O Direito à Vida e Os Direitos da Mulher | |
"O
último catecismo da Igreja Católica admite, restritivamente, a pena de
morte em casos excepcionais e a chamada guerra justa, em que se mata e
se morre."
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Maria José Rosado *
Não é o direito à vida, como pode parecer, mas uma inaceitável restrição dos direitos das mulheres, o que realmente está em questão com a proposta de emenda constitucional - PEC 25/95 - que uma comissão especial da Câmara dos Deputados deve votar nos próximos dias. Essa alteração da Constituição tornaria crime a prática de aborto, em toda e qualquer circunstância. Como cidadã brasileira, católica e militante do Grupo Católicas pelo Direito de Decidir, considero que os parlamentares membros dessa comissão devem atentar para dois aspectos cruciais da questão: o primeiro é político e o segundo, ético-religioso. Tal emenda constitucional - que tenta consagrar o conceito de vida a partir do momento da concepção - colocaria o Brasil no caminho do retrocesso, alinhado com o que há de mais retrógrado no mundo de hoje: o fundamentalismo político e religioso. Além disso, é preciso considerar que, diante da comunidade internacional, apareceríamos como um país irresponsável, que hoje assina um documento sem reservas e, no dia seguinte, propõe mudanças constitucionais que estão no sentido exatamente oposto daquilo que ratificou. O governo brasileiro subscreveu o documento da conferência de Beijing, que entre outras coisas, recomenda aos Estados signatários a revisão das leis que punem as mulheres por praticarem abortos ilegais. No terreno ético-religioso, eleva-se praticamente à condição de dogma o argumento de que a prática do aborto, seja em que circunstância for, será sempre um atentado à vida humana. Supostamente, seria esse um pensamento constante e invariável da Igreja Católica como um todo. No entanto, não há no Catolicismo uma tradição clara e contínua de consideração do aborto como homicídio. Por séculos, a interrupção de uma gravidez foi considerada um pecado grave, por considerar-se como expressão de adultério da mulher, ou como sua negativa em cumprir sua tarefa materna. Tampouco há um ensinamento constante na teologia católica a respeito do início da vida humana. Basta lembrar que Santo Tomás de Aquino admitia o aborto até 80 dias após a concepção, argumentando que até esse momento a alma não informava o feto no útero da mulher. Não havendo alma, não havia vida humana. Portanto, podia-se abortar, sem que isso constituisse um homicídio. Só na segunda metade do século passado é que a Igreja Católica adotou a definição da interrupção de uma gravidez como um ato contra a vida, em qualquer circunstância. Há porém, um contínuo na história do pensamento católico em relação à questão em apreço: a dúvida, a discussão, as posições conflitantes e a prática pastoral de compreensão da situação das mulheres que abortam. Mesmo atualmente, existem muitas teólogas e teólogos católicos que justificam, do ponto de vista religioso, a decisão da mulher de interromper uma gravidez. Um jesuita latino-americano, por exemplo, lembra que emanou do Concílio Vaticano II - autoridade máxima da Igreja quando se encontra reunido, acima mesmo do Papa - um documento dizendo que o primeiro bem que a pessoa tem a obrigação moral de buscar é o próprio bem, o bem pessoal. Como no texto conciliar, diz o teólogo, não há uma explicitação da natureza desse bem, pode-se interpretá-lo como bem físico, bem psicológico, moral, econômico, bem da obtenção das aspirações pessoais, em suma, um bem de qualquer espécie, que constitui portanto o primeiro critério para uma decisão no campo moral. Assim, diz o teóologo, atender ao bem pessoal significa que "o casal não deve procriar se se prejudica de alguma forma significativa o bem de um dos cônjuges ou dos dois." Mas não haveria limite para a defesa do seu bem pessoal? Pode-se até interromper uma vida? Outro pensador católico, professor Malherbe, da Bélgica, especialista em questões de ética, recorre a uma proposição clássica da Igreja, que é o recurso ao "mal menor". Quando se tem que escolher, numa situação difícil, opta-se pela alternativa que cause o menor mal. Traduzindo positivamente, ele prefere falar na escolha do melhor caminho. No caso concreto em que uma mulher tenha que escolher entre a sua felicidade e o respeito a uma vida humana potencial, não há nada que nos impeça de pensar que é uma decisão ética e religiosamente aceitável optar pela própria felicidade. O pensador católico referido antes, lembra também que, mesmo cientificamente, há incerteza sobre o início da vida. Há uma concordância em que a vida é um contínuo. Um embrião - ou mesmo um zigoto - tem vida, mas ainda não se constitui numa vida humana, muito menos numa pessoa humana, cuja existência suporia uma individualidade, alguém sujeito de direitos. Uma prova disso é o fato de aproximadamente 75% dos óvulos fecundados (zigotos) serem expelidos do organismo, naturalmente. Seria possível pensar que a natureza desprezasse tantos seres humanos ao eliminar esses zigotos? Estes argumentos do campo da biologia e da genética nos ocorrem apenas para realçar a complexidade da questão e a dificuldade de se definir o conceito de vida humana, que a emenda constitucional sugere colocar com tamanha simplicidade. Finalmente, é necessário lembrar que, na Igreja Católica, as questões de moral sexual nunca foram definidas dogmaticamente e, portanto, não exigem dos fiéis obediência absoluta. É parte da tradição cristã, o recurso à consciência individual como critério último de decisão no campo da moral. Referindo um texto do Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes), diz Múnera, teólogo católico: " A partir deste texto conciliar sabemos que o ser humano não será julgado por Deus em razão do seguimento de leis ou normas de qualquer índole, mas em razão do seguimento de sua consciência." Essa referência à própria consciência para estabelecer a moralidade de um comportamento diante de Deus, é recorrente na Igreja e foi utilizada por ocasião dos conflitos internos provocados pela Humanae Vitae. Foi notável a disparidade de opiniões quando a encíclica de Paulo VI condenou qualquer recurso à anticoncepção, excetuando a chamada via natural. Muitos sacerdotes individualmente e vários episcopados - da Áustria, da Bélgica, da França e de outros países - orientaram seus fiéis no sentido de que se considerassem livres para seguir sua consciência, pois não se tratava de dogma de fé. Curioso que, na Igreja, a defesa da vida como princípio absoluto só funciona para o caso do aborto. O último catecismo da Igreja Católica admite, restritivamente, a pena de morte em casos excepcionais e a chamada guerra justa, em que se mata e se morre. Como católicas, contestamos totalmente os argumentos usados pelos partidários da emenda constitucional. O que defendemos é o direito à saúde, ao bem pessoal e à vida concreta das mulheres e, ao fazê-lo, defendemos também a vida dos homens e dos filhos e filhas dessas mulheres. Ter a legislação aberta não obriga ninguém a interromper uma gravidez, mas permite que as mulheres que considerem necessária tal intervenção possam recorrer por livre escolha a essa prática médica. Permite ainda que a sociedade exija do Estado a manutenção de serviços públicos de qualidade que não ponham em risco a saúde e a vida das mulheres nessa situação. É oportuno recordar que nos países em que a lei possibilita o recurso ao aborto em circunstâncias determinadas, os índices de mortalidade materna diminuiram significativamente. Será esse um dado desprezível, quando se pretende defender a vidas e sabe-se das altíssimas e inaceitáveis taxas de morte materna no Brasil, ocasianadas por abortos realizados clandestinamente? * Maria José Rosado é socióloga; professora universitária e pesquisadora; membro da diretoria do ISER/RJ; membro da Comissão de Cidadania e Reprodução e coordenadora de Católicas pelo Direito de Decidir. |