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As questões que discutiremos ao longo deste trabalho estão relacionadas com aspectos que dizem respeito aos processos de formação. De certa forma, esta preocupação sempre permeou nossa prática junto às escolas de primeiro e segundo graus. Em nossas intervenções, como psicólogo, junto às escolas da cidade de Londrina e região, era constante ouvirmos, de profissionais considerados extremamente “competentes”, que em determinada sala era impossível dar aula; que tal ou tal aluno os perturbava muito etc. Tais desabafos eram acompanhados de um “ar” de desânimo, pois, apesar do esforço no planejamento das atividades, estas não “atingiam” o público a que se destinavam. Apesar do preparo: materiais, detalhamento didático etc., os professores sempre nos apresentavam os alunos como desinteressados, desmotivados (sic).
Com os pais pudemos encontrar situações bastante parecidas. Eles nos relatavam com freqüência que seus filhos – tanto as crianças como os adolescentes – relacionavam-se de um modo surpreendente, assumindo atitudes por eles não esperadas; o que levavam os mais velhos a uma sensação de “sem suporte”, “sem chão”. O fato de não compreenderem o que estava acontecendo, levava alguns pais a tomarem atitudes um tanto drásticas com relação a seus filhos.
Diante destas situações podemos estabelecer duas possibilidades, em vista dos sentidos atribuídos a essas experiências. Os pais quando surpreendidos por um filho pequeno, dirão que ele fez uma “gracinha”; quando por um adolescente, que ele pode estar em “crise”, e portanto, prestarão mais atenção ao comportamento de seu filho, porém esperam que tal tipo de comportamento seja passageiro.
De certa forma, eles depositam no próprio processo de inserção social, bem como nas organizações sociais (como clubes, escolas, igrejas, hospitais psiquiátricos etc.) a esperança de que seus filhos superem suas dificuldades – consideradas por alguns como normais[1].
Para o professor, porém, a situação de fracasso esboçada acima toma outro sentido, visto que o que está em jogo é sua “habilidade técnica”, o que está relacionado, muitas vezes, com sua falta de compreensão e relacionado, principalmente, com seu processo de formação, já que se ele fundamenta, por um lado, na apreensão de um certo número de teorias que, geralmente, lhe são apresentadas de forma superficial e desconectada de sua realidade; e por outro, pelo desenvolvimento de “habilidades” técnicas que restringem sua atuação profissional a um saber-fazer mecânico[2]. Entretanto, cabe salientar que, diante de determinadas situações, estes “conhecimentos” adquiridos pelo professor não o auxiliam, pois que demandam posições e/ou questionamentos muitas vezes desprezados na formação profissional: são aqueles que dizem respeito às implicações, aos valores, aos sentidos inerentes ao processo educativo.
Sentindo-se “perdidos” os professores geralmente buscam soluções: às vezes, recorrem aos livros para uma “iluminação”; às vezes consultam um profissional “psi” para esclarecimentos. Nessa última circunstância nós, os professores, que trabalhamos na área de Psicologia Escolar do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Estadual de Londrina, sempre fomos solicitados, ou para proferirmos palestras, ou para desenvolvermos uma intervenção através de estágios supervisionados – geralmente com crianças que apresentam dificuldades, ou para prestarmos assessoria.
Pudemos notar, ao longo de nossas intervenções, que estas buscas que os professores empreendem geralmente não trazem em si um questionamento sobre as suas práticas ou uma reflexão sobre suas posturas pedagógicas, mas estão muito mais vinculadas com o restabelecimento de um certo tipo de controle sobre os seus alunos: não se trata de buscar informações para dar um novo sentido para as práticas, para a relação que estabelecem com os alunos, mas para controlar-se e controlá-los.
Posto isto, a questão que nos colocaremos ao longo deste trabalho diz respeito aos processos de formação a que estão submetidos aqueles que estão envolvidos nos processos educativos – professores, alunos, pedagogos, psicólogos, familiares etc. Nossas preocupações, no entanto, não giraram em torno – exclusivamente – da educação escolar. Aqui nosso enfoque estará centrado sobre os processos educativos mais amplos, que extrapolam os limites do espaço escolar e nos remetem para uma discussão sobre as finalidades, os valores e as significações que visam a educação e, por conseqüência, a sociedade.
Antes de prosseguirmos, entretanto, façamos uma distinção entre formação e treinamento.
Num texto dedicado ao esclarecimento de alguns termos que designam a formação continuada no âmbito da educação, MARIN (1995) aponta que o termo treinamento foi muitas vezes utilizado para se referir a esse tipo de formação. No entanto, segundo ela, o termo treinamento nos remete para algumas idéias inadequadas, quando aplicado no âmbito da educação, tais como: tornar destro, apto, capaz de realizar tarefas etc., onde o foco principal incidiria sobre a modelagem de comportamentos. Rejeitando esta postura, a autora afirma:
Penso que, em se tratando de profissionais de educação, há inadequação em tratarmos os processos de educação continuada como treinamento quando desencadearem apenas ações com finalidades meramente mecânicas. Tais inadequações são tanto maiores quanto mais as ações forem distantes das manifestações inteligentes, pois não estamos, de modo geral, meramente modelando comportamentos ou esperando reações padronizadas; estamos educando pessoas que exercem funções pautadas pelo uso da inteligência e nunca apenas pelo uso de seus olhos, seus passos ou gestos. (MARIN, 1995, p. 15 – destaques nossos)
Nossa compreensão da noção de treinamento aproxima-se muito da leitura proposta por Marin. Entendemos, no entanto, que o treinamento é uma modalidade de formação e não se efetiva somente no âmbito da educação contínua, mas ocorre também no processo de formação inicial dos professores. Em ambas esferas de formação – tanto na inicial como na contínua – há certa ênfase no que diz respeito ao domínio das técnicas, das ferramentas, das estratégias de ensino; domínio esse cuidadosamente embasado em teorias científicas comprovadas. Em outras palavras, este tipo de formação – o treinamento – situa-se nas ordens de um saber (conhecimento) e de um saber-fazer (prática), que em alguns momentos são concomitantes, em outros, dissociados[3].
No âmbito da educação escolar, esse tipo de abordagem reflete-se no processo de aprendizagem dos estudantes: da mesma forma que o professor foi treinado a ministrar aulas – o aluno é treinado a ler, a escrever, a contar, a fazer contas, a memorizar.
Em sua manifestação contra a utilização do termo treinamento para qualificar o trabalho de educação continuada, Marin nos aponta um elemento que a caracterizaria como educação, qual seja, o uso da inteligência, o que pressupõe uma educação pautada na razão. Finalizando seu texto, ela localiza o conhecimento como o centro tanto da formação inicial ou básica como da formação continuada. Afirma ela: “É o conhecimento, ainda, estabelecido como fulcro das novas dinâmicas interacionistas das instituições para a valorização da educação e a superação de seus problemas e dificuldades.” (MARIN, 1995, p. 18).
Ora, entendemos que esta perspectiva ainda não contempla a complexidade do fenômeno em pauta, pois ela se ancora num ideário onde há uma certa ênfase no desenvolvimento dos aspectos cognitivos em detrimento de outros aspectos, como, por exemplo, a afetividade. Partimos do pressuposto de que nos processos de formação – inicial e contínuo – as preocupações devem estar vinculadas muito mais a um saber-ser, onde o vivido, o acompanhamento da experiência, a escuta dos sentidos (conscientes e inconscientes) que perpassam a relação ganham sua devida relevância. Tal perspectiva, como veremos, acentua a possibilidade de trocas que extrapolam a dimensão exclusivamente da razão: a relação em si mesma, à medida que se estrutura na dialogicidade, passa a ser o ponto de partida para a compreensão dos processos inerentes à dinâmica da formação.
Cabe ressaltar que tal perspectiva não se baseia numa atitude laisse-faire, mas nos leva a reconhecer as implicações envolvidas tanto no ato de aprender como no ato de ensinar. Além disso não pressupomos um abandono do aprimoramento teórico-didático na formação do professor, mas trazer para o quefazer pedagógico novas dimensões, dando-lhe um novo significado, possibilitando a emergência da diferença, dos ritmos próprios, dos processos particulares daqueles que nele estão envolvidos.
Tais considerações nos possibilitam estabelecer a tese que norteará este trabalho, qual seja: as visões de conhecimento, de objeto e de sujeito implícitas nas ciências naturais – ciências essas que subsidiaram tanto a elaboração das teorias educacionais bem como as práticas educativas delas decorrentes – não contemplam a complexidade dos fenômenos sociais e, por conseqüência, dos fenômenos educativos, devido ao caráter reducionista e simplificador das análises empreendidas para a sua compreensão.
Nesse sentido, entendemos que é necessário retomar os elementos acima assinalados sob outros ângulos. Para dar conta desta tarefa, apresentaremos a proposta da abordagem multirreferencial – desenvolvida por Jacques Ardoino e equipe – como arcabouço teórico capaz de contribuir, epistemológica e metodologicamente, para a compreensão da dinâmica dos processos educativos, assegurando-se a complexidade que lhes é própria.
Escolhemos a obra desse autor por vários motivos. Um deles está relacionado com a militância de Ardoino nos âmbitos intelectual e educacional franceses desde a década de 50, exercício esse que resultou na elaboração de uma abordagem para os fenômenos educativos conhecida como abordagem multirreferencial – plural e conseqüente proposta metodológica para a compreensão desses fenômenos. Trata-se de uma postura que tem como perspectiva aproximar várias linguagens, abordagens..., vários campos do saber de tal forma que assegurem a compreensão dos fenômenos educacionais em sua complexidade, sem se reduzirem uns aos outros. Tal postura, por sua vez, é entendida aqui como uma resposta (dentre várias) para as problemáticas educacionais – tanto em seu sentido prático quanto teórico – cujo intuito é superar o caráter dissociado dos “olhares” que se ocupam dos fenômenos relativos à educação.
Outro motivo que nos aproximou das idéias de Ardoino está relacionado com nossa própria prática profissional. Nos últimos anos – desde 1991 – estivemos trabalhando junto aos estabelecimentos escolares da cidade de Londrina e região com estagiários do quinto ano do Curso de Psicologia da Universidade Estadual de Londrina. Nossas experiências sempre tiveram como perspectiva a tentativa de abordar a escola em suas mais variadas dimensões, o que nos conduzia para vários campos de conhecimento, os quais nos auxiliavam na composição de nosso entendimento do cotidiano escolar. Assim, sentimos na obra de Ardoino uma resposta teórica para o que já exercitávamos em nossa prática profissional.
Além disso, esta é uma oportunidade de resgatar um autor que se fez presente em nosso país através de uma única obra intitulada “Psicologia da educação: na universidade e na empresa”, publicada através das editoras Herder e Edusp, no ano de 1971. Apesar de este livro estar esgotado e de ser em poucas bibliotecas brasileiras, ele não tem sido referência para os teóricos brasileiros, tanto para aqueles que atuam no âmbito da educação como no campo da psicologia.
No entanto, cabe registrar que Ardoino não esteve em contato com nossa realidade psico-educacional somente através deste livro. Ele desenvolveu um projeto junto com a UNESCO, através da Associação Nacional Francesa das Ciências Humanas Aplicadas (ANDSHA), onde estudou experiências educacionais diversificadas, desenvolvidas em diferentes países. Dentre os programas estudados encontra-se o Programa Alfa, desenvolvido pela Fundação Carlos Chagas de São Paulo, coordenado por Ana Maria Poppovic. Os resultados de seu estudo estão divulgados em seu livro “Education et relations: introduction à une analyse plurielle des situations educatives”, de 1980.
Tais fatos deixam “no ar” uma indagação: por que as reflexões teóricas elaboradas por Ardoino em seu livro, assim como os resultados da referida pesquisa, não foram divulgados em nosso meio educacional?[4]
O resgate aqui empreendido por sua vez não expressa uma necessidade exclusiva do autor deste trabalho, mas a de um grupo de pesquisadores espalhado pelo Brasil que têm na perspectiva multirreferencial um ponto de partida para a compreensão dos fenômenos e práticas educativos e que, através de palestras, cursos, encontros, vêm-se apropriando e aprofundando sua compreensão sobre tal abordagem[5].
O texto que segue tem como objetivo, enfim, discutir a proposta de Ardoino em seus aspectos epistemológicos e metodológicos, bem como os seus desdobramentos para a compreensão dos fenômenos e práticas educativos.
O primeiro capítulo traz uma análise sobre a história da ciência moderna, assinalando que a opção realizada pelas Ciências Humanas, ao buscar seu estatuto científico nas ciências naturais, traz em si mesma uma contradição, que recoloca constantemente questões relativas à presença da subjetividade na construção do conhecimento, tendo em vista as implicações do pesquisador com seu objeto de estudo.
Cabe ressaltar, no entanto, que tal postura não é hegemônica nem homogênea no âmbito das Ciências Humanas. Nesse sentido, discutiremos, também neste capítulo, algumas perspectivas que criticam a aproximação acima citada propondo novas formas de entendimento dos fenômenos relativos ao homem. Assim, apresentaremos algumas abordagens teóricas inscritas no campo das ciências sociais que, de certa forma, se aproximam do modelo de inteligibilidade ora em pauta: a abordagem multirreferencial.
No capítulo dois, apresentaremos as principais características da abordagem multirreferencial, em seus desdobramentos epistemológico e metodológico. Cabe registrar que ela é tecida a partir de vários conceitos, tais como os de complexidade, negatricidade, implicação, escuta clínica etc., os quais recolocam, o problema da construção do conhecimento científico sobre os fenômenos humanos. Compomos nosso “olhar” tendo como ponto de partida a própria proposta de trabalho de Ardoino, bem como alguns referenciais que ele utilizou para construir seu modelo de inteligibilidade. Tal posição, no entanto, não nos impossibilitou a utilização de outros referenciais que nos ajudaram a explicitar e a esclarecer alguns de seus pontos de vista. Para realizar essa análise, percorremos alguns caminhos, tais como os da Filosofia, da Antropologia, da Sociologia etc., o que nos possibilitou assegurar a complexidade das proposições que constituem a abordagem multirreferencial.
No terceiro capítulo abordaremos as relações entre a abordagem multirreferencial com algumas correntes do Movimento Institucionalista francês. Ardoino aproxima-se deste movimento à medida que tem como objetivo, em suas intervenções, desvelar os significados implícitos nas relações que se estabelecem no âmbito da realidade escolar.
No quarto capítulo, recolocamos várias questões – tanto de ordem prática como de ordem teórica – relativas à educação, abordando especialmente a relação entre professor e aluno, já que entendemos que essa relação é fundamental para o processo de ensino e aprendizagem na medida em que ela traz, em si mesma, alguns fundamentos do processo educativo: a heterogeneidade, a diversidade, a negatricidade, a intersubjetividade, os desejos. Tal caracterização levou-nos a abordar esse processo em sua complexidade, o que significa compreendê-lo enquanto fenômeno que se inscreve na ordem da opacidade, como algo irredutível – e por isso a necessidade do estabelecimento de uma abordagem multirreferencial para sua compreensão. Como no capítulo anterior, nós nos apoiamos em várias abordagens teóricas para compor esse leque de questões, afirmando o caráter multirreferncial de nossa análise.
Concluímos esse trabalho estabelecendo uma articulação entre as principais idéias desenvolvidas ao longo do texto apontando para algumas dimensões implícitas no processo de formação de educadores geralmente descuidadas pelas elaborações que tratam desta problemática. Enfatizaremos, assim, a importância dos aspectos afetivos e suas nuances implicados na relação pedagógica, fatores esses que, por estarem na ordem do imprevisto e do imprevisível, são abordados de maneira superficial, quando não são esquecidos no âmbito da formação destes profissionais.
Cabe lembrar aos leitores que o percurso que ora empreendemos não tem por objetivo trazer “receitas” nem elaborar “grandes sínteses” que possam subsidiar a elaboração de programas de formação de educadores ou de profissionais da educação. Nossa intenção é trazer à tona, a partir de uma multiplicidade de caminhos, a problemática da formação, e mais especificamente da relação pedagógica, acentuando seu caráter paradoxal, conflitual, já que relacional e dialógico, o que demanda – tanto no âmbito da pesquisa como no da prática pedagógica – uma postura que assegure a complexidade desses fenômenos.
Gostaríamos de registrar ainda que, apesar de nosso esforço de compreender a teoria de Ardoino a partir de várias perspectivas, não pudemos escapar dos “vícios” que nossa profissão nos impõe. Assim, os leitores perceberão que, em determinados momentos, enfatizamos em nossa análise o “olhar” do psicólogo, ao estabelecermos algumas interfaces entre a psicologia/psicanálise e a educação.
NOTAS DA INTRODUÇÃO
[1] Sobre essa questão ver KNOBEL, 1981.
[2] FREITAS (1992) discutindo as políticas para formação de professores afirma que a qualidade da formação teórica oferecida tanto pelos cursos de Pedagogia como pelas escolas normais e licenciaturas específicas é fraca, o que “força os alunos a esquemas, caricaturas e receitas predefinidas, já que não dominam esses fundamentos. “ (p. 13).
[3] Sobre essa relação entre teoria e prática na formação dos professores, ver análise de FREITAS, 1992.
[4] Cabe lembrar que neste período – 1970/1980 – há uma certa predominância, no universo educacional brasileiro, de teorias conhecidas como tecnicistas.
[5] Para mais detalhes sobre o percurso deste grupo ver BARBOSA (1998) e BORBA (1998).
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