Crise de valores leva classe média ao crime

 

Uma crise de valores contribui para a participação de jovens de classe média em quadrilhas do crime organizado e em episódios marcados pela violência Essa é a opinião do antropólogo Gilberto Velho, 54, professor-titular do Museu Nacional (instituição da Universidade Federal do Rio de Janeiro) que, nas últimas três décadas, fez estudos sobre o que chama de camadas médias.

Nas últimas três semanas, três fatos fizeram a classe média carioca se perguntar se o perigo não está mais perto do que imagina. Primeiro, F.B., um garoto de 17 anos, educado em tradicional colégio alemão, foi assassinado com mais cinco jovens. Local: um morro da zona sul, para onde se mudara a fim de traficar drogas.

Depois, Maurício Chaves da Silveira, o Mauricinho Botafogo, 25, foi preso sob acusação de participar de um bando dedicado a assaltos a apartamentos de vários Estados. Filho do dono de uma agência de turismo e cambio do Rio, já cumprira um ano de prisão por assalto em Blumenau (SC).

Por último, o lutador de jiujitsu Ryan Gracie, 25, foi apontado como pivô de uma briga numa casa noturna de classe média-alta. Um homem foi ferido no tórax por uma navalha ou canivete.

Casos como esses criaram a sensação de que nunca o crime foi tão tentador a jovens de classe média. Dados parciais e obtidos com critérios pouco definidos da Justiça sugerem que há mais gente de classe média no crime, mas os levantamentos são inconclusos.

Pesquisa da Secretaria de Estado da Justiça do Rio constata que a pobreza não é fator determinante da criminalidade. Segundo os dados, 81% dos presos de 18 a 24 anos no sistema penitenciário estadual tiveram o sustento de suas casas assegurado pelo pai, a mãe ou ambos. De todo modo, os pobres continuam sendo as maiores vitimas da violência, como afirmou Gilberto Velho na entrevista à Folha

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Folha - Como analisa a pesquisa da Secretaria da Justiça?

Gilberto Velho - Não foi surpresa. A variável pobreza é muito importante na construção do campo propício ao desenvolvimento da criminalidade, mas não a única É um preconceito grande imaginar que a pessoa pobre é uma criminosa em potencial.

Folha - O motivo mais citado por condenados para aderir à marginalidade foi o desejo de consumir. Como o consumismo se manifesta na classe média?

Velho - A questão do consumismo afeta várias classes sociais, mas sobretudo as camadas médias. Os jovens de camadas médias, que motivações eles têm? O estudo é uma motivação absolutamente secundária. O que existe como motivação fundamental é adquirir bens materiais, ter dinheiro, coisas.

Folha - E isso é novidade?

Velho - Você não precisa ser uma pessoa nostálgica de um idílico passado para saber que até um tempo não tão remoto se encontravam na juventude outras preocupações: com participação política, o país, o estudo, a cultura.

Folha - Como o senhor analisa casos como os de Mauricinho Botafogo, da favela Cerro-Corá e da turma de jiujitsu?

Velho - Há uma crise de valores. Esses exemplos mostram o tipo de individualismo que se desenvolveu no Brasil, no capitalismo contemporâneo. Está ligado ao tipo de visão de mundo absolutamente materialista.

Folha - Além do tráfico de drogas, que outros motivos influenciam a adesão de jovens de classe média ao crime?

Velho - Isso que a gente chama de ordem moral, nível de valores, a questão dos símbolos, acho que isso tem sido subestimado na análise da violência. Você não tem no Brasil nenhuma ordem tradicional, baseada, por exemplo, em valores religiosos. Nós não temos isso, só em alguns setores da sociedade, mas não é mais poderoso como foi. Não temos o valor cidadania.

Folha - A desagregação familiar contribui para essa cultura?

Velho - A família vive uma situação de transição. As famílias nucleares - pai, mãe e filhos, basicamente - têm pouca capacidade de socializar seus filhos. Na família extensa ampliada, com avós, tios, sobrinhos, amigos da família, você tinha outras referências e mecanismos que faziam estabelecer certos laços de lealdade. O universo social era mais ampliado. Hoje em dia isso está muito enfraquecido.

Folha - Que tipo de consequência a família menor, mais isolada, provoca?

Velho - A família não cumpre as mesmas funções que cumpria há 50 anos. A escola também não. Você valoriza o sucesso material em todos os meios de comunicação. As pessoas não têm os meios de realização desse sucesso. Que meios vão implementar? Ilícitos. Que valores há para que não façam isso? Até que ponto os valores familiares são fortes para contrabalançar essa mensagem individualista do sucesso?

Folha - Esses valores não levam necessariamente ao crime.

Velho Não precisa ser o crime caracterizado como crime, mas a transgressão, táticas e estratégias menos límpidas, menos honestas. Aquela coisa de querer levar vantagem em tudo, de querer se dar bem, passar a perna.

Folha - Esses valores influenciam as gangues de artes marciais que vão às ruas e às casas noturnas para brigar?

Velho - O esporte é uma coisa importante. A motivação é fundamental, se for associada a determinados valores: de comunidade, grupo, sociabilidade, realização pessoal, aperfeiçoamento.

Folha - Na sua tese de doutorado, em 1975, 0 senhor tratou o consumo de drogas pela classe média como uma questão de liberdade individual. Mantém a ótica, mesmo considerando que o consumidor integra a cadeia do tráfico, marcada por violência, mortes, barra pesada?

Velho - Alguns meninos e meninas que fumam maconha no final de semana, isso não causa dano social maior. O problema é quando isso se articula com uma rede de tráfico.Se você tem outras condições de vida social, outras estruturas funcionando, outras perspectivas, O problema das drogas poderia ser um problema menor. O problema não é a trouxinha de maconha, mas a metralhadora.

Folha - O senhor mantém-se favorável à descriminalização do consumo de drogas?

Velho - A descriminalização é uma coisa fundamental. O uso de drogas do modo atual é expressão de crise de valores, crise moral. Tem a ver com uma estrutura econômica e política que faz com que haja espaço para o tráfico de drogas e de armas.

Folha - O tráfico é a porta de parcela da classe média para entrar na criminalidade. Há passoas que abandonaram as drogas para não participar da cadeia que inclui o tráfico.

Velho - Eu sei de pessoas que deixaram de usar até drogas leves porque não queriam participar dessa máquina criminosa. O problema é que não existe um projeto internacional para combater a máquina de drogas e armas. E é absurdo prender qualquer pessoa que seja porque está fumando maconha.

 


Publicado na Folha de São Paulo,  21 de janeiro de 2000.


     

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