas e os efeitos das acções do corpo,
da palavra e do espírito, depois de ter uma consciência justa
dos nossos próprios actos negativos e dos resultados que daí
resultam.
As acções negativas do corpo são: tirar a vida
de outrem; tirar aquilo que não é dado; procurar o seu próprio
prazer à custa de outrem.
As acções negativas da palavra são: mentir; semear
a discórdia; ter palavras duras, desagradáveis, grosseiras
ou que firam a outrem; falar para nada dizer.
As acções negativas do espírito são: o
desejo ardente, a malquerença e as vistas erradas.
As acções negativas produzem fatalmente efeitos negativos,
é importante que tenhamos consciência disso, a fim de as evitar,
sobretudo logo que tenhamos decidido cultivar a bodhicitta. É impossível
dar ao espírito de despertar o crescimento necessário se
continuarmos a praticar actos de violência: os actos negativos do
corpo, da palavra e da mente, sejam eles quais forem, devem ser abandonados.
A primeira etapa da disciplina é tomar consciência do que
era negativo, a segunda é tomar uma resolução muito
firme de tudo fazer para não agir de maneira negativa. Na vida quotidiana,
é preciso em particular evitar todo o acto de prejudicar a vida
a outros seres. É certo que talvez não façamos mal
aos seres humanos mas acontece ferirmos ou matarmos animais ou insectos...
É melhor saber que essas são acções muito negativas,
que têm por efeito reduzir a energia vital do seu autor e abreviar
assim a sua vida. Alguns encurtam a existência dos animais unicamente
pelo prazer; há porém muitas outras maneiras de ter prazer,
sem prejudicar a vida.
Quanto ao roubo, se certas coisas nos faltam, nada de nos impede de
pedi-las emprestado.
No que se refere aos actos negativos da palavra, é frequente
proferirmos palavras sem mesmo saber o que dizemos. Acontece por exemplo
fazermos troça ou, sem verdadeiramente pensar no mal, ter brincadeiras
que ferem ou semeiam a discórdia. Isto deve ser absolutamente corrigido.
A disciplina mental torna-se transcendente a partir do momento quando,
agir com altruísmo não suscita nenhum orgulho. Não
se trata de dizer: «Eu vou adoptar tal atitude com tal pessoa. Eu,
eu faço bem as coisas...». É preciso ir além
dessas limitações e viver a disciplina mental com desapego;
agora só ela pode ser considerada transcendente.
A paciência
A paciência, ou tolerância, é um assunto muito vasto.
Na vida, as pessoas são capazes de suportar muitas coisas, mas bastante
mais raramente aquelas que se referem ao essencial. Observemos bem: acontece-nos
fazer prova de uma paciência notável em domínios completamente
inúteis. Consagramos horas e horas a coisas que não terão
qualquer resultado positivo, seja para nós ou para os outros. Seria
tão bom se pudéssemos fazer prova de uma paciência
igual naquilo que é importante e benéfico a outrem!
Uma paciência autêntica é indispensável para
cultivar os quatro pensamentos ilimitados. Sem ela, o primeiro esforço
que exigirá a aplicação da nossa aspiração
ou a primeira dificuldade que surgir parecer-nos-á intransponível
e entravará a nossa progressão. É preciso também
abrir um campo ilimitado a esta tolerância, livre de toda a influência
dos três conceitos de sujeito, de objecto e de acção.
A perseverança (ou diligência)
A palavra perseverança comporta numerosas acepções.
No quadro das seis paramitas, ela designa principalmente a atenção
investida naquilo que fazemos. A perseverança desenrola-se naturalmente
naquele que sinta a alegria de realizar aquilo a que se propôs. Sem
esta alegria, ela perde a sua força e extingue-se rapidamente.
Quando este interesse toma para seu aliado uma forte determinação,
é então fácil levar uma actividade a bom cabo. A perseverança
é absolutamente necessária a quem deseja integrar o amor,
a compaixão, a alegria e a equanimidade na sua vida quotidiana.
Aquele ou aquela que a toma como armadura pode mobilizar as forças
e defrontar todas as dificuldades a fim de viver de acordo com a sua aspiração.
A concentração
A concentração é também chamada de contemplação,
ou por vezes de meditação. Seja qual for o nome que lhe damos,
trata-se, neste contexto, da atenção focalizada num único
ponto. A concentração constitui ela também um suporte
fundamental no nosso esforço de incorporar os quatro pensamentos
ilimitados na vida de todos os dias; ela permite estar consciente sem se
distrair do objectivo.
A sabedoria
A sabedoria comporta numerosos aspectos dos quais a consciência
adquirida pela escuta, a adquirida pelo estudo, e a sabedoria nascida da
meditação.
Pela escuta ou a leitura de ensinamentos, adquire-se um conhecimento
teórico ou intelectual. Mas é preciso ir mais longe; a segunda
etapa é a reflexão sobre aquilo que ouvimos ou lemos. É
ela que permite assimilar o sentido dos ensinamentos. A terceira etapa,
a prática da meditação, faz nascer a seguir um conhecimento
límpido e luminoso - a sabedoria da meditação. A certeza
muito clara e profundamente enraizada que se eleva agora do interior permite
pôr em acção aquilo que compreendemos. Esta sabedoria
ou conhecimento supremo desabrocha num plano intuitivo; ela não
é de ordem intelectual. O intelecto é certamente útil
no começo, mas é a experiência da meditação
que é capital. Ela sozinha pode transformar em certeza aquilo que
à partida não era mais do que compreensão.
A sabedoria serve de suporte à generosidade, à disciplina,
à paciência, à perseverança e à concentração.
Diz-se que ela representa os olhos de cinco outras acções
transcendentes; sem sabedoria, as outras transcendências são
cegas. Por outro lado, a sabedoria não pode passar sem as pernas,
que são esses cinco meios hábeis. O treino quotidiano dos
quatro pensamentos ilimitados exige que se pratique conjuntamente as seis
transcendências.
Resumindo, para cultivar a mente desperta, abramos amplamente a nossa
própria mente. Engendremos a atitude desperta com a ajuda dos quatro
pensamentos ilimitados, tomando logo de início a consciência
da importância de todos os seres, amigos ou não, que numa
ou noutra vida foram a nossa mãe. Apreciemos as suas qualidades
e pensemos na sua bondade a partir deste momento com reconhecimento. Tentemos
pôr em prática a mente de despertar com a ajuda das seis transcendências.
Encurtando, insuflemos uma intenção positiva ao menor dos
nossos actos, concentremo-nos naquilo que fazemos, seja em meditação
ou na vida quotidiana, e para terminar, dediquemos o fruto do despertar
último à felicidade durável de todos os seres.
A prática do refúgio é o antídoto do orgulho
e permite dissipar os véus subtis e menos subtis, agora que a prática
da mente desperta age como antídoto da inveja. Para subjugar a aversão
sob todas as suas formas (cólera, agressividade, violência
e outras), o conjunto de práticas já descritas é absolutamente
excelente; entretanto, a do buda Vajrasattva revela-se a mais eficaz. Ela
contribui também para entravar a acção das novas doenças
que punem os nossos dias.
No século oitavo, o grande mestre Padmasambhava (11) tinha já
predito que, na nossa época, a proliferação de armas
e de tecnologias produziriam poluições de todas as espécies,
favorecendo assim a aparição de doenças desconhecidas,
muito difíceis de tratar. É por isso que grandes mestres
contemporâneos, tais como Dudjom Rinpoché e Khyentsé
Rinpoché, aconselharam com frequência a prática de
Vajrasattva a pessoas em fase terminal de doenças como o cancro.
De maneira inexplicável para os seus médicos, elas viveram
muito mais tempo que era suposto.
Por outro lado, apoiando-se em técnicas ligadas à meditação
sobre Vajrasattva, é possível transformar as dificuldades
relacionais que agitam a vida familiar, social e profissional. De facto,
estes problemas advêm de diferentes bloqueios ou desequilíbrios
ligados ao plano subtil que são sensíveis ao mantra de Vajrasattva.
A prática de Vajrasattva está fundada em quatro forças:
(1) A primeira, a força do suporte da concentração,
consiste em visualizar sobre a nossa cabeça a forma radiosa de Vajrasattva,
branco ou transparente como um cristal. Cada cor tem um efeito importante
sobre o espírito; a cor branca é frequentemente utilizada
nas práticas de pacificação ou de purificação.
Aqueles que têm o hábito ou a faculdade podem visualizar em
detalhe o ser desperto, mas saibam que o mais importante é sentir
a sua presença.
(2) Segue-se a força do reconhecimento. Através de uma
introspecção relativa à forma como vivemos até
ao presente, procuramos e reconhecemos as causas das doenças e das
dificuldades reencontradas. Esta análise traz à luz os actos
benéficos que temos a nosso favor, mas ela mostra também
o mal causado a outrem no decorrer da nossa existência, por vezes
inconscientemente, outras vezes com consciência. Como disse Khyentsé
Rinpoché:
Consideremos quantos pensamentos de ignorância, de cólera, de desejo, de inveja e de orgulho surgem em nós no espaço de um dia. O karma negativo que nós rebocamos é muito pesado, pelo facto de termo-nos deixado estar durante numerosas vidas em actividades principalmente negativas. Se tivéssemos feito prova de outro tanto de perseverança em actividades positivas, seríamos já budas.
Não serve para nada deixarmo-nos torturar pelo remorso. Ao contrário,
é indispensável aceitar e tomar consciência dos nossos
actos, de reconhecê-los e de compreender que uma acção
negativa não pode jamais dar outra que não um resultado infeliz.
Se, no decurso da nossa introspecção, os actos da vida presente
não explicarem tudo, é porque esta vida não é
a única, já houve tantas outras. Recordemo-nos, este corpo
é como um quarto dum hotel. Tal como um viajante que vai de um para
outro albergue, o nosso espírito muda de corpo de vida em vida...
Por vezes é necessário recuar muito longe no tempo para encontrar
a razão verdadeira dos acontecimentos que marcam a nossa vida actual.
Quando a introspecção se desenrola no estado de simplicidade
e de claridade da mente, alguns podem ter uma intuição exacta
das causas daquilo que lhes sucede. Também podemos apelar à
clarividência de um grande mestre.
(3) A terceira força é a da purificação.
Reconhecer as causas dos problemas não chega, ainda falta purificar
o conjunto do processo causas-efeitos servindo-se de técnicas baseadas
na visualização e nos mantras que serão referidos
mais adiante.
(4) A quarta força é a determinação: decidimos
de maneira irrevogável rejeitar como um veneno mortal todo o acto
negativo, mesmo que ela pareça insignificante.
A visualização
O texto dos Preliminares do Novo Tesouro introduz assim a prática:
Na parte mais alta da minha cabeça, encontra-se o mestre, inseparável
de Vajrasattva, Do seu corpo correm rios de néctar, que purificam
todas as minhas impurezas.
Em cima de vós, sobre um lótus desabrochado, está
o disco de uma lua cheia. Visualizem sobre esta lua radiosa, cristalina,
o buda Vajrasattva, essência e manifestação de todos
os seres despertos do passado, do presente e do futuro... Vajrasattva detém
também a essência subtil de todos os elementos. Concentrem-se
com uma total confiança e sintam a sua presença. Reconheçam
a seguir todos os actos negativos que causaram os vossos sofrimentos e
os de outrem. Tendo assim estabelecido aquilo que há para ser purificado,
repousem sobre a visualização de Vajrasattva e pratiquem
a purificação.
A recitação do mantra da purificação
Existem numerosos mantras associados a esta prática. O mantra
das cem sílabas é o mais utilizado, por causa da sua eficácia
em termos de purificação e de cura. O mantra de Vajrasattva
em seis sílabas aplica-se a uma recitação mais condensada.
Durante o processo de purificação, quer recitem um ou outro
mantra, concentrem-se sobre o néctar que se propaga em vós.
Visualizem no centro do coração de Vajrasattva a sílaba-semente
Hung, rodeado das seis sílabas Om Vajra Sattva Hung, ou das cem
sílabas. Numa primeira fase, visualizem claramente cada sílaba,
depois entoem o mantra. Podem cantá-lo, recitá-lo ou pronunciá-lo
mentalmente.
A repetição destes mantras age sobre diferentes partes
e centros do corpo. Em tibetano, o desenho da sílaba Om, por exemplo,
é composto de três elementos. A ressonância destes três
elementos reunidos abre os diferentes centros do corpo. Cada uma das outras
sílabas tem, também, um efeito sobre os pontos energéticos
do nosso corpo. As seis sílabas do mantra curto estão em
relação com as cinco emoções perturbadoras,
às quais se junta a avidez, e também com os seis reinos de
existência. Para dar um breve ideia dos seus sentidos, Om representa
a essência do aspecto corporal de todos os seres despertos; Vajra
(em sânscrito, ou ‘’Benzar’’ de acordo com a pronúncia tibetana)
significa indestrutível, Sattva o ser e Hung a realização.
A concentração sobre a visualização e a
recitação do mantra fazem brotar do coração
de Vajrasattva e do círculo das sílabas uma imensa quantidade
de raios de sabedoria bem como um néctar límpido. O néctar
misturado com a essência dos cinco elementos enchem a forma do ser
desperto até transbordar dele e derramar-se em vós pela fontanela.
Uma vez o chakra da cabeça completamente cheio, o fluxo luminoso
que continua a correr propagando-se dentro de todo o vosso corpo. À
medida que o néctar corre, ele purifica tudo à sua passagem,
desfazendo os diferentes bloqueios e restabelecendo a harmonia.
O poder desta torrente põe em movimento todas as impurezas do
corpo, da palavra e da espírito, que são eliminadas pelas
aberturas maiores e menores do corpo, bem como por todos os poros da pele.
De esta maneira são evacuadas as toxinas provenientes de produtos
que por vós foram absorvidos, os resultados dos vossos actos negativos
(causas de doenças físicas e mentais), os pensamentos geradores
de energia negativa (assimilados a forças negativas) e os véus
subtis da mente.
Entremos mais em detalhe. Considerem em primeiro lugar que este néctar
misturado com luz lava completamente o vosso corpo de toda a forma de doença,
latente ou declarada, rejeitada sob a forma de sangue apodrecido e pus.
Quanto mais a sujidade sair, mais o néctar corre. Depois vejam as
forças negativas que vos deixam sob o aspecto de monstros e de insectos
horríveis. A torrente luminosa persegue até à mais
ínfima destas formas, que não são mais que o produto
dos vossos pensamentos negativos. Seguidamente, os resultados e as marcas
das acções negativas são eliminadas pelas aberturas
maiores e menores e pelos poros da pele. Eles escapam-se como uma matéria
escura e espessa, preta pelas acções negativas graves, cinzenta
pelos conceitos, mais subtis. Recitando sempre o mantra, concentrem-se
com atenção até sentir que o vosso corpo se tornou
perfeitamente transparente e límpido. Tudo em vós reencontra
uma claridade cristalina.
A dissolução
O texto continua:
Fundindo na luz, ele mistura-se com o meu ser num e mesmo sabor.
Para terminar, considerem que Vajrasattva se dissolve em luz. Esta
propaga-se em abundância progressivamente em vós: penetrando
pela fontanela, ela atravessa sucessivamente, inundando de bem-estar, os
chakras da fronte, da garganta, do coração e do umbigo. Tentem
sentir as quatro experiências de alegria, de felicidade, de grande
felicidade e de felicidade extraordinária. Para terminar, a luz
de Vajrasattva enche-vos completamente; misturados indissoluvelmente no
vosso corpo, palavra e espírito, ela purifica até planos
dos mais subtis no vosso ser. Agora, o vosso corpo, a vossa palavra e a
vossa espírito não são mais do que um com os três
aspectos do ser desperto. Apercebem-se do vosso corpo sob a sua verdadeira
forma: um corpo de luz, diáfano e radioso. Estando totalmente identificados
com Vajrasattva. Recitem as seis sílabas. Do centro do vosso coração
jorra em todas as direcções uma abundância de raios
luminosos predominantemente brancos. Penetrando um número infinito
de seres, eles apagam os seus bloqueios físicos e mentais, e purificam-nos
perfeitamente. O universo e os seres fundem-se em luz. Fiquem simplesmente
neste estado de claridade.
Alguns conselhos
A sessão de prática pode durar mais ou menos tempo, mas
seja qual for o tempo que a ela consagrarem, o que importa, é assimilar
a essência da prática. Eis aqui alguns conselhos que vos poderão
ajudar.
No fim da primeira fase, que se apoia na recitação e
no derramar ininterrupto de néctar, tentem sentir que estão
completamente purificados e que o vosso corpo, lavado de todas as doenças
vividas ou potenciais, está transparente como um cristal, tal como
o do buda Vajrasattva. Adoptem agora uma determinação inquebrantável,
formulando de todo o vosso coração o voto de nunca mais cometer
uma só acção negativa.
Quando a forma de Vajrasattva se dissolve em luz que se propaga em
vós, pensem que as bênçãos do corpo do buda
vos enchem. Logo que esta luz atinja o centro da vossa fronte, considerem
que o vosso corpo, perfeitamente purificado, torna-se tão indestrutível
como o diamante. Depois a luz desce dentro do centro da garganta, e todas
as palavras negativas que puderam pronunciar são totalmente purificadas.
Recebem as bênçãos da palavra do buda: a vossa palavra
torna-se tão indestrutível como o diamante, toda a palavra
que pronunciarem será benéfica e positiva. A luz desce dentro
do centro do coração. Recebem as bênçãos
da mente do buda, tudo o que vela a sabedoria dissolve-se. A vossa mente
torna-se diamante indestrutível, nenhum pensamento vulgar poderá
influenciar-vos. É a iniciação à sabedoria
perfeita. Quando a luz atinge o nível do umbigo, os véus
mais subtis das tendências habituais desaparecem.
Recebem assim as bênçãos do corpo, da palavra e
da mente de Vajrasattva, e tornam-se um com o ser desperto. A experiência
da vacuidade-sabedoria nascida desta união com o ser desperto faz
brotar espontaneamente em vós uma compaixão sem limites.
Ela brilha a partir de Hung dentro do vosso coração e de
todos os poros da vossa pele. A claridade propaga-se até aos mais
pequenos recantos da sala, propagando-se na cidade, no país... O
planeta inteiro está inundado por esta luz que dissipa doenças
e sofrimentos e pela poderosa compaixão transforma os seres dos
seis reinos de existência: os seus corpos tornam-se tão transparentes
como o cristal mais perfeito; os seus gritos de dor transformam-se em sons
do mantra; o seu espírito, livre de toda emoção conflituosa,
não é mais que claridade.
O universo, metamorfoseado em luz, reabsorve de fora para dentro até
que vós, Vajrasattva, que funde por sua vez na sílaba Hung.
Esta dissolve-se em luz de baixo para cima para desaparecer no espaço.
Tudo é vacuidade, sabedoria. Deixem a vossa mente repousar algum
tempo no seu estado de limpidez natural.
Para concluir, pensem oferecer os méritos desta prática
à felicidade de todos os seres e à sua libertação
última.
Esta meditação, que transforma a cólera em sabedoria,
pode tornar-se a vossa prática quotidiana, Recorre-se igualmente
a ela em circunstâncias particulares, logo que alguém próximo
de nós fica doente, por exemplo. Existem neste caso duas maneiras
de proceder. Ao mesmo tempo que o néctar é derramado em nós
e nos purifica, ele se propaga também na pessoa doente e a purifica.
Ou então, apliquem primeiro a vós a prática da purificação,
e em seguida, quando se tornam Vajrasattva, inundem o doente com uma luz
que purifica todos os seus sofrimentos. Normalmente, antes de utilizar
estas técnicas para ajudar a outrem, é conveniente exercitar-se
sobre si mesmo, pois é necessário que antes se familiarizem
com a prática e adquiram uma certa habilidade.
Com frequência, somos escravos de objectos que acumulamos. Uns
são indispensáveis, mas a maior parte só servem raramente;
um dia eles fizeram-nos sentir desejo e hoje nós não sabemos
onde metê-los.
Em certas regiões do Tibete, até recentemente, cada um
podia alimentar-se de frutos selvagens que cresciam em abundância.
Agora é preciso trabalhar , pois tudo se compra e tudo se vende.
O mundo inteiro entrou num círculo vicioso: desejar, comprar, trabalhar.
A variedade dos produtos existentes e uma publicidade excessiva dão-nos
vontade de comprar tudo. A nossa sede de possuir é tão grande
que rapidamente os nossos apartamentos tornam-se exíguos. Apesar
do peso desses bens na nossa vida, nós acumulamos sempre mais. Os
ensinamentos insistem neste ponto: as nossas necessidades são simples,
mas os nossos desejos são infinitos; aí está uma nascente
de grandes dificuldades.
A prática da oferenda do mandala, antídoto do nosso apego
às possessões e aos nossos desejos ilimitados, comporta muitos
aspectos. O aspecto formal da oferenda consiste em dispor grãos,
plantas medicinais e pedras preciosas ou semipreciosas de acordo uma construção
precisa. Esta prática visa pacificar os três sofrimentos maiores
(fome, guerras, epidemias) que afligem os seres em numerosas regiões
do planeta. Oferecemos portanto aos seres despertos oferendas simbólicas:
os grãos para cortar a avareza que causa a fome, as plantas medicinais
para suprimir a ignorância que faz nascer as doenças, e as
pedras preciosas ou semipreciosas para pôr fim ao desejo ardente
misturado com a agressividade, que provoca as guerras.
Fora das sessões de prática, aplicamo-nos a integrar
a generosidade na nossa vida quotidiana, por exemplo dando de comer àqueles
que têm fome. Treinamo-nos também a oferecer mentalmente aos
budas tudo o que vemos de agradável. Vemos belas flores ou bons
frutos? Ofereçamo-los em pensamento aos seres despertos, a fim de
que eles repartam a essência com aqueles que tiverem realmente necessidade.
Associemos a oração do mandala a este pensamento.
A maneira de rezar, as visualizações e a maneira de suprimir
o sofrimento dos seres compreendem numerosos detalhes que encontraremos
expostos no segundo capítulo da obra de Patrul Rinpoché,
traduzida em francês sob o título de ‘’Le Chemin de la Grande
Perfection’’. Para uma prática simples, podem fazer referência
ao texto dos Preliminares do Novo Tesouro:
Na sucessão das minhas vidas, meu corpo, minhas possessões
e tudo o que me glorifica,
Eu os ofereço às Três Jóias a fim de
acumular perfeitamente
mérito e sabedoria.
Em geral, desde que se deseje uma coisa, sentimos uma frustração,
e quanto mais desejamos, mais a sensação de falta aumenta.
Praticar a generosidade com a oferta do mandala ensina a abandonar esta
avidez e a satisfazer-se com a simplicidade; torna-se mais fácil
de satisfazer as suas necessidades fundamentais. Aqueles que têm
poucas necessidades têm a liberdade da mente à mão
de semear.
Na prática do mandala, aquilo que conta, bem mais do que os
grãos ou as pedras preciosas que oferecemos, são os bons
pensamentos, mesmo que seja um único. Ofereçamos a nossa
abertura de coração, as nossas impulsões altruístas
e todo o bem conseguido até este dia; doemos aos budas todos os
actos benéficos do nosso corpo, nossa palavra e nosso espírito.
Oferecer-lhes o mandala, é também pedir-lhes que abençoem
os inumeráveis seres, a fim de que todos se libertem do apego e
da avidez, fontes de situações incrivelmente dolorosas e
complexas.
Podemos perguntar-nos para que serve oferecer aos seres despertos a
abertura de coração que é a semente do despertar?
Terão eles necessidade disso? Não mais do que a terra precisa
da semente da macieira. São aqueles que apreciam e comem as maçãs
que terão necessidade das sementes. Mas dar-lhes apenas as sementes
não mitiga a sua fome, desde que semeadas em terra fértil,
estas tornar-se-ão macieiras que, a cada outono, se carregarão
de frutos. Os seres despertos são um campo sempre fértil,
e semear aí a semente do despertar será fecundo para todos
os seres.
Aliás, mesmo a oferenda material não se limita aos objectos
que oferecemos. Imaginamos o que os grãos simbolizam. Ao mesmo tempo
que os dispomos no prato do mandala, oferecemos o universo exterior e a
nós mesmos como o universo. Os nossos quatro membros são
os quatro continentes, os cinco dedos os sub-continentes, os órgãos
são as divindades da oferenda, e assim por diante. No plano subtil,
oferecemos as oito consciências (12), as cinco sabedorias (13) ...
Tentamos imaginar as oferendas sob a sua forma subtil e luminosa. De
facto, é a sua essência que oferecemos. Esta prática
tem por objectivo habituar o praticante a tomar consciência de que,
tal como um grão não se limita à sua aparência
de grão, cada ser e cada objecto de percepção comporta
aspectos cada vez mais subtis (átomos, partículas, vacuidade,
luminosidade...). O mandala apresenta-nos assim a «visão»
(Tradução literal do tibetano lta ba: visão
autêntica, no sentido de conhecimento imediato do verdadeiro modo
de ser das coisas) da sabedoria. De facto, esta prática refere-se
a dois aspectos da omnisciência dum buda: o conhecimento infalível
da natureza absoluta de todas as coisas, e o conhecimento ilimitado da
totalidade dos fenómenos.
Todas as práticas que já vimos agem com eficácia
contra a ignorância, cujo antídoto específico se encontra
na prática do yoga do mestre. A nossa ignorância é
tal que não temos consciência da simplicidade natural da nossa
mente: ela está escondida por diferentes véus. A prática
deste yoga permite-nos reencontrar o estado primordial da nossa mente dissipando
todos os véus que a ocultam.
O que é uma «preciosa existência humana»?
Não é concebível atingirmos um objectivo tão
nobre sem a ajuda de um corpo. Aliás, é necessário
pertencer à espécie humana para atingir a libertação
no decurso da sua vida. A condição humana tem um grande valor,
pois só ela permite a realização pessoal e o devotamento
perfeito a todos os outros.
Ora, para beber uma simples chávena de café, por exemplo,
não é preciso reunir todo um conjunto de elementos indispensáveis
como a água, o café, o fogo, um recipiente? Se uma dessas
coisas faltar, não vai haver a pequenina chávena de café!
Agora, se é preciso combinar tantos ingredientes para fazer qualquer
coisa assim tão simples, percebemos melhor que, para aqueles que
desejam avançar na via do despertar espiritual até à
libertação última, os ensinamentos dão com
precisão a importância de uma vida humana provida de oito
liberdades e de dez condições favoráveis. Uma existência
que reuna todas estas qualidades não sendo vulgar, qualificamo-la
como «preciosa existência humana».
É muito útil verificar com regularidade se estamos, ou
não, de posse de cada uma destas dezoito qualidades. Vejamos em
primeiro lugar as oito liberdades. Somos «livres» desde que
não nos encontremos em qualquer das oito situações
seguintes, que constituem um obstáculo maior à prática
e à realização.
(1) Logo que tenhamos nascido nos infernos, sofremos tão desmedidamente
que é praticamente impossível ter qualquer ideia de nos salvarmos.
Algumas das nossas atitudes face às situações da vida
evocam as esferas infernais: alguns conflitos interiores, mantidos por
uma violência incessante e uma agressividade dirigidas contra si
mesmo ou contra outros, interditam todo o progresso espiritual. É
preciso por isso estar livre deste género de grilhões, ou
ter a determinação de se libertar disso.
(2) O apego egoísta e a avareza criam as condições
de um mundo onde tudo falta de maneira aguda e permanente - a comida, a
água, tudo o que é necessário à vida. Quem
é que, torturado por um tal sofrimento, teria tempo disponível
e a paz necessárias ao progresso espiritual? Vejamos bem se nós
mesmos não estaremos a ser presas de um qualquer sentimento de frustração.
Pois é a ausência deste sentimento que constitui a segunda
liberdade.
(3) Não sendo um animal, juntamos a terceira liberdade. É
verdade que alguns animais fazem prova de certa inteligência, mas
geralmente a espécie animal obedece ao instinto, mais que ao pensamento
ou à intuição. Para melhor ajudar os outros, alguns
grandes seres escolheram reencarnar no mundo dos animais, mas fora este
caso específico, será sempre muito difícil a um animal
de imaginar como ele poderá tratar dos outros de forma definitiva;
é portanto impossível aos animais atingirem a libertação.
Por analogia, os seres humanos privados de inteligência e, a fortiori,
de sabedoria, terão dificuldade de progredir na via espiritual.
(4) Também não temos liberdade se pensarmos que a violência
física e mental é a única forma de responder às
diferentes situações da vida. Recordemo-nos sempre que os
ensinamentos de Buda condenam absolutamente a violência: ela não
pode em nenhum caso desembocar na libertação, porque é
impossível que uma acção negativa produza um efeito
positivo. Nós devíamos fazer o esforço de olhar para
nós sem complacência e ver se não estamos totalmente
influenciados por aqueles que preconizam a violência em vez da via
espiritual. Será que a violência não me atrai um pouco?
Não tirei jamais prazer de fazer sofrer aqueles que me rodeiam?
Se sim, posso ter a certeza que a libertação não está
ao meu alcance. Tomemos bem consciência daquilo que nos fará
libertar o mais rapidamente possível deste género de tendências.
(5) Em certas esferas celestes, temos um corpo não físico
mas mental; vivemos, diríamos, numa espécie de estado comatoso
que não permite nenhum tipo de aspiração de libertação,
seja ela qual for. É o mesmo para os nossos irmãos humanos
ditos débeis mentais. A inconsciência dos seres do mundo sem
forma, tal como a estreiteza intelectual característica, são
obstáculos poderosos ao progresso espiritual.
(6) Pondo em causa a validade da via e duvidando da sabedoria, proibimo-nos
o acesso à libertação: eis aqui um outro caso de adversidade
maior. Duvidar de si mesmo e das suas capacidades não é obstáculo
menor. É essencial ter confiança nos ensinamentos, pois essa
certeza é a verdadeira fonte da confiança em si e na sua
própria capacidade de despertar.
(7) Dispomos da sétima liberdade logo que, tendo tomado nascimento
numa época onde os ensinamentos existam, é possível
ter acesso a eles através de mestres autênticos, verdadeiros
detentores da tradição.
(8) A oitava liberdade consiste em gozar de todas as suas faculdades.
Se eu fosse mudo, por exemplo, ou cego, ser-me-ia particularmente difícil
de estudar os textos e de os praticar.
A via espiritual não é nenhum caso fechado àqueles
e àquelas a quem falta um ou várias destas liberdades. Que
eles saibam entretanto que a encontrarão cheia de obstáculos.
Para qualificar uma existência humana de preciosa, é necessário,
para além destas liberdades, reconhecer aí as dez condições
favoráveis à prática, das quais as cinco primeiras
dizendo respeito ao indivíduo e as cinco últimas ao mundo
exterior.
As cinco condições pessoais são as seguintes:
(1) Ter nascido na esfera dos seres humanos.
(2) Ter acesso aos ensinamentos.
(3) Sentir interesse pelos ensinamentos.
(4) Não praticar actos negativos, que têm por efeito a
deterioração do elo que se tem
com o mestre e os ensinamentos.
(5) Gozar de todas as faculdades mentais e sensoriais.
As cinco condições relacionadas com o mundo exterior são
as seguintes:
(6) Um buda veio a este mundo.
(7) Ele ensinou.
(8) Os seus ensinamentos foram preservados.
(9) Existem um ou vários detentores destes ensinamentos que
são capazes de transmiti-los.
(10) Um deles tem a compaixão de nos guiar na via.
Quem reúne estas oito liberdades e estas dez condições
goza de um precioso corpo humano, cujo carácter essencial está
amplamente ilustrado nas biografias de grandes sábios. Assim, quando
o futuro buda Shakyamouni não era mais que o príncipe Siddhartha,
ele gozava de tudo o que se podia desejar no que se refere a prazeres,
fortuna e poder. O seu pai era um excelente monarca, sempre atento a cuidar
do sofrimento dos seus súbditos: ele dava remédios aos doentes,
dava de comer a quem tinha fome, uma casa para aqueles que não tinham
tecto. E, todavia, apesar da sua bondosa generosidade, o rei não
conseguiu pôr um termo definitivo aos diversos sofrimentos do seu
povo. Ele agia um pouco como um analgésico, acalmando momentaneamente
a dor sem extirpar a causa profunda.
Antes de entrar na vida espiritual, Siddhartha tinha desejado ser rei
e príncipe no decorrer de numerosas existências, mas ele não
tinha conseguido trazer aos seres mais do que uma ajuda relativa. Tendo
desta vez reunido todas as condições necessárias,
ele tomou a decisão de descobrir a última panaceia, o verdadeiro
sentido do real, que libertaria todos os seres dos seus sofrimentos. Com
a idade de trinta anos, então, Siddhartha compreendeu que o poder
de ajudar os outros tinha bem mais valor que todas as riquezas do mundo.
Renunciando ao trono, ele consagrou o resto da sua vida à procura
espiritual, com a única intenção de trazer ajuda a
todos os seres de maneira definitiva.
Se a nossa vida tiver estas dezoito qualidades, nós poderemos,
também, atingir o despertar. Verifiquemos com regularidade que não
está nenhuma qualidade em falta, e, se for caso disso, esforcemo-nos
por juntá-las de novo. Se as tivermos todas, apreciemos a nossa
situação dando-lhe o justo valor; ela é verdadeiramente
inestimável! Porque é demasiadamente raro dispor de todas
estas liberdades e ter acesso aos ensinamentos. Isto não é
um efeito do acaso, mas antes de ligações positivas e de
imensos méritos que acumulámos no passado.
De todas as condições porém, o essencial é
manter o elo com o mestre espiritual. Especialmente na prática do
yoga do mestre, pois o mestre é por sua vez o vector de transmissão
e o ponto de referência absoluto em termos de sabedoria e realização.
No absoluto, ensina Sua Santidade Khyentsé Rinpoché,
o mestre espiritual é um com a verdadeira natureza do espírito,
a essência dos budas. Mas é graças às profundas
instruções do mestre exterior que podemos aceder à
realização do mestre interior, o puro despertar da budeidade.
Na expressão «yoga do mestre», «mestre»
traduz o sânscrito guru, em tibetano lama, literalmente «supremo»,
e «yoga», em tibetano naldjor, onde djor significa «apresentar»,
«reunir», e nal, «estado natural»: o guru yoga
é portanto isso que nos inicia no nosso estado natural. Se os diferentes
yogas do corpo levam o corpo ao seu bem-estar fundamental, o yoga do mestre
tem duas finalidades: inspirar ao discípulo uma compreensão
perfeitamente clara da visão dos verdadeiros sábios do passado
dando-lhe o poder de realizar, tal como todos os sábios que o precederam,
o seu potencial de despertar.
A visualização
Até aqui, nós meditávamos sob o nosso aspecto
vulgar, e de ser desperto que se encontrava em cima de nós ou à
nossa frente. Porém, agora que estamos purificados pela prática
de Vajrasattva, estamos habilitados a visualizar-nos sob o aspecto de um
ser de sabedoria.
Para guardar um licor extraordinário, não é preciso
um recipiente extraordinário? Nós transformamo-nos portanto
em uma das formas femininas de budas, em Vajrayogini, vermelha como o rubi,
transparente, luminosa e imaterial. O vajra é o diamante da sabedoria
que pode tudo cortar mas que nada o poderá quebrar: assim o conhecimento
adamantino corta todos os conceitos. Yogini é o feminino de yogi:
é mais correcto representar a sabedoria sob um aspecto feminino.
No yoga do mestre, Vajrayogini forma o receptáculo, o aspecto feminino,
o receptivo, de outra maneira dito, o conhecimento imediato da vacuidade.
A seguir, visualizamos o nosso mestre principal - sentiremos a sua
presença - sob o aspecto de Padmasambhava, o qual incarna toda a
compaixão dos seres despertos. A prática tem por objectivo
realizar a união da compaixão e da sabedoria que nos são
inatas. Desprovida da sabedoria, a compaixão incitar-nos-á
talvez a distribuir sem discernimento tudo o que nos for pedido. A inteligência
sem amor não é necessariamente boa, e com frequência
ela é perigosa. Compaixão e sabedoria são comparáveis
às asas de uma ave, sem as quais ela não saberia voar.
Vajrayogini encontra-se de pé sobre um lótus e um sol;
ela esboça um passo de dança tomando apoio sobre um cadáver.
Não que ela espezinhe um ser especial, é o apego ao eu que
ela mantém assim contra o chão: dominando-o, ela liberta-se.
Logo que se consiga libertar da crença no eu, não experimentamos
a sabedoria da mente? Evoluindo livremente neste estado de perfeita intuição,
aprendemos a dançar com a vida, a agir de acordo com a última
sabedoria.
A yogini brande na mão direita um punhal de lâmina curva
em que uma das extremidades forma um gancho. Com a sua arma extremamente
afiada, ela rompe os véus mentais, e o gancho, símbolo da
compaixão, permite-lhe repescar os infelizes que estão mergulhados
no oceano do samsara.
Na mão esquerda ela tem um recipiente craniano transbordante
de ambrósia. Porquê uma taça talhada num crânio
humano? Não que a yogini não possa usar outro recipiente,
mas este objecto sagrado - trata-se de um crânio, símbolo
do fim da crença no eu - faz-lhe falta para nele recolher
o néctar da longa vida, a ambrósia da compaixão, o
princípio do verdadeiro poder.
Cada detalhe desta visualização tem a sua importância,
mas se nos for difícil vê-los, chegará sentirmo-nos
como a yogini da sabedoria e não mais como um ser vulgar.
Pura luz, o buda Padmasambhava aparece então. Nós podemos
vê-lo tão bem no céu à nossa frente como sobre
a nossa cabeça, sentado sobre uma flor de lótus coberto dum
sol e duma lua. Da sua mão direita, ele mostra-nos um vajra de cinco
pontas, emblema das cinco vias e das cinco sabedorias; sobre a sua mão
direita repousa um recipiente contendo o néctar da imortalidade.
Na curva interior do seu cotovelo esquerdo, ele guarda um khatvanga, tridente
cuja forqueta está encimada por três crânios humanos.
As três pontas representam a vitória sobre os três venenos;
as três cabeças simbolizam os três corpos, bem como
o conhecimento dos três tempos. Cada detalhe das suas vestes e ornamentos
de Guru Rinpoché têm um sentido simbólico preciso.
Porquê Padmasambhava, a quem os Tibetanos chamam de Guru Rinpoché,
«Precioso Mestre», é o personagem central na prática
do yoga do mestre? As linhagens dos nossos mestres têm todas um elo
íntimo com este grande sábio, cujo nome significa «Aquele
que nasceu do lótus», em tibetano Pema djoungne.
A convite do rei Trisong Detsen, Guru Rinpoché trouxe o Dharma
ao Tibete no oitavo século. Entretanto, ele não se limitou
a ser para nós um personagem histórico fora do comum. Como
o buda Shakyamuni estava prestes a entrar no parinirvana - a paragem definitiva
de todo o sofrimento - numa aldeia perto de Koushinagara, na fronteira
da Índia e do Nepal actuais, os seus discípulos sentiam um
tal desespero que, para lhes dar coragem, ele lhes prometeu voltar sob
a aparência de um grande mestre tântrico e de lhes transmitir
todos os ensinamentos secretos que ele não havia ainda divulgado.
«Padmasambhava e eu não seremos dois, mas um», profetizou
ele.
Para citar o nosso mestre Dilgo Khyentsé Rinpoché:
Meditar no mestre principal percebendo claramente que ele não
é outro
senão Padmasambhava, é como uma água muito pura
que se despeja num
vaso de ouro: imediatamente ela toma a sua cor. Semelhante meditação
tem a virtude de multiplicar as bênçãos e o poder
dos bons votos, pois a
compaixão e as actividades de Guru Rinpoché são
especialmente
eficazes nesta era de particular decadência
e, por assim dizer, mais
rápidas que as bênçãos
de todos os outros budas.
A oração em sete versos e o mantra de Padmasambhava
A recitação da Oração em sete versos e do
mantra do Mestre de Diamante forma o cerne do yoga do mestre.
A Oração em sete versos, ou Sete Versos de Diamante,
revela profundezas sempre mais subtis e maravilhosas do seu sentido verdadeiro
à medida que, recitando-a. avançamos na prática deste
yoga.
Aqui está o texto:
Hung. Na fronteira noroeste do país de Uddiyana,
No coração de um lótus cheio de pólen
Vós atingistes a maravilhosa realização suprema.
Venerado sob o nome de Nascido-do-Lótus,
Rodeado por muitas Dakinis.
Possa eu também seguir-vos até ao despertar.
Venha, eu vos suplico, abençoar-me!
Guru Padma Siddhi Hung.
Estes sete versos contêm todos os elementos necessários
ao estudo, à prática e à oração. Não
somente eles relatam a vida de Guru Rinpoché, como mostram todos
os yogas, abordam todos os aspectos da filosofia budista e indicam cada
uma das etapas da via.
Na origem, esta oração era uma invocação
à qual Padmasambhava respondia aparecendo a noroeste do reino de
Uddiyana, o qual designa o actual vale de Swat no Pakistão. Este
ser extraordinário brotou do coração de Amitabha,
o buda da Infinita Luz, sob o aspecto da sílaba encarnada Hrih que
se transformou num rapaz sentado sobre o gineceu dum lótus, bem
no meio do lago Dhanakosha. Imediatamente, o rei de Uddiyana, Indrabodhi,
recolheu-o pa o adoptar, e a fama do príncipe expandiu-se de imediato
por todo o lado na região. Ora, renunciando definitivamente ao reinado,
o príncipe Nascido-do-Lótus escolheu praticar todos os ensinamentos
espirituais e adquiriu inconcebíveis poderes sobrenaturais.
A oração em sete versos tem numerosos níveis de
significados que se reportam aos diferentes níveis de prática.
De acordo com a interpretação exterior, o primeiro verso,
Na fronteira noroeste do país de Uddiyana, indica o lugar de nascimento
de Padmasambhava. O segundo, No coração de um lótus
cheio de pólen, recorda o seu nascimento miraculoso (14). Em seguida
dirigimo-nos a ele: Vós atingistes a maravilhosa realização
suprema. Venerado sob o nome de Nascido-do-Lótus, Rodeado por muitas
Dakinis (vossos discípulos). Possa eu também seguir-vos até
ao despertar (para trazer imensos benefícios a todos os seres).
Vinde, eu vos suplico, abençoar-me! O cerne do mantra de Padmasambhava,
Guru Padma Siddhi Hung, conclui estes sete versos.
Esta estância eleva-se espontaneamente no espírito de
numerosos mestre em muitas circunstâncias críticas. Padmasambhava
foi assim invocado pelos habitantes de um país assolado pela fome;
ele manifestou-se aí para pôr fim à calamidade. Uma
outra vez, na célebre universidade indiana de Nalanda, esta oração
foi revelada em sonhos a eruditos budistas que deviam ter no dia seguinte
um debate com filósofos particularmente hábeis em defender
teses erradas. Os panditas cantaram-na em coro e Padmasambhava apareceu.
Ele dissipou as visões erradas e transmitiu profundos ensinamentos,
insuflando assim um impulso considerável ao budismo. Invocado por
esta oração, Padmasambhava revelou-se com frequência
aos lamas do Tibete no decurso de visões que lhes guiaram na via
libertando-os de toda a espécie de obstáculos.
O Pema thangyg, biografia deste grande sábio traduzida em francês
sob o título de Le Dict de Padma (tradução de C.G.Toussaint,
edições de Deux Océans, Paris, 1994), relata estes
feitos e relata as numerosas previsões feitas por Padmasambhava
no decorrer dos séculos sétimo e oitavo e que, até
hoje, foram sempre provadas correctas. Guru Rinpoche predisse, por exemplo,
as doenças específicas de cada século, a emoção
perturbadora e os bloqueios subtis que seriam a causa disso, bem como dos
remédios apropriados,
Por todas estas razões, Padmasambhava é considerado como
o Buda, o Desperto, e o vector principal dos ensinamentos fielmente transmitidos
e praticados desde a sua época até aos nossos dias.
O mantra do Mestre de Diamante (Vajra Guru)
Vós vimos, no fim da oração em sete versos, que
dizemos Guru Padma Siddhi Hung, a quintessência do mantra de Guru
Rinpoché. O mantra completo, que se compõe de doze sílabas,
pronuncia-se em sânscrito Om Ah Hung Vajra Guru Padma Siddhi Hung
e, em tibetano, Om Ah Hung Benzar Guru Pema Siddhi Hung.
Este mantra é ele também uma porta de acesso aos tão
numerosos níveis da prática. Podemos compará-lo a
um código que encerra as doze secções do ensinamento
e os diferentes graus da profundidade do seu estudo filosófico.
Ele contém aliás todas as informações das quais
quem medita precisa e que, mesmo lá estando desde sempre, lhe são
invisíveis enquanto ele tiver os olhos nas trevas. A prática
assídua deste mantra revela toda a ciência que está
escondida nas profundezas do nosso espírito.
Om, Ah e Hung representam o corpo, a palavra e o espírito despertos,
Vajra Guru o mestre adamantino, Padma significa lótus, símbolo
da pureza, Siddhi realizações, e Hung é a sílaba
do cerne. O mantra significa resumidamente: «Possamos nós
receber a transmissão completa das bênçãos,
das realizações e dos poderes do corpo, da palavra e da mente
do Mestre de Diamante».
Eis uma primeira abordagem. Encontraremos mais amplas explicações
no fim do capítulo seguinte, nos extractos dum cântico que
Guru Rinpoché ofereceu a Yeshé Tsogyal.
Recitar ou cantar o mantra de Padmasambhava abre o coração
às dificuldades de outrem, tornando-se assim uma fonte de cura tanto
para nós mesmos como para os outros. Como ela nos permite invocar
os seres despertos, e em particular Guru Rinpoché, cada uma dessas
doze sílabas tem o poder de apaziguar doenças e obstáculos.
O seu conjunto sagrado previne as perturbações dos elementos
(fogo, água, vento, terra e espaço) e gravando-as sobre as
rochas pode-se proteger uma região inteira. É por isso que
as rochas das alturas tibetanas estão frequentemente ornamentadas
com este mantra. Impresso sobre papel ou tecido, desde que ele flutue ao
vento, ele tem a virtude de expandir a sua mensagem de paz e as suas bênçãos
a todos os seres. Uma vez consagrado, pintado ou escrito, este mantra tem
o poder de libertar e de curar aqueles que o vêem; cantado, ele apazigua
e liberta aqueles que o ouvem.
Os mestres que, à força de milhões e milhões
de recitações, actualizaram o poder deste mantra, podem,
soprando sobre a água e por um processo de ordem alquímica,
transferir a esta água o poder de curar certas doenças tidas
como incuráveis. Os mestres deste mantra têm o poder de suprimir
os eventuais efeitos tóxicos da alimentação regenerando-a.
Podemos também pôr este mantra em lugares marcados por uma
abundância de acontecimentos tristes. O mantra de Guru Rinpoché
é notoriamente muito benéfico em famílias afligidas
pelo suicídio, pois um tal acontecimento cria uma energia negativa
que, se ela não for neutralizada, descarrega-se por vezes sobre
um outro membro da família. Sob a forma escrita ou recitada, o mantra
em doze sílabas de Padmasambhava dissipa esta energia, assim como
todos os obstáculos recorrentes em geral. Ele tem ainda a virtude
de prevenir as epidemias e as doenças contagiosas.
Nos nosso dias, os sábios tibetanos que detêm a tradição
possuem ainda capacidades pouco vulgares que lhes permitem ajudar os seres
num grande número de planos. No domínio medicinal por exemplo,
o meu pai, Kangyour Rinpoché, era afamado pelo seu domínio
deste mantra. No decurso de certas visões, Guru Rinpoché
revelou-lhe exactamente quais as substâncias que deveriam ser usadas
para curar tal e tal doença. Este mantra, que age sobre planos muito
subtis, dá acesso a coisas espantosas: até recentemente,
a sua prática permitiu a certos astrólogos-médicos
tibetanos aumentar consideravelmente as suas faculdades.
Praticar o yoga do mestre
A chave do yoga do mestre é o respeito, a confiança e
a devoção para com um mestre espiritual autêntico.
No seu ensinamento sobre esta prática, Dilgo Khyentsé Rinpoché
disse:
Sem esta devoção, um praticante é como um cego.
Um cego está
obrigado a entregar-se a quem quer que seja que possa guiá-lo
sem
risco de cair num precipício ou de ser levado por um rio no
momento
de o atravessar... O mestre dá as instruções essenciais
que nos dão
a visão e nos permitem avançar com toda a segurança
na via. Mas
existem duas espécies de mestres espirituais; alguns estão
qualificados,
outros não. Pôr a sua confiança num falso mestre,
ávido e pérfido,
é conduzir-se como um cego que se abandona a um guia incompetente.
O mestre espiritual autêntico indica-nos sem o mais pequeno erro
aquilo
que deve ser evitado e o que deve ser procurado.
Para começar a prática do yoga do mestre, podem referir
às duas linhas de visualização e às quatro
linhas da oração do texto dos Preliminares do Novo Tesouro:
Eu tomo a forma de Vajrayogini e, no céu à minha frente,
Meu mestre principal aparece sob a forma de Padmasambhava.
Encarnação de todos os budas do passado, do presente
e do futuro,
Supremo mestre de raiz, eu dirijo a vós a minha oração;
Nesta vida, nas vidas futuras, nos estados do bardo,
que a vossa compaixão nos tome!
Nos três tempos, sem interrupção, distribua continuamente
as vossas bênçãos!
A segunda linha refere-se ao mestre principal, aquele com o qual nos
sentimos estreitamente ligados, que tem a capacidade de nos guiar no caminho,
e que o vemos aqui sob a forma de Padmasambhava. O mestre é a união
de todos os despertos: ele representa os budas do passado, ele é
a manifestação dos budas do presente e a fonte dos budas
do futuro. Invocamo-lo conjuntamente para nosso bem e para o bem de todos
os seres. Com a quinta linha, pedimos-lhe para nos guiar nesta vida, nas
vidas futuras, e nos estados intermediários entre uma morte e um
renascimento.
A confiança no mestre deverá ser tal como a descreveu
Dilgo Khyentsé Rinpoché:
Quaisquer que sejam as circunstâncias difíceis que surjam
no nosso
caminho, doença, pobreza, obstáculos, influências
negativas ou outras,
não percamos a coragem: não pensemos que, apesar de toda
a prática
realizada, a compaixão e as bênçãos do mestre
tardam a manifestar-se.
Nós devíamos simplesmente reconhecer que isso é
o fruto das nossas
próprias acções negativas que amadurecem assim.
Está já aí uma benção
do mestre: poder enfrentar e purificar desde agora o resultado destes
actos negativos.
Quando a doença e outras dificuldades nos batem à porta,
desejemos que através do nosso próprio sofrimento terminem
os sofrimentos de todos os seres. Tendo formulado um tal voto, misturem
indissoluvelmente o sofrimento e a dor na mente de sabedoria do mestre
e fiquem lá. A confiança é a melhor maneira de ultrapassar
os obstáculos e de estar seguro de não se desviar da via
correcta. Guru Rinpoché não disse: «Estou presente
à frente de cada pessoa que tiver confiança em mim»?
Uma devoção constante faz com que, em face dum objecto
ou duma situação atraente, em vez de se encontrar agrilhoado
pelo apego, o coração seja espontaneamente invadido pelo
pensamento do mestre. Todas as paixões e desejos vulgares desaparecem.
Um dia virá em que, sejam quais forem as nossas actividades, o pensamento
do mestre estará continuamente presente no nosso coração.
Experimentando manter uma visualização clara, impregnem-se
da presença do mestre cantando a oração em sete versos
três, sete ou vinte e uma vezes ou mais. Recitem em seguida o mantra
de doze sílabas do Mestre de Diamante tantas vezes quanto possível.
Na etapa seguinte, como indica o texto:
Iniciações e bênçãos de corpo, palavra
e mente são perfeitamente obtidas.
As bênçãos do mestre penetram em vós sob
a forma de infinitos raios luminosos; brancos para o corpo, vermelhos para
a palavra e azuis para o espírito. Estas faíscas luminosas
dissolvem-se sucessivamente nos vossos três centros (da testa, da
garganta e do coração) e purificam o vosso corpo, a vossa
palavra e o espírito. A seguir, eles penetram simultaneamente nos
vossos três centros para transmitir as bênçãos,
as realizações e os poderes (ou iniciações)
do corpo, da palavra e do espírito dos seres despertos.
O mestre funde-se em luz e dissolve-se em mim, inseparável da
minha natureza.
Guru Rinpoche dissolve-se agora em luz e funde-se em vós; a
sua forma torna-se indissociável da vossa.
Contemplemos o verdadeiro rosto do mestre absoluto: vacuidade-despertar.
Fiquem no estado natural e absoluto do espírito, sem nenhuma
separação entre o Buda, o despertar e vós próprios.
Eis a realização da verdadeira natureza do mestre: um estado
de despertar consciente, perfeitamente livre, que é assim desde
os tempos sem começo.
Este estado de despertar absoluto está em cada um de nós,
mesmo se alguns tiverem dificuldade de o admitir. Reconhecê-lo, é
reconhecer o verdadeiro mestre. O mestre principal é o suporte que
contribui para a nossa realização deste estado interior do
qual nunca estivemos separados. À semelhança do ouro purificado
e do mineral aurífero, um ser desperto e um ser vulgar diferem unicamente
pelo facto de um estar purificado, e o outro ainda não. O primeiro
não tem mais valor que o segundo; o processo de purificação
é o revelador dum potencial que, no absoluto, é idêntico.
O mestre exterior e a via permitem assim realizar a verdadeira sabedoria
interior.
Ao sair da meditação, concluam a sessão dedicando
os méritos ao despertar de todos os seres. Podem dizer por exemplo
a curta estrofe da dedicatória dos Preliminares do Novo Tesouro:
Meu corpo, meus bens, meus méritos e a sua própria raiz,
Eu ofereço-os agora sem pena a todos os seres, meus pais:
Que o bem dos seres, através de grandes vagas de bênçãos,
Se realize sem obstáculo.
Digo Khyentsé Rinpoché dá algumas indicações
precisas sobre a maneira de dedicar os méritos da prática:
Selem a prática pondo-lhe o selo das orações de
dedicatória. Como todas as
outras práticas, o yoga do mestre deve inscrever-se na moldura
dos «três métodos supremos».
A preparação da prática
fundamenta-se sobre a perspectiva muito vasta do espírito
de despertar, que reforça a prática
e a impregna dos meios hábeis. «Meios hábeis»
significa que
nós praticamos não somente com vista ao nosso bem estar pessoal,
mas também do de todos os seres sem excepção.
No decurso da prática propriamente dita,
fiquem atentos mas livres de toda
a concepção: corpo, palavra e espírito
associar-se-ão de maneira harmoniosa
numa concentração perfeita. Não
serve de nada murmurar mantras e orações
enquanto o espírito voa, seguindo outros
pensamentos, outros assuntos.
Coloquem o vosso corpo numa postura equilibrada,
recitem os mantras
e as orações de maneira clara e distinta,
e deixem o vosso coração encher-se
de devoção e de compaixão. Concentrem-se
sobre todos os aspectos e detalhes
da prática. Ela tornar-se-á assim invulnerável
aos obstáculos, às condições
adversas e aos desvios.
Para concluir, selem a prática com a dedicatória.
O melhor meio de assegurar
que os méritos não se esgotam jamais, e
que ao contrário eles aumentem sem
cessar, é de seguir o exemplo dos budas do passado.
Dediquem ao despertar de
todos o mérito resultante da vossa prática
espiritual, desejando que eles atinjam
a perfeição do mestre.
Associar estes três métodos junta num só
ponto todos os aspectos cruciais do mahayana.
É interessante conhecer o poder do mantra que está no
coração do yoga do mestre. O diálogo que se segue
é uma tradução livre de certas passagens de um texto
escrito no século oitavo e referem a uma conversa entre Padmasambhava
e a dakini Yeshe Tsogyal, a sua principal discípula tibetana.
Depois de ter apresentado ao Guru Rinpoché as oferendas exteriores,
interiores e secretas, Yeshe Tsogyal fez-lhe a seguinte pergunta;
«Mestre Venerado, para o meu bem e para o bem de todos os seres
que hão-de vir, queira tomar o meu pedido em consideração.
O facto de vos ter encontrado é para mim e para aqueles do meu tempo
uma virtude inestimável. No tempo que há-de vir, será
extremamente difícil de se encontrar em presença de um ser
tal como vós.
«Pessoalmente, recebi ensinamentos, conselhos e práticas
imensas, e não me sobra a mais pequena dúvida. Em contrapartida,
vós havíeis previsto consideráveis dificuldades para
os homens e as mulheres dos tempos futuros: o seu espírito será
turbulento, eles terão dificuldade de encontrar e de compreender
os ensinamentos autênticos. A abundância de visões deturpadas
e de ensinamentos falaciosos porão o seu espírito nas trevas,
e ser-lhes-á difícil discernir o verdadeiro do falso. Aliás,
eles recuarão perante os ensinamentos verdadeiros. Quando chegarem
as épocas de desastres, de guerras, de fomes e de doenças,
os seres serão varridos de um para o outro continente, sempre em
fuga, como as formigas escorraçadas do seu formigueiro.
«Vós haveis dado numerosas indicações sobre
a maneira de afastar as calamidades e as épocas difíceis;
entretanto, quando estes tempos forem chegados, muitos desejarão
voltar-se para o dharma mas não terão tempo disponível.
Quanto àqueles que experimentarem um interesse real pela prática,
eles terão dificuldades em aprofundá-la.
«A discórdia reinará entre os seres; a sua alimentação
e os seus objectos habituais não terão mais nada de natural
e serão contaminados. Para travar estas condições
nefastas, vós havíeis já evocado o poder dos mantras,
e em particular o do Mestre de Diamante. Tenha a bondade de nos explicar
este mantra e a maneira de o utilizar.»
O grande sábio respondeu:
«É verdade, nesses tempos abater-se-ão desastres
e calamidades. Com a intenção nos seres que nessa altura
viverão, escondi tesouros em diferentes pontos do planeta - dentro
de rochas, nas montanhas, nos rios, e também no coração
dos seres predestinados. Estes tesouros serão extremamente benéficos.
«Quando ao mantra do Mestre de Diamante, ele é aquele
de todos os seres despertos também. Nos tempos difíceis poderemos
cantá-lo em lugares sagrados ou solitários, no cimo das montanhas,
ao pé dos rios ou dos oceanos, ou ainda em lugares onde ocorreram
catástrofes.
«Que um grande praticante, um monge autêntico ou qualquer
um com uma imensa compaixão então recitar esse mantra cem
vezes, mil vezes, dez mil vezes ou mais, e o resultado será inconcebível.
O som do mantra poderá parar ou afastar toda a espécie de
calamidades tais como doenças, fomes ou guerras, bem como as consequências
dos desequilíbrios da natureza: más colheitas, chuvas demasiado
abundantes, inundações ou secas. Este mantra contém
imensos poderes que permitem equilibrar os diferentes elementos nos planos
exterior, interior e secreto.
«Toda aquele que praticar este mantra reencontrará o perfeitamente
desperto, o Buda, nesta vida, nas vidas futuras ou no estado intermediário,
em sonho ou na realidade.
«Aquele ou aquela que, com uma compaixão autêntica,
recitar este mantra regularmente, pelo menos cem vezes por dia, não
conhecerá nenhuma dificuldade material, e verá os seus desejos
concretizados graças ao poder desta recitação.
«Aquele ou aquela que o recitar mil vezes por dia receberá
bênçãos inconcebíveis e a capacidade de socorrer
os outros de forma inimaginável.
«O praticante que o recitar cem mil vezes ou dez vezes cem mil
de maneira contínua, quer dizer todos os dias e sem interrupção,
poderá pacificar tudo o que é negativo, e adquirirá
para si e para outrem o poder de aumentar vida e sabedoria. Ele poderá
dominar os fenómenos e subjugar as forças negativas. O seu
poder de ajudar os outros aumentará imensamente.
«Toda a pessoa que fizer trinta ou setenta vezes cem mil recitações
de forma contínua tornar-se-á inseparável dos budas
do passado, do presente e do futuro e receberá conselhos e indicações
directamente dos seres despertos. Todos os seus desejos realizar-se-ão.
No máximo, ela obterá, no espaço de uma só
vida o corpo de arco-íris. A um nível médio, ela atingirá
a liberdade última no momento da morte. No mínimo, durante
o bardo, eu, Padmasambhava, virei em pessoa para a guiar na via do despertar
total.»
De seguida, Yeshe Tsogyal disse:
«Mestre, esta é uma prática verdadeiramente extraordinária!
Tenha a bondade de nos explicar o sentido deste mantra, de tal forma que
os seres humanos que hão-de vir possam melhor compreendê-lo.»
Padmasambhava deu-lhe então uma resposta extremamente detalhada,
da qual aqui estão alguns extractos:
«Este mantra é a essência de todos os mantras. Através
dele, podemos explicar todas as ciências e todos os ensinamentos
que existem. Escuta bem, toma nota por escrito daquilo que eu vou dizer
e explica a seguir àqueles que terão necessidade:
«Om corresponde à natureza do corpo, Ah à natureza
da palavra, Hung à natureza do espírito de todos os budas.
As cinco palavras Vajra guru Padma Siddhi Hung referem-se aos cinco aspectos
ou «famílias» de budas: a família do Diamante
(Vajra), da Jóia (Ratna), do Lótus (Padma), do Duplo-vajra
(Karma) e da Roda (Buda). Eles representam as cinco sabedorias: a sabedoria
parecida-ao-espelho, a sabedoria da equanimidade, a sabedoria de discernir,
a sabedoria que tudo realiza e a sabedoria do espaço absoluto.
« No que se refere aos efeitos deste mantra:
«As três sílabas Om Ah Hung têm o poder de
purificar os seres dos três principais venenos que são a aversão,
o apego e a ignorância. As sílabas Vajra Guru Padma Siddhi
Hung agem sobre as emoções de maneira mais específica;
Vajra pacifica a emoção grosseira da aversão e os
obscurecimentos que ela provoca; Guru dissipa os véus grosseiros
e subtis do orgulho; Padma apaga os véus e as emoções
provenientes do apego; Siddhi aplica-se à inveja e ao desejo; Hung
purifica a ignorância e os véus subtis que ela traz consigo.
«Este mantra não trata somente as desordens emocionais
devidas aos cinco venenos, mas trata também os seus efeitos sobre
o corpo físico: os desequilíbrios que perturbam os órgãos
maiores.
«Podemos igualmente dar uma tradução literal deste
mantra:
Om Ah Hung: o corpo, a palavra e o espírito
Vajra: o diamante indestrutível
Guru: supremo, o mestre
Padma: o lótus
Siddhi: as realizações
Hung: receber, juntar, perfazer.
«Ele possui um grande poder de protecção contra
as forças exteriores susceptíveis de perturbar o espírito
e os órgãos vitais. Ele pode fazer recuar e suprimir toda
a forma de violência se alguém de uma imensa compaixão
o praticar com assiduidade, ou se numerosas pessoas o recitarem em uníssono:
Om Ah Hung afasta os conflitos armados devidos aos três venenos de
maneira geral. De maneira mais específica e em relação
aos cinco venenos, Vajra afasta as guerras que causam a cólera;
Guru aquelas nascidas do orgulho; Padma aquelas devidas ao apego egoísta;
Siddhi aquelas que inspiram inveja e desejo; e Hung aquelas provocadas
por uma influência exterior súbita, fonte de desequilíbrios
(por exemplo, a influência que leva os dirigentes das nações
a agir de maneira irresponsável).»
De acordo com Padmasambhava, cantar nem que seja só uma vez
o mantra tem um efeito subtil de tal forma vasto que, se este último
tivesse uma forma, o universo inteiro não seria capaz de o conter.
Escrevê-lo de maneira a que seja visto e recitá-lo de forma
que os seres o oiçam ou dele se lembrem são fontes de virtudes
imensas. Cantá-lo nos locais dum acidente, dum desastre natural
ou de qualquer tipo de dificuldades, previne que isso se repita. Queremos
ajudar uma pessoa ou um animal no momento da morte? Podemos pôr sobre
o corpo do moribundo o mantra escrito em tinta dourada sobre papel azul
e consagrado. A sua influência benéfica exercer-se-á
no estado intermédio e conduzirá este ser para uma existência
melhor. Cantar este mantra num carro ou em qualquer outro tipo de transporte
é uma protecção eficaz contra os acidentes.
Podemos igualmente servir dele para revitalizar o alimento; no momento
do pequeno-almoço por exemplo, recitamo-lo várias vezes,
e depois sopramos sobre os alimentos. Ou então, recitando, concentramo-nos
para juntar mentalmente a essência dos elementos que dissolvemos
a seguir no alimento. Quem assim fizer verá a sua energia regenerada,
reequilibrada e transformada.
Este mesmo método poder servir para abençoar os medicamentos
que tomamos ou que damos, a fim de aumentar os efeitos terapêuticos.
De acordo com a medicina tibetana, é possível restabelecer
o equilíbrio dos agregados do corpo físico utilizando os
princípios activos de plantas e minerais específicos. Mas
para reequilibrar o plano de energia muito subtil que circula no nosso
corpo, e em particular o plano mental, isto não chega; é
necessário recorrer à concentração e à
recitação de certos mantras. É por isso que a medicina
tibetana não se contenta em preparar os medicamentos de forma mecânica.
O preparador concentra-se com muito amor e compaixão, e serve-se
de mantras para consagrar os medicamentos enquanto os fabrica; o médico
faz o mesmo antes de os administrar. Efeitos subtis conjugam-se então
aos efeitos químicos, equilibrando as energias subtis e contribuindo
para o sucesso do tratamento. Também vocês podem consagrar
com este mantra os medicamentos que tomam.
Em resumo, o objectivo da prática deste mantra não é
unicamente fazer obter àquele que o recita bênçãos
e poderes, mas de lhe permitir ajudar-se e a ajudar os outros de maneiras
diversas. Na vida quotidiana, criem o hábito de cantar o mantra
ao acordar e ao adormecer, e antes de começarem um projecto, um
trabalho ou uma viagem. Felizes, cantem-no para partilhar a vossa felicidade;
tristes, cantem-no para apaziguar o sofrimento do universo. As virtudes
assim engendradas derramar-se-ão sobre vós e sobre todos
os seres, como um rio sem fim.
Existe um ensinamento sobre a forma de se ajudar a si mesmo e de assistir
a outrem no momento da morte; a prática da transferência da
consciência (consciência, princípio consciente e continuum
de consciência são, neste contexto, sinónimos - ver
nota 8), ou powa, largamente difundido na Índia antiga, e até
aos nossos dias no Tibete.
Viver o mais possível para praticar e progredir na via espiritual
é precioso. Entretanto, a meditação sobre a impermanência
de todas as coisas nos fazem realizar até que ponto é imprevisível
o momento da partida. Para essa viagem difícil, é melhor
dispor de uma técnica eficaz: a transferência da consciência.
Este método pode ser aplicado em muitos casos.
O caso muito pouco utilizado do «powa trong djouk»
Nós vimos que a existência de um indivíduo está
em estreita relação com a duração da sua vida,
da sua energia vital e do seu princípio vital. Antigamente, acontecida
que certos yogis, cuja duração da vida não se esgotava
mas cujo corpo estava gasto, transferiam a sua consciência para um
corpo jovem de alguém abatido por uma morte prematura. Para vos
dar alguns exemplos, na época em que Guru Rinpoché chegou
ao Tibet, a Índia contava numerosos sábios e panditas, entre
os quais um professor de filosofia, muito belo e duma grande erudição,
chamado Kamalashila. Kamalashila treinava-se na prática do powa
transferindo a sua consciência para o corpo de um pombo: ele atirava-se
assim no espaço, abandonando o seu corpo humano na margem de um
rio. Um dia, um outro adepto, que era velho, disforme e pouco instruído,
para aproveitar-se da fama de Kamalashila, tomou conta do corpo inanimado
deste deixando no seu lugar o seu próprio invólucro pouco
reluzente. O brilhante erudito tendo obtido a realização
da vida imortal, por isso, é sob esta forma de um velho de rosto
moreno que ele se manifesta por sua vez, sob o nome de Padampa Sangye no
Tibete e de Bodhidharma na China.
Esta técnica ainda se praticava no tempo de Milarepa. O filho
de Marpa perdeu a vida num acidente equestre. Não encontrando um
corpo humano disponível, ele transferiu-se para o corpo dum pombo
e voou em direcção ao sul. Chegado à Índia,
ele pôde finalmente integrar o corpo de um bebé que acabava
de morrer. Qual não foi a estupefacção dos pais de
ver o seu filho voltar à vida falando uma língua que lhes
era desconhecida!
Por cause deste género de incidentes, a técnica só
foi pouco utilizada e de seguida interdita, mas a linhagem existe ainda
nos nossos dias; meu pai, Kangyour Rinpoché, dela era detentor.
Aliás, ele serviu-se dela um dia para ajudar os nómadas em
aflição a levar para o campo o cadáver de um enorme
iaque que tinha morrido numa pradaria longínqua.
Meu pai era um mestre de yoga de grande renome. Ele me dizia que para
provar o seu grau de mestria, o praticante do powa devida poder transferir
a consciência dum corvo e, uma vez que a ave tombasse morta, trazê-la
à vida. Só quando ele conseguisse esse feito é que
era julgado capaz de realizar a transferência para qualquer um outro.
Segundo caso: o powa por si
Num dos casos em que o powa é mais frequentemente utilizado,
é quando o próprio está perto da morte. Transfere-se
nesse instante a sua própria consciência numa terra pura (13),
evitando assim o bardo para encontrar uma paz e um bem-estar propícios
à realização das diferentes etapas da via.
Esta aplicação do powa apoia-se sobre quatro pontos principais:
(1) O destino do princípio consciente: aqui o termo da viagem
é um estado de despertar e não de confusão. Trata-se
de fundir o seu espírito no espírito dos seres totalmente
despertos.
(2) A via de passagem: o caminho que leva a este destino encontra-se
no corpo, é o canal subtil mediano.
(3) O ponto de partida do princípio consciente: o centro do
corpo, o chakra do coração.
(4) A maneira de viajar: logo que viajamos, tomamos diversos meios
de transporte (comboio, carro, avião...). Para a transferência
do princípio consciente, servimo-nos aqui da sílaba-semente
A.
Visualizamos então o princípio consciente sob a forma
desta sílaba no centro do coração e, pronunciando
o som P’et, ejectamo-lo através do canal central. O princípio
consciente funde-se agora no espírito dos budas dos três tempos
e aí permanece. Para praticar o powa, é indispensável
ter uma motivação correcta; o melhor suporte de esta técnica
é a compaixão, uma imensa compaixão impregnada de
uma generosidade que se propaga pelo pensamento e se exprime fisicamente.
Quanto ao destino, o praticante visualiza sobre a sua cabeça
Eupamé, o buda da Infinita Luz (Amitâbha em sânscrito),
de cor vermelha e emitindo raios de luz. Se queremos fazer esta prática
com uma grande precisão, podemos visualizar o buda Eupamé
muito claramente e em detalhe. Se preferirmos uma maneira mais simples,
visualizamos, sempre em cima da cabeça, a natureza de todos os seres
despertos sob a forma de uma simples esfera de luz.
A via de passagem, o canal central, começa na abertura craniana
e desce até ao centro secreto; ele é muito direito. Nesta
prática, limitamos a visualização à secção
que vai do crânio ao chakra do coração, onde o canal
está bloqueado por um disco de luz sobre o qual se encontra a sílaba
A. Esta sílaba representa a natureza intangível do princípio
consciente. Visualizamos A e, pronunciando a sílaba P’et, consideramos
que a sílaba A atravessa, tal como uma estrela .....150, o canal
central e a abertura craniana para se unir ao coração do
buda Eupamé. Enquanto se trata de um treino, o praticante deixa
repousar alguns instantes a sílaba, depois fá-la voltar a
descer até ao seu coração. De novo, ele ejecta a sílaba
A no coração do buda Eupamé pronunciando P’et, depois
ela a faz descer novamente.
Este exercício pode ser repetido muitas vezes. Ele comporta
todavia um risco: ele pode ser perigoso para o equilíbrio dos elementos
do corpo. Aquele ou aquela que se treinar no powa não deve sobretudo
ejectar a sílaba A e ficar lá. Isto poderia alterar a duração
da sua vida. Até que se esteja seguro de que a sua vida chegou ao
seu termo. É essencial paliar este inconveniente da seguinte maneira:
no fim de cada sessão de treino, visualizamos que o buda Eupamé
sobre nós de transforma em buda Tsépamé, o buda da
Infinita Vida (Amitayus em sânscrito), receptáculo da essência
de todos os elementos. Esta essência luminosa desde através
da abertura craniana sob a forma de um néctar que enche sucessivamente
os chakras do corpo, da palavra e do espírito. Visualizamos a seguir
no chakra do coração uma bola de luz, um pouco como uma casca
de ovo, formada por dois hemisférios em posição horizontal,
um representando a lua, o outro o sol. A bola está inicialmente
ligeiramente entreaberta; o néctar carregado de bênçãos
é aí vertido e enche-la. Os dois hemisférios fecham-se
agora hermeticamente, preservando a energia vital que mais nada, nem forças
negativas nem acidentes, podem afectar.
Uma vez a bola fechada, podemos ainda reforçar a prática
recitando o mantra do buda da Infinita Vida: Om Amarani Jivantayé
Svâhâ. Existem numerosos mantras de longa vida; este é
uma forma condensada. Podemos também recitar o mantra do buda da
Infinita Luz: Om Amidéva Hrîh.
Na eventualidade de dizer P’et e o mantra de longa vida parecer muito
longo, é ainda possível pronunciar simplesmente a sílaba
A para transferir a consciência, e de dizer Hrîh em lugar do
mantra da longa vida.
Para terminar este exercício, visualizamos que selamos a abertura
craniana com dois vajras cruzados, símbolo da indestructibilidade.
Esta prática torna firme a energia vital e prolonga a duração
da vida.
Concluímos a sessão dedicando, como sempre, os méritos
da prática à felicidade relativa e última de todos
os seres.
Se desejarmos poder servir do powa no momento da morte, a fim de ajudar-se
a si mesmo ou para assistir a outrem, é necessário fazê-lo
de forma intensiva durante um certo tempo.
É preciso sempre estar atento a um ponto essencial. Antes de
efectuar a transferência definitiva, é indispensável
estar absolutamente seguro que este é realmente o momento oportuno,
pois encurtar uma vida, mesmo aquela que nos pertence a nós, é
um acto pesado de consequências negativas. Enquanto estivermos vivos,
devemos tudo fazer para evoluir e para ajudar a outrem. Não aplicaremos
portanto o powa ‘’definitivo’’
senão quando tivermos a certeza absoluta de que os elementos
e os agregados do corpo não podem mais permanecer em coesão.
Somente então será correcto ejectar sem retorno o princípio
consciente para fundi-lo definitivamente no coração do buda
Eupamé.
Neste caso, alguns dirão, para que serve conhecer este método
desde agora? Esta técnica exige que se prepare seriamente para ser
capaz de o aplicar no momento pretendido. É só com a condição
de ter assimilado perfeitamente os detalhes da transferência que
podemos, no momento crítico, manter o espírito livre de toda
a confusão.
O powa por outrem
A prática do powa encontra uma terceira aplicação
no caso em que desejamos ajudar um ser que acaba de morrer. A faculdade
de prestar este serviço aos outros exige de se ser treinado previamente
sob o controle directo de um mestre qualificado e de ter obtido os sinais
de realização.
No momento em que cessa a respiração externa, o coração
para de bater; todavia, o calor e a respiração internas subsistem
ainda durante alguns instantes, e mesmo algumas horas. Este é o
momento crucial para assistir o ser que acaba de morrer. Visualizamos o
seu canal central (entre o coração e a abertura craniana)
com, ao nível do coração, o seu princípio consciente
sob a forma da sílaba A e, sobre o crânio, o buda da Infinita
Luz. Pronunciando P’et, transfere-se o seu princípio consciente
no espírito de compaixão e despertar infinitos do buda, onde
ele encontra paz e liberdade.
Enquanto que no Oriente esta prática é respeitada, no
Ocidente pode parecer mal pronunciar a sílaba P’et em voz
alta. Neste caso, dizemo-la mentalmente. Com a intenção de
libertar de todo o sofrimento a consciência da pessoa defunta, transferimos
a sílaba A para o buda Eupamé, que representa a essência
dos seres despertos. Ficamos a seguir no estado natural do espírito,
livre de toda a conceptualização. Dedicamos os méritos
da prática ao despertar de todos os seres e durante quarenta e nove
dias que se seguem ao falecimento rezamos tanto quanto possível
pelo defunto.
Se ainda não adquirimos a capacidade de transferir o princípio
consciente desta maneira, podemos ao menos ajudar os mortos recitando os
diferentes mantras referidos neste livro e as orações específicas
ligadas ao powa e ao bardo. Desejaremos que todos os seres desenvolvam
a faculdade de se transferir segundo a via profunda, que todos os nossos
amigos e os membros da nossa família encontrem a paz no instante
de morrer, sem ter que atravessar a experiência difícil durante
o processo da morte e os períodos que se seguem. Antes de rezar,
consagramos alguns instantes a engendrar uma intenção positiva.
A seguir, recitamos as orações e praticamos a troca. Para
concluir, oferecemos os resultados da prática àquele ou àquela
que estamos a assistir, depois a todos os seres sem excepção.
Durante quarenta e nove dias tentamos prosseguir esta prática.
De facto, após a morte, um ser guarda geralmente a memória
do seu corpo e do seu meio habitual durante sete semanas. A força
do hábito incita a recusar seu novo estado e a perda do seu corpo,
mesmo totalmente gasto. É por isso que é importante assistir
durante todo este período uma pessoa que acaba de morrer.
Aliás. Podemos experimentar ajudar assim todos os seres,
sejam eles humanos ou não. A forma que eles adoptam não é
mais do que um invólucro; mesmo que eles sejam consideravelmente
diferentes de nos pela aparência, isso não quer dizer que
a sua consciência seja diferente da nossa. Vemos a ilustração
desta verdade à nossa volta. Certos homens acumularam uma tal energia
kármica positiva que eles herdam uma vida esplêndida, onde
eles podem deixar correr os dias na ociosidade. Outros, pelo contrário,
vivem apinhados em casebres e, apesar de trabalharem arduamente, têm
muita dificuldade de sobrevivência. Podemos afirmar, à simples
vista do seu ambiente exterior, que estas pessoas, portanto todos os seres
humanos, são fundamentalmente diferentes? Aquele que reside num
palácio não é por isso um homem superior; aquele que
vive numa cabana não é por isso um homem inferior. Ao fim
de vidas sucessivas de um ser, as condições exteriores variam,
mas o princípio consciente, esse viajante, continua. A consciência
que acumulou uma energia kármica predominantemente negativa pode
ser empurrado para revestir a forma de uma serpente, dum insecto... Isto
não significa que a seguir, sob a influência do seu crédito
de energia positiva, ela não possa voltar a tomar nascimento num
mundo de existência mais feliz.
A utilidade da prática e da oração não
pára ao fim dos quarenta e nove dias, mesmo se o princípio
consciente do defunto talvez tenha tomado uma nova forma de existência.
A intenção benfazeja e a energia da oração
continuarão a ser-lhe muito benéficas e ajuda-lo-ão
a encontrar uma vida feliz. Se ele já obteve um renascimento favorável,
elas evitarão que ele aí encontre obstáculos. Continuar
durante muito tempo a rezar por aqueles que já morreram não
pode senão fazer-lhes bem; é também uma ajuda eficaz
para os seus próximos.
A assistência aos doentes
Muito embora esta técnica seja principalmente empregue
para ajudar os moribundos e os mortos, ela pode contribuir para o restabelecimento
de uma pessoa que sofre. Neste caso, em vez de Eupamé, o buda da
Infinita Luz, visualizamos Tsepamé, o buda da Infinita Vida, sobre
a cabeça do doente. Associamos a esta visualização
a recitação de mantras, tal como Om Amarani Jivantayé
Svâhâ que é o mantra que melhor se adapta a este género
de circunstâncias.
No decurso desta recitação , consideramos que o
buda Tsepamé emite em todas as direcções do espaço
raios de sabedoria, as bênçãos dos seres despertos
e a essência dos cinco elementos. Transformados em néctar,
eles propagam-se pelo corpo do doente, penetrando e enchendo cada um dos
seus centros a fim de regenerar a sua energia vital.
Visualizamos ao nível do seu coração uma
esfera entreaberta formada de dois hemisférios luminosos, o sol
e a lua. O néctar derrama-se e, quando a bola estiver perfeitamente
cheia, ela fecha-se. Esta prática contribui para aumentar a energia
vital. Recitamos igualmente as orações para prolongar a duração
da vida do doente e a proteger.
Noutros casos, o doente queixa-se de uma sensação
de fadiga crónica apesar de um bom equilíbrio fisiológico.
Esta impressão, apesar de frequentes tratamentos não resultarem,
provem de uma fuga de energia. A meditação sobre o buda Tsépamé
revela-se então ser muito útil.
Podemos perguntar se houve um começo do ciclo ilusório
de existências, e, em caso afirmativo, como seria ele produzido,
porque alguns cometeram actos negativos, etc. As respostas variam consoante
as teorias, Os ensinamentos budistas explicam que a consciência fundamental
se reveste de múltiplos aspectos, dos quais a ignorância co-emergente
e a sabedoria co-emergente. A ignorância co-emergente está
na origem de todos os erros dos seres sobre a natureza e a realidade das
coisas. É ela que, no exemplo clássico, faz tomar uma ponta
de uma corda por uma serpente, inspirando um medo que dura tanto quanto
a ignorância. A sabedoria co-emergente, que permite reconhecer que
aí não há mais do que uma ponta duma corda, abole
naturalmente o medo da serpente. Graças à prática,
a sabedoria co-emergente toma o lugar da ignorância co-emergente,
até a dissipar completamente: atinge-se o despertar total, de onde
não se volta a cair mais no ciclo da ilusão. É como
com certas doenças, não podemos voltar a ter uma recaída
uma vez que elas tenham sido correctamente tratadas.
A meditação é uma via que permite o despertar
da sabedoria co-emergente. Quando meditamos, conseguimos ficar durante
um breve instante no estado de simplicidade natural do espírito,
sem mudança, sem alteração e sem fabricação
mental. Depois, diferentes influências intervêm. Elas variam
consoante a situação. A saúde, o estado de fadiga
ou de fome... Apercebemo-nos que em certos momentos o espírito pode
desencadear-se como uma tempestade, com pensamentos desenfreados que emergem
e partem em todos os sentidos. Noutros momentos, estamos mergulhados num
estado de torpor e de inconsciência: ele está obscurecido
e não deixa filtrar nenhuma claridade, como um céu coberto.
Para alguns, este estado é agradável, outros acham mais refrescante
os pensamentos efervescentes,
Pouco importa, o essencial é estar consciente daquilo
que se passa dentro do espírito e de experimentar ficar no «aqui
e agora», sem pensamentos relacionados com o passado ou ....158.....
o futuro. Ficar no estado é excelente para a saúde física
e mental. Tomar consciência daquilo que se passa no espírito
leva-o ao estado de tranquilidade. Durante alguns instantes sentimos um
estado de claridade. Não se trata da claridade exterior. É
um sol interior que invade o espírito durante uma fracção
de segundo, um estado de certeza, expressão da natureza fundamental
do despertar que cada um possui. Treinando ficar neste estado, apagamos
progressivamente os véus mentais que escondem esta natureza.
A tradição da Grande Perfeição (14)
fala da base, da via e do fruto: a natureaza fundamental do despertar é
a base; o treino que permite reconhecer este despertar é a via;
o fruto é a tomada de consciência da luz interior, Na realidade,
o fruto é inseparável da base, a natureza fundamental. Reconhecê-lo,
nem que seja por alguns instantes, é um sinal de que o despertar
está ao alcance da mão.
Mesmo se não pudermos obter o pleno despertar desde o
presente, esta experiência será preciosa no momento da morte.
O corpo tomou forma graças à união da essência
do pai e da mãe e ao suporte dos cinco elementos. No momento da
morte, estes elementos reabsorvem-se uns dentro dos outros. Logo que a
consciência se dissolve finalmente no espaço, cada ser .....
a experiência da clara luz, natureza intrínseca do espírito.
Não a reconhecemos nesta vida porque não nos damos a oportunidade
de fazer essa experiência. Entretanto esta luz está lá
sempre. No momento da morte, todos os seres sem excepção
fazem experiência disso. Infelizmente, se eles não a conheceram
durante o decurso da sua vida, eles terão medo, medo daquilo que
na realidade é a sua própria luz. É por isso que,
a fim de evitar este medo que impede de atingir o despertar no momento
da morte, é desde agora muito útil de praticar a tomar consciência
da luz interior.
Logo que morremos, guardamos um corpo mental parecido àquele
que temos em sonhos. No estado onírico, passeamo-nos por todo o
lado, dedicando-nos a múltiplas actividades. No estado intermediário,
apesar de termos abandonado o corpo físico, guardamos a memória
e é por isso que nos apercebemos dentro de um corpo mental. Atravessamos
assim diferentes experiências de estados alucinatórios que
podem ser muito aflitivos. Na realidade, estamos apenas apanhados pela
.... dos seus próprios pensamentos por não termos reconhecido
a luz intrínseca.
Um treinamento regular é necessário no decorrer
da vida presente para chegar a reconhecer a clara luz no momento da morte.
É para este fim que tende a meditação. Quando nos
sentamos por alguns instantes e quando nos esforçamos de estar aqui
e agora, sem pensamentos relacionados com o passado ou o futuro, constatamos
quase de imediato que as cadeias de pensamentos começam a desfilar.
Para acabar, o corpo está aqui e o espírito algures. Vendo
bem, reconhecemos pensamentos positivos ou negativos, e outros que não
são nem bons nem maus. Alguns ensinamentos recomendam parar os pensamentos
negativos. Isto é seguramente útil. Mas o que é capital,
é dar-se conta que estamos em vias de deixar ir pela aparição
gradual dos pensamentos.
Observemos agora aquele que observa. Quem é este observador?
Na realidade, ele não existe nem observador nem observado. Se, de
súbito, desviarmos a atenção sobre quem é o
observador, atingimos um estado de claridade próximo da sabedoria
intrínseca. Ficamos alguns instantes no estado de tranquilidade;
de novo, um movimento se creia e os pensamentos manifestam-se,
Meditar desta maneira revela três aspectos do espírito:
uma tranquilidade vazia de pensamentos, um movimento de pensamentos e um
estado fugaz de claridade interior revelado pela procura do observador,
Na realidade, estes três aspectos não estão separados,
eles fazem parte do mesmo fluxo.
Pensam talvez: «Para que serve ficar sentado assim, não
é perda de tempo?» Creio que não. Na via, acontece
que as nossas emoções nos levam ao ponto perder todo o controle
de nós mesmos. Nós perdemos a cabeça, e isso pode
conduzir-nos ao hospital psiquiátrico. Em contrapartida, se adquirirmos
o hábito de observar o estado do nosso espírito, aquilo que
aí se manifesta e como nos deixamos distrair, os pensamentos emergem
cada vez mais raramente; do coração do estado da consciência
desperta, atingimos a sabedoria.
Tudo isto demora o seu tempo. Para se libertar dos hábitos
de percepção que nos reduzem à escravatura, cada um
poderá adoptar, entre todas as práticas propostas, os exercícios
que convêm à sua situação (recitação
de mantras, visualização de luzes, de cores...). Veremos
a utilidade disso nesta vida, no momento em que deveremos deixar esta vida
e na seguinte,
De facto, no momento da morte e no estado intermediário,
atravessamos diversas experiências. As luzes, os sons e as manifestações
que nos apercebemos serão então susceptíveis de fazer
perder o controle de si mesmo. Se temos o hábito desde agora na
experiência da realidade intrínseca vivida em meditação
o espaço de um brilho, no bardo ultrapassará este pânico
e reconheceremos a consciência desperta do espírito.
É desde o presente que é preciso obter a mestria
que permite controlar o espírito nos estados que seguem a morte
e precedem uma nova existência. A mestria do espírito dá
a liberdade de escolher o tipo de vida que desejamos levar.
NOTAS
(1) - O triplo cesto contem os textos relativos às três
matérias, ou práticas, de despertar: o vinaya ensina a disciplina;
os sutras, o recolhimento meditativo; e o abhidharma, o conhecimento.
(2) «O véu cognitivo designa o fraccionamento do conceito
em três polos (sujeito, objecto e acção); o véu
emocional designa a avareza e os outros conceitos (assim formados)»
Asanga, Anuttara-tantra-shastra (rGyud bla ma).
(3) Kangyour Rinpoché (1895-1975), pai do autor. Um dos maiores
yogis e eruditos budistas deste século, encarnação
de Namkhai Nyingpo (discípulo próximo de Padmasambhava),
descobridor de tesouros espirituais; um dos primeiros instigadores do ensino
do budismo tibetano aos Ocidentais, entre os quais teve numerosos discípulos.
Seu mestre, Dédroung Rinpoché (que foi também o mestre
de Dudjom Rinpoché) era discípulo de Jamyang Khyentsé
Wangpo e detentor da sua tradição ecuménica. Como
seu mestre, Kangyour Rincpoché foi o chefe espiritual do mosteiro
de Riwotché no Tibet, onde diferentes tradições eram
praticadas conjuntamente.
Dudjom Rinpoché (1904-1987), encarnação de Padmasambhava,
descobridor de tesouros, chefe supremo da escola Nyingma di budismo tibetano,
grande erudito e escritor. Entre as suas obras mais importante figura a
História da tradição antiga. Um dos primeiros grandes
mestres tibetanos a propagar os ensinamentos no Ocidente.
Dilgo Khyentsé Rinpoché (1910-1991), encarnação
de Jamyang Khyentsé Wangpo, era um dos maiores mestres e eruditos
deste século; descobridor de tesouros espirituais e detentor de
todas as linhagens do budismo tibetano. Depois de ter passado mais de vinte
anos da sua vida em retiro solitário, ............incansavelmente
através do mundo inteiro uma enorme actividade de preservação
e de transmissão de ensinamentos. Sua Santidade o XIV Dalai Lama
considera-lo como um dos seus mestres principais.
(4) Os cinco venenos: a ignorância, o apego egoísta, a
aversão, a inveja e o orgulho envenenam toda a acção
cometida sob a sua influência. A expressão «emoções
perturbadoras» é sinónima; é a tradução
do termo tibetano nyon mongs, em sânscrito klesha, assim definido
no grande dicionário Tsig mdzod chen mo: «Fenómeno
mental que, provocando dificuldades afligem o corpo e o espírito,
bem como actos nocivos, torna a corrente mental extremamente tormentosa».
Apesar do usao da palavra «emoção» seja passível
de crítica, porque aqui ele não corresponde sempre perfeitamente
àquilo que está abrangido pelo termo nyon mongs, esta expressão
está largamente difundida nas traduções francesas
de ensinamentos budistas. Por razões de coerência com os textos
mais conhecidos, ela é também utilizada aqui, partindo do
princípio que o contexto é suficientemente explícito
para não gerar confusão.
(5) Man significa «espírito», e tra «que protege
ou liberta»: aquilo que liberta o espírito da confusão
e de todos os obscurecimentos. Os mantras são também os ensinamentos
que o Oriente preservou no coração dos seres despertos a
fim de que eles sejam transmitidos para libertar o espírito. Um
mantra é como um código que contém o conjunto dos
ensinamentos que respondem às necessidades e ao nível de
cada discípulo.
(6) Os termos «fenómenos» e «percepções?
Traduzem ambos a expressão tibetana snang ba. De acordo com a filosofia
budista, é tudo o que aparece, tanto no mundo exterior de acordo
com a realidade convencional como no nosso espírito indirectamente
pelas percepções e projecções mentais.
(7) Yogis que atingiram a realização suprema. A tradição
conta a história de vinte e quatro yogis da Índia antiga
que, fazendo das suas actividades quotidianas o suporte da sua prática,
chegaram ao despertar levando uma vida aparentemente vulgar. Alguns deles
estão na origem de grandes linhagens espirituais ainda vivas hoje.
(8) Isto pode fazer pensar que o budismo admite a existência
de uma alma ou de uma entidade que transmigra. Tal não é
o caso. Aquilo que reencontramos numa e noutra vida, não é
uma entidade única, imutável, que passará de um corpo
a outro, mas uma corrente mental, um continuum de consciência parecida
àquela que atravessa os momentos da vida presente, um fluxo ilusório
de tendências habituais e de impressões subtis ao qual o espírito
ignorante acrescenta o conceito de entidade ou de ego. Notemos que «consciência»
tem numerosos sentidos e níveis diferentes que serão evocados
no seguimento do texto. Não confundir as oito consciências
(ver nota 12), a consciência fundamental (skt. Alaya-vijñana),
a consciência desperta (tib. Rig pa), e o princípio consciente
(continuum de consciência ou consciência) que se transfere
de uma para a outra vida.
(9) Samsara: palavra sânscrita que designa o ciclo de existências
onde reinam o sofrimento e a frustração engendradas pela
ignorância e as emoções perturbadoras nascidas da ignorância.
(10) Equanimidade: tradução da expressão tibetana
btang snyoms, assim definida por Patrul Rinpoché no Le Chemin de
la Grande Perfection (Ed. Padmakara, 1987, p. 204): «Equanimidade
significa uma parte renunciar (btang) a sentir ódio pelos seus inimigos
e um apego apaixonado pelos seus amigos; por outro lado, ter uma atitude
igual (snyoms) por todos os seres».
(11) Padmasambhava, o mestre «Nascido-do-Lótus»
(também chamado Padmakara), considerado como o segundo Buda. De
acordo com aquilo que foi dito pelo Buda Shakyamuni, Padmasambhava surgiu
do coração do buda Amitabha sob a forma da sílaba
Hrih e manifestou-se sob a aparência de uma criança de oito
anos sobre um lótus no meio do lago Dhanakosha no país de
Uddiyana. Por convite do rei Thrisong Detsen e do abade Shantarakshita,
ele veio ao Tibete no oitavo século, pacificou as forças
hostis ao Dharma, construiu o mosteiro de Samye e ensinou os nove veículos,
e compreendeu os tantras que o buda Shakyamuni não havia revelado
senão rara e somente ao nível vulgar.
(12) As oito consciências são: (1) a consciência
primária ou fundamental, amorfa, obscurecida pela ignorância,
mas sem ser polarizada para o bem ou o mal; (2 a 6) as consciências
respectivamente associadas a cada um dos cinco órgãos dos
sentidos; (7) a consciência mental que elabora as percepções
sensoriais; e (8) o intelecto imprime emoções que obscurecem.
(13) Estes são os cinco aspectos sob os quais a sabedoria se
manifesta quando se realiza o estado de buda: a sabedoria parecida-ao-espelho,
a sabedoria da equanimidade, a sabedoria que discerne, a sabedoria que
tudo realiza e a sabedoria do espaço absoluto.
(14) De acordo com os ensinamentos, existem quatro tipos de nascimentos;
por intermédio de uma matriz, de um ovo, da humidade ou de uma geração
miraculosa.
(15) Terra pura: lugar manifestado por um buda ou um grande bodhisattva,
graças às virtudes da sua realização. Os seres
podem progredir em direcção ao despertar sem jamais recair
nos mundos inferiores. Há uma infinidade fora do mundo terrestre,
considerado como a terra pura do buda Shakyamuni.
(16) A Grande Perfeição: o nono e o último veículo.
Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenómenos e da presença
natural das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição
para sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos
nesta perfeição primordial. A linhagem de transmissão
da Grande Perfeição chega ao buda primordial Samanthabhadra,
continua com Vajrasattva, Garap Dorje, Manjushrimitra, Shri Singha e Padmasambhava,
que introduzir este ensinamento no Tibete no século oitavo. Desde
esta época e até aos nossos dias, a transmissão da
Grande Perfeição perpetuou-se através de uma linhagem
ininterrupta de mestres, e por intermédio de tesouros espirituais
escondidos por Padmasambhava e redescobertos em diferentes épocas
da história por mestres altamente realizados.