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O Debate sobre o aborto: agenda feminista, mídia e opinião pública

Petchesky (3) lembra que " o que torna o aborto "horrível" ("awful") é a vergonha e a culpa causadas por duas noções ideológicas que toda mulher ainda aprende na sociedade, em alguma medida: 1. a associação do feto com um "bebê" e da mulher que aborta com uma "mãe má"; 2. a assunção de que o sexo por prazer é "errado" (para mulheres) e de que as mulheres que incorrem nesse erro devem pagar um preço. "

Maria José Rosado

I. Movimento feminista e mídia - uma relação complicada

No tratamento com os meios de comunicação, prevaleceu até há pouco tempo no movimento feminista brasileiro, uma relação amadorística. Nenhuma política específica norteou nossa ação junto à mídia. Lidamos com ela, como se estivéssemos dentro de um campo em que as regras do jogo obedecessem à mesma lógica; como se o que consideramos importante em termos de propostas e acentos fosse também o mais interessante a ser comunicado, e da forma como o comunicamos.

Algumas ações exemplares, nos últimos anos, mostram a necessidade e as vantagens de se operar com mais qualidade nesse campo. Assessoradas tecnicamente pos especialistas da área, afinadas com os objetivos do movimento de mulheres, a Comissão de Cidadania e Reprodução, em 1993 e o CFÊMEA, em 1995 e 1996, conseguiram trabalhar a opinião pública nacional, acionando os recursos da mídia, de maneira eficaz. Certamente, outros grupos no Brasil, desenvolveram com êxito, experiências semelhantes a essas. A capacidade dos meios de comunicação de massa de fazer ecoar idéias na sociedade, de criar fatos e levar à sua discussão é uma realidade que não se pode ignorar, quando se quer alcançar mudanças sociais que permitam o exercício pleno da cidadania e se luta por justiça social.

A atuação junto à mídia exige a proposição, em nossas entidades feministas, de uma política dirigida específicamente a esse objetivo. Alguns elementos dessa política podem ser elencados:

. clareza de objetivos

. adequação à forma de operação da mídia

. preparo técnico de nossa parte e assessoria especializada

. desenvolvimento de estratégias de intervenção permanente e

propositiva, além de intervenções pontuais e reativas

. monitoramento dos MCM quanto a questões de nosso interesse

. atenção à forma como o gênero atravessa os temas abordados

O próximo VIII Encontro da Rede Feminista apresenta-se como um momento privilegiado para marcar uma nova relação nossa com a mídia, através do desenvolvimento de um projeto específico de priorização e investimento nessa área.

Esta é, certamente, uma tarefa difícil, não só por causa de nossa defasagem no tratamento com a mídia, mas também devido à forma como as relações de gênero modelam o trabalho dos especialistas na área. Um recente estudo (1) sobre a cobertura da última visita papal aos Estados Unidos (30.09 a 09.10.1995), encomendado e patrocinado por Catholics for a Free Choice, revelava a exclusão da voz das mulheres. De 231 textos dos mais diversos tipos, coletados em 12 dos mais importantes jornais de New York City, Newark e Baltimore, as três cidades em que o Papa esteve, 79% dos especialistas citados eram homens, apesar de haver inúmeras teólogas, ativistas católicas, religiosas que seriam também importante fonte de informação sobre a Igreja. A maioria das citações registradas foi de homens: 64%. As mulheres receberam menos do que 1/3 (31%) de um total de cerca de 800 menções, comentários e citações, da cobertura da viagem do Papa examinada. Esse número cai para 25% se se consideram apenas os jornais de dioceses católicas, indicando um viés de gênero ainda mais acentuado. Não foram tratadas questões eclesiais substantivas, muitas das quais estão diretamente relacionadas com as mulheres, como o futuro do sacerdócio, divórcio e novo casamento, contracepção, reprodução assistida e aborto. Dos repórteres envolvidos com o acontecimento, 79% eram homens. Não sem razão, o relatório dessa pesquisa intitula-se: " Por homens, para homens, sobre homens" . Na apresentação do mesmo, Catholics for a Free Choice observa: "A disparidade de representação, em termos de gênero que esta análise revela, coloca um sério desafio para a mídia: Como realizar uma cobertura equilibrada de uma instituição tão dominada pelos homens como a Igreja Católica. Duas tarefas principais apresentam-se então para a mídia: a primeira é retratar a realidade tal qual é; e a segunda, examiná-la, em suas causas e implicações. Na cobertura do Catolicismo, a mídia não realiza nenhuma destas tarefas. Escritas principalmente por homens, sobre homens, como se fossem para homens, muitas histórias sobre acontecimentos ligados ao Papa e outras questões da Igreja, refletem exclusivamente a hierarquia masculina da mesma. Esta negação das vozes das mulheres será tanto maior quanto mais a agenda dos hierarcas da Igreja continue intocada."

 

II. Aborto: O que temos a dizer á mídia?

Em recente seminário internacional sobre aborto, realizado na Holanda, Janet Hadley propôs um instigante paper intitulado " The 'Awfulisation' of Abortion" (2). Segundo a autora, o acento do discurso feminista sobre as questões de saúde relacionadas com as práticas abortivas das mulheres, conduziu a uma despolitização do discurso sobre o aborto. Bandeiras tradicionais do movimento, como a liberdade reprodutiva ou a igualdade sexual, acabaram esquecidas, na defesa do aborto seguro. A estratégia de vinculação da necessidade do aborto unicamente à questão de saúde das mulheres, conduziu a uma armadilha. Sob vários aspectos, há pouca, ou nenhuma diferença entre a argumentação em defesa da liberdade de escolha e a que condena qualquer ato abortivo. Analisando os dois discursos, Hadley mostra que ambos apresentam o ato abortivo como um mal, como uma escolha privada especialmente difícil, sempre uma tragédia, último recurso de que se valem mulheres desesperadas. Prejudicial à saúde das mulheres, jamais deveria ser utilizado como método contraceptivo. Nos dois casos, o aborto apresenta-se como um problema moral: No discurso pró-vida, é absolutamente inaceitável, contra a natureza materna das mulheres; no discurso favorável à liberdade de escolha, é um mal necessário. De qualquer forma, um mal.

Assim, ironicamente, mesmo aqueles grupos que tentam torná-lo socialmente aceitável, usam muitas vezes, uma linguagem e uma argumentação que acabam por "horrorificar" o aborto. As consequências disso são o reforço do estigma social, da vergonha e do medo associados às práticas abortivas. Torna-se então difícil para as mulheres partilharem suas experiências nesse campo. Embora, em muitos casos, o aborto se apresente para elas como a solução de um problema anterior - uma gravidez impossível de ser levada a termo - devem falar dele como algo trágico e lamentável. Além disso, a associação implícita entre comportamento responsável = contracepção e comportamento irresponsável = aborto, contribui para sustentar o mito da contracepção como algo absolutamente seguro, sem riscos para a saúde das mulheres.

Na mesma linha, Petchesky (3) lembra que " o que torna o aborto "horrível" ("awful") é a vergonha e a culpa causadas por duas noções ideológicas que toda mulher ainda aprende na sociedade, em alguma medida: 1. a associação do feto com um "bebê" e da mulher que aborta com uma "mãe má"; 2. a assunção de que o sexo por prazer é "errado" (para mulheres) e de que as mulheres que incorrem nesse erro devem pagar um preço. "

Voltando à proposta de Hadley, devemos pensar em novas estratégias. É necessário reafirmar a capacidade das mulheres de tomarem decisões ética e moralmente válidas. Sem trivializar o aborto, é preciso voltar a propô-lo como um direito, como elemento inseparável de nossa luta histórica por autonomia e igualdade. Parte essencial da liberdade sexual e reprodutiva das mulheres, o acesso ao aborto é uma questão de respeito à nossa dignidade como seres humanos.

Finalmente, ao tratar o aborto, na agenda política do movimento feminista, devemos nos lembrar, com Sônia Correa, de que " É urgente detectar e (nos) contrapor às formas múltiplas pelas quais a agenda religiosa vem se articulando aos discursos laicos para impedir transformações no que diz respeito ao lugar das mulheres e á desigualdade entre os gêneros ." (4) Nesse sentido, uma atuação planejada e eficaz junto à mídia insere-se em nossa agenda como necessária e urgente; um novo desafio.

Notas

(1) By Men, For Men, About Men. Media Coverage of the Visit of Pope John Paul II to the United States in October 1995. Commissioned by Catholics for a Free Choice; prepared by Douglas Gould & Co. March 4, 1996, mimeo.

(2) Hadley, Janet. The 'Awfulisation' of Abortion. Texto apresentado no Congresso Internacional Abortion Matters, Amsterdam, 27 - 29 de março, 1996, mimeo.

(3) Cit. in: Williams, Camille S. Abortion and the Actualized Self. First Things, November, 1991, p.32.

(4) Enfoque Feminista, dez.95, nº8/9, p.16.

 

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