Os desfios de Beijing ao Vaticano | |
A
pedido de Suzana Maranhão, para Brasil Revolucionário.
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Maria José Rosado Nunes
A Plataforma de Ação
definida ao final da IV Conferência Mundial sobre a Mulher significa um
importante marco na luta das mulheres em direção a relações igualitárias,
justas e prazeirosas para a população feminina e masculina de todo o planeta,
às vésperas do terceiro milênio. No entanto, na Conferência de Beijing,
como anteriormente na do Cairo, a atuação das mulheres encontrou na face
fundamentalista do Catolicismo, um obstáculo à defesa de sua agenda política,
longamente amadurecida, no processo de preparação dessas reuniões. Mais
uma vez ficou claro o fosso que separa as concepções que uma grande maioria
de mulheres tem de si mesmas, de seus direitos e de seus papéis na sociedade,
das concepções veiculadas pelo Vaticano. Saúde sexual e reprodutiva, uma
concepção aberta e crítica da família e a universalidade dos direitos
humanos, incluindo os direitos humanos das mulheres, foram temas contra
os quais investiram os delegados do Vaticano e seus poucos aliados - os
fundamentalistas islâmicos, Malta e alguns países latinoamericanos. Recorrendo
a todos os mecanismos possíveis de pressão política, estas forças aglutinadas
tentaram impedir, em Beijing, que se alcançasse o consenso necessário
à aprovação da Plataforma de Ação, em pontos fundamentais à vida das mulheres.
Não obtiveram êxito, graças à intervenção lúcida e bem articulada do movimento
internacional de mulheres, que chegou à China com uma agenda política
clara, experiência acumulada na condução de negociações em foros internacionais
e uma enorme força argumentativa.
O Vaticano falhou, por exemplo, em sua tentativa de que se mantivesse o recurso à "objeção de consciência", através da qual profissionais da saúde poderiam negar-se a responder às solicitações de interrupção de gravidez, mesmo quando feitas segundo as leis do país. Perdeu também o Vaticano, e outras forças religiosas conservadoras, quando se eliminou do documento final, uma nota de pé de página que condicionava tudo o que se aprovara no capítulo sobre saúde, ao pleno respeito dos valores religiosos e éticos, e aos contextos culturais nacionais, colocando obstáculos à efetivação dos avanços alcançados. A manutenção do conceito de "direitos sexuais", ainda que não se utilize o termo, bem como a afirmação do direito das mulheres de controlarem e decidirem livre e responsavelmente sobre sua sexualidade e sua capacidade reprodutiva significam também uma conquista, frente à posição intransigente da Igreja nessas questões. Finalmente, em relação ao aborto, contrariamente às proposições da delegação da "Santa Sé", foram reafirmados os termos do Cairo, acrescentando-se importante recomendação aos governos para que "considerem a possibilidade de revisar as leis que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que realizaram abortos ilegais" . O Vaticano teve porém papel de destaque no resultado negativo, em relação à aprovação do reconhecimento da existência de mulheres com orientação homossexual e o direito delas de expressarem sua sexualidade, sem sofrer discriminação. Ao final da Conferência, um documento emanado da "Santa Sé" anunciava suas reservas à Plataforma de Ação. Mais uma vez, aparece aí, a condenação de qualquer forma de reconhecimento legal do aborto, assim como da contracepção ou do uso de preservativos, "tanto como medida para planejamento familiar, como em programas de prevenção à AIDS" . Declara também o Vaticano, sua não aceitação de todo o capítulo IV, seção C, sobre saúde, "por dar atenção desproporcional à saúde sexual e reprodutiva" . Manifesta ainda reserva quanto ao direito das mulheres a controlarem sua sexualidade (!), "porque poderia entender-se como aprovação a relações sexuais fora do matrimônio heterossexual." Finalmente, demonstra preocupação com a seção sobre os direitos humanos, pelo "excessivo individualismo na forma de tratar tais direitos. " Depreende-se daí que, extamente os pontos considerados por mulheres do mundo todo, presentes em Huairou e Beijing, como conquistas importantes e avanços do documento são aqueles sobre os quais a Igreja Católica manifesta sua reserva ou condenção. É compreensível assim, que no contexto da IV Conferência, um grupo de importantes redes de organizações de mulheres, ao nível internacional, tenha questionado o atual estatuto da "Santa Sé" na ONU, na medida em que representa uma entidade religiosa e não um Estado com as mesmas características que possuem os demais Estados membros da organização. Como se sabe, apenas a Igreja Católica e a Suissa gozam nas Nações Unidas do estatuto de "observador permanente".Na petição a ser encaminhada à ONU, argumenta-se em favor de que a Igreja Católica, como qualquer outra organização religiosa que o deseje, deve ser reconhecida, não como um Estado, mas como uma ONG e como tal ter o seu lugar reconhecido nos foros internacionais, quando assim o solicitar. Fazendo porém, um balanço da atuação do Vaticano na IV Conferência, pode-se afirmar que suas posições sairam bastante enfraquecidas. A escolha de uma mulher para chefiar sua delegação, ainda que fosse uma mulher totalmente afinada com as posições conservadoras da Igreja, revela a impossibilidade de manutenção do silêncio a que são relegadas as mulheres na instituição. A Igreja sentiu muito fortemente no Cairo, a força do movimento de mulheres fazendo ver ao mundo a face retrógrada dos setores dirigentes da Igreja, identificando-os aos grupos religiosos mais obscurantistas . Há que destacar, porém, que a Igreja não estava representada em Beijing apenas pela delegação escolhida pelo Papa. Grupos organizados de feministas católicas comprometidas com a defesa dos direitos das mulheres, com a melhoria de suas condições sociais, econômicas e políticas, com o processo de seu empoderamento, em todos os níveis, inclusive o religioso, marcaram sua presença em Huairou e no forum oficial. Reivindicando sua identidade católica e seu direito de discordar no interior da Igreja, estas mulheres, nas várias oficina de que participaram, desafiaram a hierarquia da Igreja a transformar em atos, suas declarações de apoio às demandas das mulheres por igualdade, tomando em conta as opiniões e necessidades das mulheres, na elaboração dos documentos oficiais, chamando-as a participarem nos níveis de tomada de decisão na Igreja e permitindo-lhes o acesso ao exercício do sacerdócio. Enfim, participar na IV Conferência Mundial das Mulheres, na China, foi sem dúvida, um privilégio. Do outro lado do mundo, literalmente, reuniram-se mulheres de todo o planeta, carregadas de histórias a serem contadas nas inúmeras oficinas, dispostas a protestar, a denunciar e a propor. A pequena Huairou, onde se realizou o Fórum das ONGs, transformou-se rapidamente em sede das atenções internacionais. O mundo todo estava ali. Huairou não era mais Huairou, era o mundo. Também Beijing, lugar da reunião oficial da ONU, foi ocupada pelas mulheres, colorindo suas ruas, mudando sua rotina, fazendo da cidade multisecular, o espaço do pensamento e da voz de metade da população global. Da China, ecoou para o Oriente e para o Ocidente, a força do sonho de milhões de mulheres: Justiça, igualdade e paz para o terceiro milênio!
Maria José Rosado Nunes
Não se pode pensar na Conferência que acaba de se realizar em Beijing, sem contextualizá-la no conjunto das últimas reuniões internacionais da década de 90: ECO-92, no Rio de janeiro; Direitos Humanos, em Viena; População e Desenvolvimento, no Cairo; Desenvolvimento Social, em Copenhague. A preocupação com a melhoria da qualidade de vida da população e com as condições sócio-políticas, culturais e econômicas que permitam mudanças substanciais até o final do milênio tem sido a tônica central dos debates. A contribuição das mulheres para essas discussões foi da maior importância. Elas não incorporaram apenas a perspectiva das mulheres a essa problemática. Fizeram muito mais do que isso. Propuseram um novo conteúdo para temas fundamentais como desenvolvimento, saúde, sexualidade e reprodução humana, cidadania e direitos individuais e sociais, demonstrando sua interligação. Nesse contexto, evidenciaram-se cada vez com maior clareza, os vínculos entre desigualdades, em todos os níveis, e manutenção da exclusão social. As proposições teóricas do feminismo e do movimento de mulheres mais amplamente, bem como sua ação política ao nível local e ao nível mundial, têm demonstrado que a realização dos direitos individuais não pode ser desvinculada da realização dos direitos sociais e econômicos. O processo acelerado de empobrecimento da população feminina, quando dados internacionais indicam para a participação substantiva das mulheres na produção da riqueza mundial, superando mesmo a dos homens, é um indicativo do impacto perverso das políticas econômicas internacionais sobre a vida das mulheres, dificultando, se não impediando-as de alcançarem sua autonomia individual e sua plena inserção social.. Assim, a justiça social aparece como central nas concepções e nas propostas das mulheres, ao fazerem a crítica da situação atual e projetarem o terceiro milênio.
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