'Ofensiva do MST será estorvo político para Lula'

Para o sóciologo Zander Navarro, movimento pode atrapalhar programa de reforma agrária

 

ROLDÃO ARRUDA

O estilo ofensivo adotado pelo Movimento dos Sem-Terra (MST), e intensificado desde o início do governo de Luiz Inácio da Silva, pode se transformar num estorvo político para o presidente e atrapalhar o programa da reforma agrária. Um dos melhores indicadores de como a polêmica deve se agravar é a nova geração de líderes que está surgindo: ela faz os atuais dirigentes parecerem santos.

Essa é a opinião do sociólogo Zander Navarro, professor do programa de pós-graduação em desenvolvimento rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e estudioso dos movimentos sociais rurais. Na entrevista a seguir ele diz que as posições políticas do MST são infantis e inconseqüentes e que seus dirigentes agem inebriados por uma espécie de "aventureirismo pseudomilitar". O sociólogo também afirma que o MST se transformou numa espécie de organização "paraestatal", considerando que boa parte de seus recursos advém, direta ou indiretamente, dos cofres de instituições públicas.

Navarro, doutorado na Universidade de Sussex, Inglaterra, e pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, é autor do livro Mobilização Sem Emancipação - As Lutas Sociais dos Sem-Terra no Brasil (Civilização Brasileira). Sempre votou no PT e já militou no MST, ajudando até a ocupar propriedades rurais no Rio Grande do Sul, o que o deixa à vontade, costuma dizer, para criticar os métodos e os objetivos da organização.

Estado - O MST intensificou suas atividades nos primeiros meses do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, que sempre se manifestou favorável à reforma agrária. Como vê essa movimentação?

Zander Navarro - Parece incompreensível este posicionamento do MST em relação ao novo governo, do qual faz parte. Mas o MST se move principalmente por uma lógica interna, na qual as ocupações de terra são o seu combustível principal. Sem elas, a organização definha, pois aí recruta novos militantes, passa a exercer influência nos municípios onde controla assentamentos e de onde extrai recursos de todas as ordens, inclusive eleitorais, para se solidificar como uma ativa organização. Dada esta desenvoltura, amplia sua atração sobre os setores radicalizados de classe média, encantados pela 'dinâmica política' dos sem-terra.

Estado - Essa ofensiva pode se tornar um complicador para o governo?

Navarro - Sim. Este inconseqüente posicionamento reduz claramente as chances de qualquer programa de reforma agrária e, sem dúvida, será um estorvo político para o governo Lula. Infelizmente, o MST encarna à perfeição o infantilismo político de certos setores de nossa sociedade.

Estado - O senhor não acha que com essa atitude o MST mostra que é um movimento popular independente, não cooptável por partidos nem pelo governo?

Navarro - O MST não é um movimento social, no sentido sociológico, e, menos ainda, popular. É apenas uma organização, e pequena, do sistema político. Somente quem desconhece o mundo rural, onde prevalecem o conservadorismo e a tradição, é que pode julgar que a radicalidade discursiva dos dirigentes do MST tenha alguma atratividade política. As famílias rurais mais pobres aderem à organização por várias razões, entre as quais o fato, pouco conhecido, de constituírem uma ampla rede de parentesco que sustenta socialmente boa parte das iniciativas do MST. Mas há outras razões, como a legitimação simbólica recebida de setores católicos, o cálculo feito pelas famílias sem-terra entre o constrangimento transgressor da maioria das ações e seu potencial benefício final e, é claro, a necessidade e a pobreza em que vivem imersas. Trata-se, portanto, de uma organização política. Quanto à autonomia em relação aos partidos, o PT particularmente, este é outro mito cuidadosamente cultivado, pois o MST é, de fato, fundador do partido em dezenas de municípios e seus militantes principais são participantes ativos da vida partidária.

Estado - Como organização política, de acordo com sua afirmação, o MST deve ter objetivos que vão além da distribuição de terras.

Navarro - O MST se anima por inúmeros outros imperativos que são próprios de organizações formais, inclusive manter centenas de militantes-funcionários. Por que não se assume como tal? Não é incomum que movimentos sociais se transformem em organizações e se institucionalizem. O MST, contudo, prefere manter o aventureirismo pseudomilitar que inebria seus dirigentes, inclusive porque podem se manter à margem de qualquer responsabilização, especialmente em relação ao uso de fundos públicos.

Estado - Falta transparência à organização?

Navarro - Sem nenhuma dúvida. Ao lado do MST, que se apresenta sem responsáveis específicos, existe a Associação Nacional de Cooperação Agrícola, a Anca, com registro em cartório e obscuros dirigentes, credenciando-se, por exemplo, a receber recursos públicos. Esta é uma outra faceta pueril do MST: não acredita em procedimentos democráticos, não se interessa pela transparência de sua organização e evita a responsabilização de suas ações, mas cobra tudo isto dos demais atores políticos.

Estado - Outro estudioso da questão, o geógrafo Ariovaldo Umbelino de Oliveira, da USP, tem opinião diferente. Em entrevista ao Estado, ele disse que é impossível acertar qualquer trégua com o MST porque não se trata de uma organização com estrutura vertical tradicional, semelhante à dos partidos. Cada grupo regional teria autonomia para decidir suas ações.

Navarro - Não é possível realizar pesquisa social permanecendo apenas nos gabinetes da universidade ou ouvindo os fantasiosos discursos dos dirigentes do MST. A afirmação fere a lógica e é um contra-senso. Será que o ilustre professor imagina que famílias pobres se organizarão disciplinadamente, por um passe de mágica, para realizar uma ocupação de terra? Alguém, treinado e pago, obviamente organizou a ação. Esses são os militantes-funcionários e se submetem rigidamente à direção nacional. As exceções, como a tola ocupação da fazenda de Fernando Henrique, apenas confirmam a norma. Isto se chama apenas a lógica da ação coletiva, e nada mais. Se fosse informado, saberia, por exemplo, que um deputado estadual eleito pelo MST produz automaticamente entre 15 e 20 novos militantes em tempo integral. Estes não obedecerão a nenhum comando?

Estado - No meio acadêmico, onde, como o senhor notou, o MST conta com enorme simpatia, suas posições são freqüentemente combatidas.

Navarro - Como faço críticas ao MST, o primarismo de nossa vida política imediatamente me rotula como sendo "reacionário". Minha história o desmente. Já ocupei propriedades, ao lado dos sem-terra, no Rio Grande do Sul, e já comandei comícios pela reforma agrária, além de outras ações a favor do MST. É exatamente por conhecer 'de dentro' a organização que gradualmente me tornei um de seus críticos.

Estado - Como vê o debate em torno da medida provisória que congela por um prazo de dois anos as vistorias para efeitos da reforma agrária em propriedades ocupadas pelos sem-terra?

Navarro - As medidas provisórias têm sido inteiramente deturpadas, à luz de sua definição original. E têm sido arbitrariamente usadas por todos os presidentes, Lula inclusive. E continuará a ser assim, até que o Congresso modifique as regras de sua utilização. Por este ângulo, o MST tem razão. Mas por que foi implementada a citada MP? Fernando Henrique sequer teria pensado nesta possibilidade se durante seus dois mandatos, especialmente durante o segundo, o MST não se recusasse até mesmo a dialogar com o ministro Raul Jungmann. O MST acaba deslegitiminando o mesmo Estado do qual cobra tudo o mais. O que é outra incoerência.

Estado - Como viu a reforma agrária no governo Fernando Henrique?

Navarro - Estou convicto de que os números da reforma agrária de FHC, que são impressionantes se analisados desapaixonadamente, e tornam notável o trabalho realizado pelo ex-ministro, um irrepreensível democrata, seriam, sem dúvida nenhuma, bem maiores, caso o MST não adotasse atitudes tão primárias em suas estratégias políticas, guiadas pelo leninismo pueril de seu líder principal, João Pedro Stédile.

Estado - A reforma de FHC é criticada por ter havido preocupação apenas com a quantidade de assentamentos, deixando-se de lado a qualidade.

Navarro - A recente e excelente pesquisa sobre as condições dos assentamentos rurais, realizada sob a coordenação do professor Gerd Sparovek, da USP, demonstrou cabalmente a precariedade dos assentamentos rurais. Isto é um fato e, é claro, tais áreas necessitam de intensos esforços públicos para a sua melhoria. Entretanto, é preciso também reconhecer que a nova administração federal não teria a menor possibilidade de realizar um amplo programa de reforma agrária, com metas de desapropriação e de assentamento de famílias rurais na mesma envergadura daquela que foi realizada durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso. E isto é impossível por duas singelas razões: as condições financeiras atuais não o permitiriam, pois seria um programa caríssimo, e também porque a demanda social por terra atualmente é muito menor do que o divulgado pelo MST e outras organizações.

Estado - Como vê a proposta do MST de substituir o atual modelo agrário do País por outro baseado na pequena propriedade familiar?

Navarro - Os dirigentes sequer sabem sobre o que estão falando, inclusive porque sua visão de mundo é fruto de limitadíssima visão dogmática, e me causa espanto que autoridades e estudiosos atribuam importância maior às declarações oficiais do MST, como se relevantes fossem. Deixo apenas uma pergunta ilustrativa: como encarar seriamente uma organização que prega o socialismo e a 'ruptura com o sistema econômico', mas também prega a multiplicação da propriedade familiar e a ampliação da reforma agrária, que na história dos países mais avançados apenas serviram para enraizar definitivamente o próprio capitalismo? Francamente, é um rosário de erros infindáveis. O país deve ter tarefas mais urgentes e importantes a tratar.

Estado - O senhor tem se referido ao MST como uma organização paraestatal. Poderia explicar melhor?

Navarro - Em seus quase vinte anos de existência, o MST foi financiado, na primeira metade do período, quando era principalmente atuante no sul do Brasil, por doações de igrejas, a maioria delas européias, ou organizações ligadas a instituições religiosas. Na segunda metade, contudo, esta origem financeira foi sendo reduzida, porque aquelas fontes passaram, por exemplo, a apoiar projetos nos países do Leste europeu. Neste sentido, nos últimos oito a dez anos, aproximadamente, cada vez mais o MST precisou achar outras fontes de financiamento. Passou a buscar cada vez mais vínculos com instituições e organismos públicos, viabilizando projetos através de outras organizações em sua órbita de influência, em todos os níveis, do governo federal aos municípios onde eventualmente controla assentamentos. Passou também a investir em candidaturas, de vereadores a deputados, visando apropriar-se da maior parte dos recursos gerados por aqueles eleitos. Igualmente vem investindo, fortemente, em 'instituições amigas', como as universidades públicas, onde também angaria recursos. Desta forma, somando todas as suas fontes de arrecadação, é possível afirmar, sem margem de erro, que esta é atualmente uma organização que sobrevive, principalmente, de recursos públicos, sendo assim paraestatal.

Estado - Tem ocorrido renovação das lideranças do MST?

Navarro - Também neste caso existe uma distinção entre a primeira metade e a segunda da história da organização. Na primeira parte, formou-se a 'primeira geração de lideranças', principalmente oriundas dos três estados do Sul do Brasil. Desta geração, poucos ainda têm maior destaque, como Jaime Amorim, em Pernambuco, e Stédile. Outros vêm se mantendo em posições subordinadas e a maioria enraizou-se em diversas regiões, onde atuam em cooperativas ou outras organizações-satélites do MST. Entretanto, a partir dos anos noventa, com a constituição das escolas de formação de lideranças, especialmente a de Veranópolis, no Rio Grande do Sul, aumentou o recrutamento de adolescentes e aos poucos foram sendo formados outros dirigentes. Estes são principalmente originários de outras regiões brasileiras, vêm de famílias pauperizadas e de ambientes rurais mais violentos e com baixo grau de institucionalidade.

Estados - O senhor nota diferenças nos métodos de ação dos novos líderes?

Navarro - São muito mais abertos tanto à excêntrica doutrinação ideológica realizada em tais escolas, a qual forma um discurso único do MST em todo o País, como são também mais abertos às formas de ação mais impensadas. São estes, principalmente, que vêm realizando as ações mais radicais e empurrando o MST em sua direção extremista e típica dos anos recentes. Comparados a esta segunda geração de jovens dirigentes, os antigos líderes são quase santos.


O Estado de São Paulo, 05 de maio de 2003


 

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