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Neste capítulo discutiremos a emergência das chamadas Ciências Humanas – entendendo-as como aquelas que têm como objeto de estudo as “coisas relativas ao homem” – no âmbito da Modernidade.
A discussão sobre essa questão tem, nesse contexto, um sentido específico, visto que foi no âmbito da Modernidade que se estruturaram as bases espitemológicas e metodológicas que subsidiam tanto as teorias educacionais como as práticas educativas delas decorrentes.
Assim, num primeiro momento, destacaremos alguns elementos que possibilitaram a emergência das Ciências Modernas em sua versão racionalista, bem como as suas influências para a constituição das Ciências Humanas.
Em seguida, tomaremos algumas correntes teóricas que rediscutem as características das Ciências Humanas, principalmente no que tange aos seus aspectos epistemológicos (com as conseqüências metodológicas correspondentes), quais sejam: a Etnometodologia (no campo da Sociologia), e a Antropologia Interpretativa (no campo da Antropologia). Entendemos que essas abordagens rompem com as visões tradicionais em seus campos de conhecimento, possibilitando-nos outras percepções acerca do humano. Além disso, como veremos mais adiante, essas correntes se aproximam das propostas de Ardoino quando da construção de sua abordagem multirreferencial.
A análise que empreenderemos vai-se estruturar como uma crítica ao que se tem denominado de “conhecimento científico”, apontando para os limites que as Ciências Humanas se impuseram ao tomarem, como modelo de cientificidade, o modelo desenvolvido no âmbito das Ciências Naturais.
A discussão sobre a Modernidade tem tomado várias dimensões nos últimos tempos. Várias são as disciplinas que estão discutindo suas características e seus desdobramentos.
BERMAN (1986), caracteriza a Modernidade como um conjunto de experiências - “de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilidades da vida” – compartilhado por todos atualmente. Para ele, ser moderno implica viver num ambiente onde é ofertado, ao mesmo tempo, tanto as possibilidades de transformação e de autotransformação, como a ameaça de destruição de tudo o que sabemos e o que somos. Tal experiência é decorrente da anulação das fronteiras: regionais, raciais, de classe, nacionalidade etc., o que nos sugere uma unidade da espécie humana. Porém, essa unidade traz, em si mesma, uma realidade paradoxal, na medida em que nela nos “deluímos” (p. 15).
Para ele, a vida moderna e seus desdobramentos têm sido alimentados por muitas fontes:
...grandes descobertas das ciências físicas, com a mudança da nossa imagem no universo e do lugar que ocupamos nele; a industrialização da produção, que transforma conhecimento científico em tecnologia, cria novos ambientes humanos e destrói os antigos, acelera o próprio ritmo de vida, gera novas formas de poder corporativo e de luta de classes; descomunal explosão demográfica, que penaliza milhões de pessoas arrancadas de seu habitat ancestral, empurrando-as pelos caminhos do mundo em direção a novas vidas; rápido e muitas vezes catastrófico crescimento urbano; sistemas de comunicação de massa, dinâmicos em seu desenvolvimento, que embrulham e amarram, no mesmo pacote, os mais variados indivíduos e sociedades; Estados nacionais cada vez mais poderosos, burocraticamente estruturados e geridos, que lutam com obstinação para expandir seu poder; movimentos sociais de massas e de nações, desafiando seus governantes políticos ou econômicos, lutando por obter algum controle sobre suas vidas; enfim, dirigindo e manipulando todas as pessoas e instituições, um mercado capitalista mundial, drasticamente flutuante, em permanente expansão. No século XX, os processos sociais que dão vida a esse turbilhão, mantendo-o num perpétuo estado de vir-a-ser, vêm a chamar-se “modernização”. (BERMAN, 1986, p. 16)
Como podemos depreender das colocações de Berman, o ponto de partida de sua análise, donde caracteriza a Modernidade, situa-se nas transformações que ocorreram nos últimos três séculos, transformações que emergiram principalmente com o desenvolvimento tecnológico.
Entretanto, numa outra perspectiva, que se aproxima mais da etimologia da palavra moderno, COELHO (1990) nos assinala que moderno, no limite, é o novo.
No século V, quando provavelmente a palavra “moderno” aparece pela primeira vez, modernos eram os novos tempos cristãos, o presente cristão que se opunha ao passado romano e pagão (Moderno vem do baixo latim modernus, de modo, que significa recente; cf. hodierno, derivado de hodie, hoje, este dia, tempo presente.). (COELHO, 1990, p. 13).
No entanto, a valorização do que é novo, não é uma constante na história da cultura. O novo, ou o original, não era por si só um traço capaz de chamar a atenção. Ainda no Século XVI o quase oposto prevalecia: um pintor era bom quando conseguia copiar perfeitamente um mestre (técnica conhecida como maneirismo, segundo HAUSER, 1982).
“A diferença era reconhecida e também valorizada enquanto tal - mas apenas depois de seu detentor ter demonstrado que era capaz de ser igual.” (COELHO, 1990, p. 14). O maneirismo, do ponto de vista da arte, “é o primeiro estilo moderno, o primeiro que se preocupa com um problema cultural e que considera as relações entre a tradição e a inovação como um problema a ser resolvido por meios racionais.” (HAUSER, 1982, p. 474).
Apenas a partir do século XVIII e, mais especificamente, do século XIX, com os processos de industrialização e de mercantilização, incluídos os da da cultura e da arte, é que a originalidade ascende à posição de valor supremo: “assim o exige um mercado ávido por coisas diferentes que, exatamente por serem diferentes, devem valer mais (dinheiro) do que as coisas conhecidas. Um mercado esfomeado de novidades.” (COELHO, 1990, p. 13/14).
Cabe ressaltar que a maioria das pessoas sabe reconhecer alguma coisa como moderna, embora tenha dificuldades de descrever ou definir em que consiste essa Modernidade. “Isto, a rigor, não porque a palavra moderno seja vazia mas porque oca na verdade é nossa referência, oca é nossa idéia de moderno, oco é o pensamento do moderno.” (COELHO, 1990, p. 9).
Coelho assinala ainda que quando vemos um objeto concreto à nossa frente, temos uma palavra para designá-lo: moderno. A relação que se estabelece entre esse objeto, essa palavra e nossa mente pode ser considerada como uma relação aberta, em vista das várias possibilidades que aí se configuram. Esta relação caracteriza-se por suas ausências – já que sem referências -, mas pode ser feita e de fato se faz em cada situação, variando conforme variarem o objeto concreto e a mente de quem se coloca diante dele. “Portanto, uma relação que pode receber variados conteúdos. Quem não tem nome próprio pode ter muitos nomes, uma multiplicidade de nomes.” (COELHO, 1990, p. 9)
Nesse sentido, entendemos o termo “moderno” como um termo que designa alguma coisa, mostrando-a, mas não a conceituando; que aponta para ela mas não a define; indica-a, sem simbolizá-la. “Moderno é, assim, um índice, tipo de signo que veicula uma significação para alguém a partir de uma realidade concreta em situação e na dependência da experiência prévia que alguém possa ter tido em situação análoga.” (COELHO, 1990, p. 8).
Apesar disso, fala-se num “projeto da Modernidade” que recobriria de modo amplo e geral quatro séculos da cultura ocidental - ou seja, européia. O princípio deste projeto pode ser localizado com a experiência do Renascimento e com a emergência do sujeito moderno.
FIGUEIREDO (1992), investigando os modos de subjetivação contemporâneos, nos aponta que a experiência de subjetivação moderna instaurou-se a partir da vivência da diversidade e da ruptura durante o final do século XV, o que foi acompanhada de diferentes tentativas de ordenação. Esta tensão propiciou a formação do “sujeito moderno”.
Figueiredo investiga, a partir de várias figuras emergentes no contexto cultural europeu deste período, sinais de uma concepção negativa do caos[1], um horror para com a diferença. Tal perspectiva pode ser exemplificada pelo horror às margens (também estudado por CORBIN, 1989), tanto geográficas como humanas, nutrido pelo homem do Séc. XVI. Este, não suporta o fato de que as margens anulam as formas estáveis, dissolvendo as identidades, já que aí se está exposto à variedade e a mistura.
CORBIN (1989) assim descreve as cosmogonias do Séc. XVII das margens marítimas:
A linha da costa, de fato, não é senão uma ruína, o que explica sua irregularidade e a disposição incompreensível dos recifes que a orlam; inútil buscar uma ordenação qualquer. Radicalmente inestéticos, o mar e suas bordas não podem, em boa teologia, datar da criação; não poderiam resultar do trabalho original da Natureza. O oceano não passa de um recipiente abissal de detritos; quando muito, pode-se admitir que ele desenha a menos feia das paisagens resultantes do retorno temporário do caos. (p. 14)
O medo[2] das margens marítimas e dos oceanos, está relacionado tanto à sua imensidão descontrolada – que se vincula a imagens de “monstros marinhos”, “sereias”, “baleias imensas” – quanto por serem vias de esvaziamento da Europa - pois os homens
que se arriscavam no mar, corriam o risco de não voltar. O medo também está relacionado com as experiências de contato – com a diferença – à medida que se encontram “novos seres”[3] (referimo-nos aqui aos homens “não europeus” - aos “índios” - muito tempo depois considerados como humanos através de uma bula papal).
A dificuldade de lidar com a diferença também se expressa nas relações que se estabeleciam com os hereges e com os convertidos (judeus e mouros convertidos ao cristianismo no Séc. XVI). Estas relações são vividas como portadoras de contágio e da poluição da comunidade, por não possuírem uma identidade demarcada, bem definida.
Um outro aspecto da experiência subjetiva do Século XVI ligado a uma qualificação negativa do caos e da diferença, apontado por FIGUEIREDO (1992), está relacionado com a utilização da memória, especialmente nas autobiografias quinhentistas. Para ele estes exercícios de escrita foram operacionalizados de modo a congelar a experiência, através da atribuição a seus objetos de uma espécie de estabilidade e permanência de sentido; a memória aqui é uma espécie de “instrumento anti-mistura”.
Com este mesmo intuito, também vão se instaurar os romances de cavalaria uma vez que estabelecem parâmetros bem delimitados para a experiência subjetiva diante do caos, já que além da inexistência do sem-sentido, eles veiculam, através de seus personagens, valores relativos ao “bem” e ao “mal”.
FIGUEIREDO (1992) também nos aponta a emergência do sujeito epistêmico como um fenômeno de impacto na história ocidental do Séc. XVII. Sobre este “personagem” desenvolveu-se todo o ideário da ciência moderna. Este ideário se consolida através da criação do método científico, tanto na versão baconiana como na cartesiana.
Os projetos epistemológicos de Bacon e de Descartes têm como meta a razão, o que implica a cisão da subjetividade: de um lado, “a subjetividade confiável”, regular, porque sempre idêntica a si mesma, e comunicativa, porque a mesma em todos os homens; de outro lado, “a subjetividade suspeita”, volúvel, inconstante, imprevisível, diferente e, em última análise, isolada e privatizada.
O estabelecimento de um método científico deveria garantir esta cisão. Mais do que isso: deveria assegurar a autonomia e dominância do idêntico sobre o diferente; do genérico sobre o particular; do comunicável (público) sobre o privado. Sob tais perspectivas, constituiu-se plenamente o sujeito epistêmico: condição das representações verdadeiras do mundo. O sujeito, enquanto fonte de variação, fonte de opiniões, tendências, vieses, desejos, movimentos passionais e instintivos etc., deveria ser excluído.
Nesse sentido, observa-se claramente uma redefinição das relações sujeito/objeto, seja no plano da ação, seja no do conhecimento. A razão contemplativa - desenvolvida pelos filósofos da Antigüidade - orientada desinteressadamente para a verdade e concebida sob o modo receptivo de uma apreensão empírica ou racional da essência das coisas, cede lugar, progressivamente, à razão e à ação instrumental.
Efetivamente, ao longo da Idade Média já se podiam vislumbrar os primeiros sinais de mudança na concepção de ciência. Tais mudanças consolidam-se com Leonardo da Vinci e Galileu Galilei, que colocam, ao lado da busca da verdade objetiva, a experiência – o experimento – no centro do processo de conhecimento, acentuando-se a sua finalidade utilitária como justificativa e legitimação da ciência (conforme MONDOLFO, 1967).
Contudo, é na obra do filósofo Francis Bacon - um espírito de transição entre a Renascença e a Idade Moderna - que este novo modo de existência prático teórico aparece de forma suficientemente sistematizada e nítida para caracterizar a alvorada de uma nova era. Nos seus livros, “Bacon (um empirista extremado) atribui ao sujeito o status de senhor de direito da natureza, cabendo ao conhecimento transformá-lo em senhor de fato.” (FIGUEIREDO, 1991, p. 13).
A partir de então, a subordinação do conhecimento científico à utilidade, à adaptação e ao controle, bem como a modelação da prática científica pela ação instrumental alcançaram realce cada vez maior.
Aqui é de fato extremamente importante salientar que, com o passar do tempo e com o desdobramento da tradição utilitária, a possível e desejável aplicação prática do conhecimento deixa de atuar apenas como condicionante externo, justificando e motivando a pesquisa.
Isto na verdade nem mesmo ocorre necessariamente, ao menos no nível da consciência dos cientistas e epistemólogos. Porém, se com Descartes e Bacon (e todos os empiristas posteriores) as teorias do conhecimento ainda permaneciam sob o modelo da razão contemplativa, buscando os fundamentos absolutos do conhecimento seja na visão externa (valorização empirista dos sentidos) seja na visão interna (valorização das idéias claras e distintas a que se chega pela intuição pura), na prática de pesquisa e na reflexão espistemológica a instrumentalidade do conhecimento converte-se numa das determinações internas da ciência, cujos procedimentos e técnicas definem-se nos termos de controle, cálculo e teste. O ‘real’ - objeto desta ciência - é apenas o real tecnicamente manipulável, na forma efetiva do controle ou na forma simbólica do cálculo e da previsão exata; o teste põe à prova uma técnica de intervenção ou uma antecipação precisa de resultados. É real, portanto, o que se pode integrar como matéria-prima ao esquema destas operações. A tecnologia da ciência e a tecnologia produtiva progridem juntas, amparando-se e incentivando-se reciprocamente, e isto é possível porque ambas encarnam um mesmo projeto e visam da mesma forma os seus objetos. (FIGUEIREDO, 1991, p. 14-15)
Ora, não podemos negar que o desenvolvimento científico moderno se estabelece a partir de um discurso sobre a natureza que a escolástica herdara do aristotelismo. No entanto, o aperfeiçoamento do instrumento matemático e a reflexão rigorosa sobre os dados da experiência abrem a possibilidade de elaborar um sistema da natureza que, fazendo descer os números e as figuras do céu das Idéias à Terra, assegura uma maior inteligibilidade sobre os fenômenos físicos e permite unificar o conjunto do visível sob a égide de leis únicas.
Figueiredo, assinala também, que o traço mais moderno da filosofia da ciência de Bacon é, na verdade, o rigoroso julgamento a que são submetidas as tendências anticientíficas do espírito. Não se trata apenas de ampliar o tema renascentista do rompimento com a tradição e com os preconceitos que, na própria Renascença, resultava na curiosidade e na imaginação sem freios, na credulidade e na ingenuidade. Em Francis Bacon, e em particular, na sua doutrina dos Ídolos do Conhecimento, há uma luta sistemática contra as inclinações inatas ou aprendidas do homem que bloqueiam ou deformam a leitura objetiva do livro da natureza.
Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados não somente obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade, como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam. (BACON, 1997, p. 39)
Instala-se assim, no âmbito do pensamento científico, a partir das idéias de Bacon, uma atitude de cautela e de suspeita do homem para consigo mesmo. A produção do conhecimento objetivo ganha uma nova espessura onde o autoconhecimento e o autocontrole se apresentam, então, como indispensáveis. “A disciplina do espírito será o objetivo das regras metodológicas que definirão a própria especificidade da prática científica: cientista não é quem alcança a verdade, mas quem se submete conscienciosamente à disciplina do método.” (FIGUEIREDO, 1991, p. 15).
A vertente racionalista da nova ciência, por sua vez, desenvolvida a partir do pensamento de Descartes, exigia também a dúvida metódica com procedimento fundamental da ciência:
Há já algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois eu fundei em princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de modo que me era necessário tentar seriamente uma vez em minha vida, desfazer-me de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente desde os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de firme e de constante nas ciências. (DESCARTES, 1973, p.94)
Na doutrina dos ídolos e na dúvida metódica encontram-se todos os discursos de suspeita que a Idade Moderna elaborou para identificar e extirpar, ou pelo menos neutralizar, a subjetividade empírica.
Na denúncia dos ‘ídolos do teatro’ (doutrinas e sistemas filosóficos) reconhecem-se as posições rigidamente empiristas e antiteoricistas dos dogmáticos do antidogmatismo (como os positivistas do círculo de Viena e como B. F. Skinner); com a denúncia dos ‘ídolos do mercado’ (as formas coloquiais de comunicação) impulsiona-se a tradição de crítica da linguagem, já iniciada com os nominalistas medievais e prosseguida com os empiristas ingleses, com os ideólogos franceses e, recentemente, com Wittgenstein e os neopositivistas; na denúncia dos ‘ídolos da caverna’ (predisposições e vieses individuais) e dos ‘ídolos da tribo’ (características e limitações universais do espírito humano) antecipa-se o reconhecimento da personalidade, da história de vida, da existência biológica e do desejo como fatores responsáveis pelo mau uso dos sentidos. (FIGUEIREDO, 1991, p. 16)
A ênfase de Bacon sobre a evidência empírica como a base segura para fundar e validar o conhecimento objetivo ainda pode ser identificada nas filosofias empiristas e positivistas que se desenvolveram posteriormente.
No entanto, durante o século XVII, Galileu e Descartes introduzem uma suspeita quanto à confiança na percepção. O domínio da Física restringe-se, com estes autores, ao que pode ser submetido à razão matemática da geometria e da mecânica, medido e calculado. Nesse sentido, são considerados objetos da ciência,
... os aspectos da realidade que podem ser reconhecidos pela razão como objetivos (qualidades primárias), enquanto que se exclui aquilo que é dado apenas e tão-somente à sensibilidade. O puramente sensível é o ilusório, transitório, a criação arbitrária do espírito. Para esta ciência das leis gerais e da quantidade, que tem por objeto o que permanece e se reproduz regularmente, a vivência perceptiva, a experiência sensorial pode ser tão perigosa e estéril para a ciência como as experiências afetivas... (FIGUEIREDO, 1991, p. 16-17)
Assim, a busca do fundamento absolutamente seguro do conhecimento foi substituída pela especificação de um procedimento - de uma lógica da investigação[4]. Este é um período que se define pela co-presença de ataques ao sujeito empírico do conhecimento, pelas táticas de defesa contra a intrusão indesejada e pelo sítio armado em torno da subjetividade.
O sujeito empírico é concebido como fator de erro e de ilusão. Na linguagem coloquial, a atribuição de caráter subjetivo a um argumento o desqualifica diante da lógica ou diante dos fatos. A produção e a validação do conhecimento é, em última instância, o incremento do domínio técnico sobre a natureza.
Pusemo-nos a destrinchar o processo da vida com nossas tesouras de
pesquisa. Fomos do organismo para o órgão, do órgão ao tecido, do tecido à
célula, até chegarmos à molécula de DNA em seu ambiente celular. Continuamos
a picotar. Decompusemos o DNA. Decompusemos o ambiente. Com surpresa,
descobrimos que a vida desapareceu. Para onde ela foi?
Schwartz
Ao longo da Modernidade, há um esforço muito grande por parte de filósofos e cientistas na estruturação de um modelo científico que fosse determinante para a validação dos conhecimentos. A ciência, assinala JAPIASSU (1975), é considerada pelo grande público como um conjunto de conhecimentos ‘puro’ ou ‘aplicado’, produzido por métodos rigorosos, comprovados, e objetivos. Este conjunto de conhecimento, em função de sua especificidade, diferenciar-se-ia do conhecimento produzido no âmbito da Filosofia, da Arte, da Política ou da Mística.
Para esse autor, o protótipo do conhecimento científico seria a Física, a partir da qual se ordenariam a Matemática e as disciplinas biológicas. Em contraposição a esse conjunto teríamos os conhecimentos aplicados e técnicos, bem como as disciplinas chamadas de ‘humanas’. Assim: “A verdadeira ciência seria um conhecimento independente dos sistemas sociais e econômicos. Seria um conhecimento que, baseando-se no modelo fornecido pela física, se impõe como uma espécie de ideal absoluto.” (JAPIASSU, 1975, p. 9).
Vamos encontrar, durante a Modernidade duas correntes filosóficas que estabeleceram os modos de fazer ciência, uma desenvolvida por Bacon, outra por Descartes.
Bacon representa um marco histórico na fundamentação e instrumentalização da forma de fazer ciência. Dele é a convicção de que o conhecimento humano só é possível através da mediação dos sentidos, sendo a consciência, ou a mente, uma tábula rasa na qual são impressos os dados do real. Tal visão ficou conhecida como empirismo, visto que pretende condicionar o conhecimento à aproximação direta com o real mediante regras rígidas que limitariam as tentativas metafísicas de explicação da realidade.
Por outro lado, com Descartes, o método empirista foi contestado na tentativa de restaurar o papel da razão e da reflexão de certa forma relegadas a um segundo plano na visão baconiana: a razão precederia a convivência dos sentidos com o dado empírico, uma vez que o homem foi agraciado por Deus com um aparato que lhe confere o poder de ter idéias a priori, ou seja, prescindindo de contatos diretos com o real através dos sentidos. Assim, a maneira apropriada de fazer generalizações sobre a realidade seria pelo método dedutivo, através da razão descobrir-se-iam os princípios gerais sobre a realidade que seriam confirmados mediante o conhecimento dos fatos particulares. A crença na razão e no poder de conhecer levou a comunidade científica a chamar tal visão de racionalismo.
A questão implícita no confronto entre empirismo e racionalismo residia na disputa sobre quem melhor garante o domínio do real: a razão ou os sentidos.
À medida que tais idéias se homogeneizam, tornando-se os pressupostos para a instituição das Ciências, às Ciências Humanas resta submeter-se às tais determinações. Como nos diz CASSIRER (1997), referindo-se às Ciências Naturais e a sua relação com o desenvolvimento das ciências: “Quando não podemos valer-nos da bússola das matemáticas nem do farol da experiência e da física, é certo que não podemos dar um só passo em nosso caminho.” (p. 86).
Essa vinculação estabelecida entre as Ciências Humanas e as Ciências Naturais, à medida que pressupõe um empenho na fiscalização, no autocontrole e na autocorreção do sujeito, engendra as preocupações epistemológicas e, principalmente, metodológicas, características de nossa época, levando os cientistas do “humano” a elaborarem um projeto de ciência humana como ciência natural, ou seja, uma ciência que tem sob controle o subjetivo. Tenta-se, com tal projeto de ciência humana, colonizar um novo continente: o da natureza interna, o “íntimo”.
Tal projeto, todavia, justifica-se apenas porque se presume que a natureza interna seja essencialmente hostil à disciplina imposta pelo método científico e deva, por isso, ser neutralizada. Além disso, o objetivo de tal projeto seria submeter a natureza interna (os sentimentos, as emoções etc.) às mesmas práticas de pesquisa – e, portanto, de controle – que se desenvolveram na interação com a natureza externa e, ademais, definiram seu caráter. Em decorrência,
...o sujeito é atravessado por uma sucessão de rupturas: num primeiro nível, a sensibilidade, a afetividade, a intuição, a vivência pré-reflexiva, etc. conflitam com a razão instrumental; num segundo nível, é a própria razão que se desdobra em discursos de suspeita que procuram identificar e extirpar dos discursos com pretensões racionais os vestígios cada vez mais dissimulados da subjetividade. (FIGUEIREDO, 1991, p. 19)
Os dispositivos estruturados a partir de tal concepção de ciência nos ensinam que as regras de construção da verdade se caracterizam como uma escalada de abstrações - é uma construção racional: a razão é o seu veículo natural para o acesso à verdade. Além disso, a razão enquanto instrumental metafísico, tem suas leis próprias. Uma das propriedades mais características da razão é a sua soberania.
Quer dizer, enquanto domínio da demonstração e do princípio de identidade, a razão reivindica necessariamente a supremacia sobre as outras faculdades de relação com o mundo, já que o seu pressuposto e a sua razão de ser é o próprio ser, a própria essência das coisas. Diante da razão os outros recursos da relação do homem com o mundo, são secundários. (GONZAGA, s/d, p. 93)
A razão, por sua vez, não é apenas o veículo que conduz à verdade, mas é, pela sua própria natureza, aquilo que instaura e funda, soberanamente, a verdade mesma.
Uma outra propriedade da razão e, neste caso, da própria verdade, é o seu caráter exclusivo e não contraditório. Ou seja, a razão é unificadora e totalizadora. Enquanto unidade e totalidade, tanto a razão quanto a verdade, não permitem a coexistência de uma outra razão ou de outra verdade. O reconhecimento de uma outra verdade simultânea seria a perda necessária e suficiente de sua legitimidade. Nem a verdade nem a razão toleram o seu outro ou a diferença (GONZAGA, s/d).
As Ciências Modernas, mais especificamente as Ciências Humanas, instituem-se, portanto, a partir de uma tentativa de controlar os elementos subjetivos implicados na construção do conhecimento, seja submetendo-os seja a uma metodologia rigorosa, seja a um processo de racionalização que exclui elementos estranhos à razão (a subjetividade, a intuição etc.).
Dessa forma, estruturam-se penetrantes e abrangentes dispositivos socioculturais que tendem a ordenar a vida segundo os mesmos modelos identificados no pensamento epistemológico.
Esse exercício de ordenação, classificação... pode ser vislumbrado numa passagem do livro de FIGUEIREDO (1992), quando ele nos remete para um personagem da história de Portugal chamado João de Barros (1450-1570).
João de Barros é um dos grandes cultivadores da historiografia renascentista, que exerceu, durante alguns anos, funções administrativas e empresariais junto à Casa da Índia, Mina e Ceuta, no cargo de tesoureiro. O armazém que dirigia nos é apresentado da seguinte maneira:
Por poderosa que seja a memória, cansa-se em pintar todo esse colorido e multiforme armazém, único em toda a Europa (...) Que exposição de arte ornamental não tínhamos! Que museu de zoologia, mineralogia e botânica das regiões africanas e asiáticas! Que lindíssimas louças da China! Que esplêndidos contadores marchetados! Que suntuosos troços de marfim! Que ourivesarias nunca vistas...
Além desses objetos, creio que muita da população estranhíssima que nossos galeões traziam a Portugal, quer como escravaria, que como amostra, se havia de topar nas escadas e vestíbulos daquele palácio de preciosidades: já o Etíope retinto, já o Cafre acobreado, já o índio vestido de sedas, todos aqui desterrados, chorando as lágrimas da nostalgia, tão vendidos entre nós como seus patrícios papagaios, sagüis e elefantes. (BAIÃO apud FIGUEIREDO, 1992, p. 33)
Nesse domínio administrativo temos não só amostras de todo o mundo vegetal, mineral e cultural em sua exótica variedade, como também todos os seres, coisas e homens, extraídos de seus lugares naturais, organizados adequadamente, para representar o universo fechado de identidades estáveis. Todos os espécimes estão ali convivendo uns com os outros sem que nada os ligue, mas também sem que nada os possa separar: todos estão reduzidos à condição de mercadoria numa prateleira ou vitrine, organizados, rotulados, identificados.
É a variedade em estado puro, já que as ‘peças’ estão desarticuladas de seus contextos e despojadas de suas ‘razões de ser’. Enquanto mercadorias, contudo, as peças são submetidas a um processo de homogeneização que as mistura, confunde e as torna trocáveis umas pelas outras. As grandes questões do século XVI [que se estendem durante todo o período de consolidação da modernidade], articulam-se em torno das duas tarefas que tanto devem ter ocupado o tesoureiro João de Barros: como manter tantas várias coisas juntas e como impedir que se confundam e misturem? (FIGUEIREDO, 1992, p. 33)
O caos emergente dessa situação – onde prevalecia a diversidade e a ruptura etc. – foi contornado pelos ideais da ordem e do progresso característicos da Modernidade, ideais que foram, de uma certa forma implementados pelo desenvolvimento da ciência moderna e das disciplinas que nela se nutriram.
Apesar destes esforços, a vida tende a “misturar” o que os “laboratórios” separam: mistura a razão às paixões, e ambas aos poderes do corpo e às fraquezas do espírito (FIGUEIREDO, 1992), recolocando, paulatinamente, as questões referentes à construção do conhecimento no âmbito da ciência.
Esta idéia de “ordenação” que se impingia sobre o sujeito e se estruturou com a consolidação das Ciências Modernas também foi identificada por Foucault, em seu livro “As palavras e as coisas”. Ali, o autor procurou desvendar o processo de construção dos saberes modernos, especialmente o das Ciências Humanas. Chamou de episteme[5] o solo sobre o qual tais saberes puderam brotar e crescer, argumentando que, em cada época histórica, não pode haver mais do que uma única episteme, uma única forma de estruturação dos saberes.
Ele assinala que o mundo moderno, desde o século XVI aos nossos dias, é marcado por duas epistemes distintas: a clássica, fundada na similitude, e a moderna, erigida sobre a representação.
Na primeira episteme, característica do Renascimento, é a similitude que joga o papel construtivo do saber. Esta similitude expressa-se nas aproximações (conveniência, emulação, analogia, simpatia) que ligam as coisas entre si, da mesma forma que as palavras estão ligadas às coisas. A palavra identifica a coisa porque é semelhante a ela, há um quê de magia na relação entre a palavra e a coisa, como se dizer algo fosse torná-la concreta.
Aos poucos, porém, o estreito vínculo entre a palavra e a coisa começa a ser rompido. Uma nova ordem intrínseca dos saberes começa a surgir, não mais alicerçada na semelhança. E é esta nova ordem epistêmica que permitirá o aparecimento da Ciência Moderna, primeiro as naturais e as da vida e, apenas mais tarde, as ciências do homem. A episteme que serve de solo para a eclosão do conhecimento científico moderno está fundada sobre a representação, e constitui-se através de duas instâncias ordenadoras: a mathesis, com base na álgebra, e a taxonomia com base nos signos.
A partir destas duas instâncias, o saber caracteriza-se pela relação de todo conhecimento com a mathesis, isto é, a possibilidade de estabelecer entre as coisas, mesmo as não mensuráveis, uma sucessão ordenada. Esta relação com a mathesis, por sua vez, significa uma possibilidade de consolidação de uma ciência universal da ordem.
Conhecer é, em todos os campos, proceder a um ordenamento mediante o estabelecimento das diferenças. Isto permitirá que as diversas ciências se constituam como esforços de representação do mundo, buscando estabelecer uma ordem através do saber. Isto significa estender sobre o âmbito da representação a rede de uma “língua” bem ordenada e construída.
A linguagem, a partir do momento que funciona dentro da representação com sua organização primordial, permite distribuir o continuum dos seres segundo seus caracteres diferenciais. A configuração da episteme caracteriza-se por este continuum da representação e do ser, assegurado pelo discurso, isto é, pela linguagem na medida em que ela é representativa.
No pensamento clássico, para o qual a representação existe, e que se apresenta ele mesmo nela, nela se reconhecendo como imagem ou reflexo, aquele que tece todos os fios entrecruzados da “representação em quadro” - esse jamais se encontrará presente. Antes do fim do séc. XVIII, o homem não existia. (FOUCAULT, ©1966, p. 401-402)
O sujeito, portador da representação, não aparece até então porque não converte a si mesmo como objeto de representação.
A representação entre as palavras e as coisas torna-se uma “realidade” que produz e é produzida por uma ação, realizada por um agente. A representação, desse modo, faz entrar na história o sujeito, que se percebe por ela e através dela. Surge, assim, a necessidade de o sujeito - portador das representações - se perceber como objeto de si mesmo para apreender o processo de representação.
Paralelamente, na Modernidade surge uma série de saberes, articulando-se com o antigo, mas sobrepondo-o, subsidiado na vida, na linguagem e no trabalho (Biologia, Filologia e Economia) que priorizam a análise do empírico, isto é, descarta a representação e releva o objeto empírico. É o nascimento, segundo Foucault, do que ele chama da “ciências empíricas”, e o acesso ao real não seria mais pela via da representação.
Entretanto, problematizar a vida e a linguagem é transformar o homem no objeto do saber, visto que
... estudar esses objetos [linguagem, vida e trabalho] é estudar o homem. Eles o requerem, na medida em que o homem é meio de produção, se situa entre os animais e possui linguagem. Eles o determinam, na medida em que a única maneira de conhecê-lo empiricamente é através desses conteúdos do saber. (MACHADO, 1982, p. 133)
Cabe ressaltar, enfim, que, para Foucault, o surgimento das Ciências Humanas não foi produto de uma herança de problemas científicos, em que elas aparecem para preencher uma lacuna, ou mesmo de uma evolução epistemológica que redundou no seu aparecimento. Diz ele
... as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum racionalismo premente, de algum problema científico não resolvido, de algum interesse prático, se decidiu fazer passar para o homem (bem ou mal, e com mais ou menos êxito) para o campo dos objetos científicos (...) As ciências humanas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental ao mesmo tempo como o que é necessário pensar e é o que há a saber. (FOUCAULT, ©1966, p. 448)
A relação entre as Ciências Humanas com as Ciências Empíricas ocorre “apenas” no sentido em que estas são o “a priori histórico” daquelas.
O surgimento das Ciências Humanas foi um acontecimento da ordem do saber (FOUCAULT, ©1966), relacionado a uma transformação geral na episteme, ou do solo epistemológico, onde o espaço da representação foi abandonado pelas ciências empíricas e, assim, ocupado pelas Ciências Humanas, desde que estas não estudassem “o homem no que ele é por natureza, objeto das ciências empíricas, nem o homem enquanto é condição de possibilidade deste saber sobre o homem” (MACHADO, 1982, p. 142), mas sim analisassem as objetivações criadas por um homem que vive, trabalha e fala.
Mesmo assim, as Ciências Humanas ocupam um lugar um tanto paradoxal na episteme moderna. Segundo Foucault, as Ciências Matemáticas, a Física - numa primeira dimensão - as Ciências EEmpíricas - numa segunda - e a Filosofia - numa terceira - formam um triedro epistemológico que não inclui as Ciências Humanas, já que
... não se pode encontrá-las em nenhuma das dimensões nem à superfície de nenhum dos planos assim desenhados, mas pode dizer-se igualmente que elas são incluídas por ele [pelo triedro], pois é no exercício desses saberes, mais exatamente no volume definido pelas suas três dimensões, que elas encontram o seu lugar. (FOUCAULT, ©1966, p. 451)
Em suma, situar as Ciências Humanas é extremamente difícil e vago. Na perspectiva foucaultiana elas percorrem todo o triedro, numa procura por uma identidade, tentando formalizar-se ou se matematizar, imitando modelos biológicos, econômicos ou lingüísticos, negando o seu perigoso lugar de intermediário no espaço do saber.
A dificuldade que as Ciências Humanas encontram ao se afirmarem como ciências também está relacionada com uma série de questionamentos que lhes são dirigidos quando assumem os preceitos científicos estabelecidos pelas Ciências Naturais. Entendemos que tal questionamento tem sua validade considerando que os objetos de conhecimento – os das Ciências Naturais e os das Ciências Humanas – são completamente diferentes, o que requer metodologias específicas para cada situação. Tais questionamentos trazem, em si mesmos, um redimensionamento das concepções epistemológicas e metodológicas que até então subsidiaram as Ciências Humanas. É o que discutiremos na próxima sessão.
A Ciência Moderna com seus quatro séculos de desenvolvimento, responsável pelo progresso material atingido pelas sociedades, não se mostrou capaz de exterminar as desigualdades sociais e os sofrimentos humanos delas decorrentes (SANTOS, 1989, 1995). Em muitas situações, no entanto, ela tem funcionado como instrumento de poder, aliada a opressão e coatora das liberdades humanas[6]. Isto é possível na medida em que a produção científica é uma produção social, ela representa um processo social como tantos outros, sujeito às vicissitudes das formas de organização social e aos percalços da influência dos produtores sobre o uso de seus produtos; apesar de seus ideais de neutralidade e objetividade, ideais que refletem a racionalidade do ser humano.
Segundo HAGUETE (1995), as discussões epistemológicas que se desenvolveram durante o Séc. XVIII parecem se situar num campo neutro, onde as preocupações com a objetividade do conhecimento ocupam o maior espaço. Já no Séc. XIX, quando as Ciências Sociais se inauguram, as discussões teóricas acerca da abordagem dos fenômenos se instauram a partir de uma polaridade: de um lado temos o positivismo comtiano e, de outro, a dialética marxista. O primeiro vinculado ao empirismo, enquanto que o segundo, se caracteriza como um desdobramento da dialética hegeliana; esta, bem próxima do racionalismo cartesiano, à medida que defende a primazia da razão sobre os sentidos, embora introduzindo importantes modificações nas concepções sobre o processo de pensamento: as idéias de movimento (história) e de contradição, por exemplo.
A autora ainda nos lembra que, apesar da diferença, ambos, marxismo e positivismo, guardam em comum a herança do Iluminismo que exige o uso da ciência para os fins práticos da humanidade, ou seja, a ciência deve ter aplicações práticas e seus desdobramentos devem ser colocados em benefício do homem (HAGUETE, 1995, p. 16).
Durante o Séc. XX, abriu-se no campo epistemológico das Ciências Humanas – especialmente nas áreas de Sociologia e Antropologia – um espaço de discussão acerca das metodologias de pesquisa, onde se enfatizaram as formas de controle do erro na captação da realidade, partindo sempre do pressuposto de que ela é cognoscível: a idéia central é a de que o real é objetivo – tanto o marxismo como o positivismo concordam com essa tese. Objetivo e contraditório, diz o primeiro; objetivo e não problemático, afirma o segundo.
Segundo HAGUETE (1995), o marxismo, em função do seu forte componente humanista, atraiu cientistas sociais comprometidos com a justiça e a eqüidade social, enquanto o positivismo se adaptava à análise das sociedades opulentas mascarando conflitos e enfatizando o consenso como cimento entre as micro e as macroestruturas sociais. Haguete analisando os desdobramentos analíticos promovidos pela teoria marxista, diz que quando o marxismo expôs a
... crueza dos mecanismos de funcionamento do sistema capitalista, desnudou as imagens “modernizantes” de seu percurso exploratório e miséria, apontando para as determinações inevitáveis da pobreza e da dominação. Ao positivismo restou o apego à quantidade, sempre mais facilmente obtida, e à vigilância epistemológica... (HAGUETE, 1995, p. 17)
Entretanto, cabe salientar que, no âmbito da teoria marxista, nos encontraremos com duas possibilidades: de um lado, Marx, ao situar as causas das desigualdades sociais no movimento expansionista do sistema capitalista mundial, não toma como objeto de análise o indivíduo ou os pequenos grupos – apesar de considerar suas forças como membros de uma classe social.
Por outro lado, há aqueles que consideram que as macroestruturas sejam formadas por microestruturas, o que lhes possibilita evitar o determinismo paralisante daquelas em relação a essas e dar margem ao indivíduo para agir como protagonista da história. Sob tal perspectiva, o olhar dos cientistas sociais valorizará mais a dinâmica da sociedade consubstanciada nos grupos de bairros, nas comunidades, nos sindicatos, nas instituições, enfim, nos locais de convivência e interação sociais (HAGUETE, 1995).
Ambas perspectivas porém, apesar de estarem subsidiadas pelos fundamentos do marxismo, vão-se estruturar a partir de posturas metodológicas diferentes A perspectiva estruturalista que se desdobra do marxismo – cuja ênfase é colocada na dinâmica das relações entre macro e microestruturas – quase sempre se associou a modelos quantitativos de análise, embora se apoiasse com veemência nos dados históricos, específicos e únicos em sua qualidade reconstitutiva do passado, ao passo que a perspectiva microsocial demandou o desenvolvimento do que se denominou, no campo das Ciências Sociais, de metodologias qualitativas. Para HAGUETE (1995):
As chamadas metodologias qualitativas na sociologia são exemplos de reação contra o paradigma estrutural... Há que se considerar que esta reação não representa um repúdio cabal às macroanálises e, sim, o reconhecimento de que a sociedade é constituída por microprocessos que, sem seu conjunto, configuram as estruturas maciças, aparentemente invariantes, aturando e conformando inexoravelmente a ação social e individual. (p. 20
Tal posição, explica Haguete, não significa um posicionamento maniqueísta contra as abordagens quantitativas da realidade social, mas a necessidade do reconhecimento de que a sociedade é uma estrutura que se movimenta mediante a força da ação social individual e grupal.
Acreditamos que tanto as estruturas quanto os microprocessos de ação social devem ser conhecidos, analisados e interpretados, cabendo a cada um a metodologia apropriada, a metodologia que melhor se ajuste ao problema que se deseja investigar. Por outro lado, não podemos nos esquecer que existe um substrato teórico, uma visão de mundo, de como a sociedade funciona, por trás das metodologias aparentemente neutras.
A abordagem multirreferencial, por sua vez, pressupõe uma conjugação das visões acima citadas – tanto em termos epistemológicos como metodológicos - entendendo que ambas são importantes para a compreensão da realidade social, assegurando-nos a sua complexidade[7].
Antes de prosseguirmos na análise de duas perspectivas teóricas que assumem um olhar qualitativo sobre seus objetos – a Etnometodologia (no âmbito da Sociologia) e da Antropologia Interpretativa (no âmbito da Antropologia) – aprofundemos um pouco mais as características das metodologias qualitativas.
As metodologidas qualitativas
A pesquisa qualitativa caracteriza-se pelos enfoques definidos como pesquisa participante, pesquisa ação, pesquisa etnográfica e estudo de caso. De modo geral, pode-se dizer que, do ponto de vista epistemológico, as Ciências Sociais representam o problema filosófico das relações entre o pensamento e a ação da vida social, isto é, põem em questão a própria estrutura da objetividade.
BOGDAN e BIKLEN (1982) sugerem algumas caracterísitcas básicas que orientam a pesquisa qualitativa. Elas subsidiam e representam o suporte prioritário para os procedimentos. São elas:
1 – a pesquisa qualitativa que tem o ambiente natural como fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento, via de regra através de um intensivo trabalho de campo;
2 – os dados coletados que são predominantemente descritivos. Todos os dados da realidade são considerados importantes, incluindo-se as transcrições de entrevistas e de depoimentos, assim como outros tipos de documentos que comunicam informações valiosas para legitimar a investigação;
3 – a preocupação com o processo que é muito maior que com o produto. O interesse do pesquisador está em retratar como um determinado problema se manifesta nas atividades e nas interações cotidianas;
4 – o significado que as pessoas dão às coisas e à sua vida que são o foco de atenção do pesquisador. Nesses estudos há sempre uma tentativa de capturar a maneira como os informantes encaram as questões que estão sendo focalizadas;
5 – a análise dos dados a qual tende a seguir um processo indutivo. Os estudos se consolidam basicamente de baixo para cima, por isso, são dispensáveis hipóteses antecipadas; mesmo assim deve existir um quadro teórico que oriente a coleta de análise de dados.
Em síntese, podemos dizer que a pesquisa de cunho qualitativo envolve a descrição de dados obtidos pelo pesquisador, o que se dá através de seu contato com a situação estudada. Nesse sentido, há uma ênfase mais no processo do que no produto e uma preocupação em retratar a perspectiva dos participantes diante dos fatos que envolvem o contexto social. Considerando que a perspectiva dos informantes constitui-se fenomenologicamente, o interesse do pesquisador estará vinculado aos aspectos subjetivos do comportamento humano e, para concretizar seus interesses investigativos e poder entender que tipo de sentidos estes aspectos dão aos acontecimentos e às interações sociais que ocorrem em sua vida diária[8], ele deverá tomar como objeto de estudo o universo conceitual dos sujeitos
Vejamos agora, o que as abordagens da Etnometodologia e da Antropologia Interpretativa, têm a nos dizer sobre estas questões.
Conforme HAGUETE (1995), o termo etnometodologia foi cunhado por Harold Garfinkel na década de quarenta, quando empreendia um estudo sobre “jurados” na Universidade de Chicago. Durante dois anos ele e Saul Mendlowitz examinaram o material coletado sobre o que os jurados sabiam sobre o que eles estavam fazendo quando executavam seu trabalho de jurados.
Segundo estes pesquisadores, os jurados descreviam suas atividades vinculando-as tanto ao “senso comum” como a elementos advindos da “ciência”, pois eles se preocupavam em descrevê-las “adequadamente” e em prover evidência “adequada” para suas decisões. Ou seja, suas respostas traduziam o desejo de desenvolver um trabalho honesto, inscrito dentro dos limites da lei; no entanto, eles tinham dificuldades para definir o que significava “ser legal’. Assim, os pesquisadores concluíram que as pessoas em estudo se submetiam a uma metodologia peculiar que não se enquadrava nos parâmetros definidos para a ciência convencional.
A partir desta experiência, Garfinkel definiu a etnometodologia como a pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos utilizam para dar sentido às suas ações cotidianas: comunicar-se, tomar decisões, raciocinar etc. e, ao mesmo tempo, realizá-las.
Para os etnometodólogos, a etnometodologia será portanto o estudo dessas atividades cotidianas, quer sejam triviais ou eruditas, considerando que a própria sociologia deve ser considerada como uma atividade prática. (COULON, 1995, p. 30)
HAGUETE (1995) informa-nos que Garfinkel estruturou suas idéias a partir da fenomenologia de Alfred Schutz e Eduard Hurssel, o que o levou a posicionar-se contra a versão durkheimiana que ensina que a realidade objetiva dos fatos sociais é o princípio fundamental da Sociologia. Ao contrário, GARFINKEL (1967), afirma:
A realidade objetiva dos fatos sociais como um contínuo desenrolar das atividades cotidianas, com as maneiras ordinárias e artesanais deste resultado sendo conhecidas, usadas e reconhecidas por seus membros, é para aqueles que fazem da sociologia um fenômeno fundamental. Porque elas são os fenômenos fundamentais da sociologia prática, elas representam o tópico predominante para os estudos etnometológicos. (VIII)
Assim, podemos dizer que a etnometodologia estuda e analisa as atividades cotidianas dos membros de uma comunidade ou organização, procurando descobrir a forma como elas se tornam visíveis, racionais, ou seja, como os indivíduos as consideram válidas, uma vez que a reflexibilidade sobre o fenômeno é uma característica singular da ação.
Os estudos que adotam esta perspectiva procuram detectar quais os etnométodos que subsidiam as atividades cotidianas dos indivíduos, tornando analisáveis as ações práticas, as circunstâncias, o conhecimento baseado no senso comum sobre as estruturas sociais e o raciocínio sociológico prático. Além disso, estes pesquisadores procuram entender as propriedades formais da realidade social a partir “de dentro” dos próprios ambientes.
Em outras palavras, a etnometodologia procura descobrir os “métodos” que as pessoas utilizam na sua vida diária em sociedade a fim de construir a realidade social; procura desvelar também a natureza da realidade que elas constroem. Isto significa dizer que as pessoas na sua vida cotidiana são “teóricos-práticos” criando e modificando sentidos e compreensões das atividades uns dos outros.
Sob essa perspectiva, a linguagem desempenha um papel fundamental no esquema analítico da etnometodologia. Quanto a esse aspecto GARFINKEL (1967) assinala:
Eu uso o termo etnometodologia para me referir à investigação das propriedades racionais das expressões indexicais e outras ações práticas como resultado contingente e contínuo da prática artesanal da vida cotidiana. (p. 11)
Tal posição sugere-nos que a prática da vida cotidiana é interpretada pelos indivíduos, ou seja, as pessoas atribuem sentidos aos objetos circundantes através do processo de interação uns com os outros e consigo próprios, passando a interpretar seu mundo significativo. O conhecimento que os indivíduos adquirem sobre a realidade social e sobre si próprios é um conhecimento do dia-a-dia, cotidiano, que os leva a estabelecer o que é a realidade para eles. Desse modo, o mundo social se torna possível devido a uma densa estrutura coletiva de entendimentos tácitos de atividades mundanas e comuns.
Sob tal orientação, o tornar-se membro de uma sociedade significa que determinada pessoa adotou um conjunto de modos de agir, de métodos, de atividades de savoir-faire, que a fazem capaz de inventar dispositivos de adaptação para dar sentido ao mundo que a cerca. É alguém que, tendo incorporado os etnométodos de um grupo social considerado, exibe “naturalmente” a competência social que o agrega a esse grupo e lhe permite fazer-se reconhecer e aceitar.
Para GARFINKEL (1967), esse – o processo de construção dos etnométodos - seria o verdadeiro objeto da Sociologiia. Tal perspectiva, no entanto, pressupõe que o pesquisador seja uma testemunha do que se dispõe a investigar, pois do contrário seu acesso será apenas aos resíduos da ação dos indivíduos. Este procedimento, segundo COULON (1995) requer a adoção de um certo estado de espírito, em que o pesquisador se deixa penetrar por um certo estranhamento das coisas e acontecimentos que o rodeiam, procedimento que o levaria a ver o mundo às avessas. Tal perspectiva aproxima-se muito da investigação etnográfica desenvolvida no campo da Antropologia[9].
Apesar do avanço dos pressupostos da etnometodologia com relação ao funcionalismo e às metodologias quantitativas, a etnometodologia, na avaliação de HAGUETE (1995), não representa uma área específica de conhecimento dentro da Sociologia, ou uma metodologia, ou uma escola.
No entanto, podemos dizer que ela, ao tentar ver o mundo através dos olhos dos indivíduos e dos sentidos que eles atribuem aos objetos e às ações sociais que desenvolvem, rompe com a visão tradicional de Sociologia, recolocando questões de ordens epistemológicas e metodológicas.
Como veremos ao longo do próximo capítulo, a abordagem multirreferencial fundamenta-se em muitas idéias desenvolvidas pelos etnometodólogos: a noção de indexicabilidade[10]; na importância atribuída aos sentidos que os sujeitos constroem acerca de sua realidade etc.
Como observamos anteriormente, as condições para o surgimento das Ciências Humanas são historicamente construídas a partir da construção do conceito de “homem”, processo este característico da Modernidade. Para FOUCAULT (1966), o ‘homem’ não existia nos séculos XVII e XVIII, e a emergência das Ciências Humanas se dá quando o ‘homem’ se constitui como sujeito e objeto do conhecimento.
Seguindo as perspectivas de Foucault, quando discute a emergência das Ciências Humanas, LAPLANTINE (1988) mostra-nos que o projeto antropológico, elaborado nos finais do séc. XVIII, supunha:
1) a construção de certo número de conceitos, começando pelo conceito de homem; não apenas enquanto sujeito, mas enquanto objeto do saber [introduzindo] a dualidade característica das ciências exatas (sujeito observante e o sujeito observado), 2) a constituição de um saber que não seja apenas reflexão (filosófico) e sim de observação (empírico), o que implica na constituição de uma positividade sobre o conhecimento do homem enquanto ser que vive (biologia), que trabalha (economia), pensa e fala (filologia); 3) a problemática da diferença, que coloca a questão da relação no impensado, os limites do saber, e as relações de sentido e poder; 4) um método de observação e análise - o método indutivo, onde os grupos são considerados como sistemas naturais que devem ser estudados empiricamente, a partir das observações de fatos, a fim de extrair os princípios gerais que hoje chamamos de leis. (p.55)
Em outras palavras, a Antropologia constitui-se como um campo científico na medida em que estabelece seu objeto de estudo; um conjunto de conceitos e teorias; e uma metodologia própria.
Para que o projeto antropológico alcance suas primeiras realizações, para que o novo saber comece a adquirir um início de legitimidade entre outras disciplinas, será necessário esperar a segunda metade do séc. XIX, momento em que à Antropologia se atribuem objetos empíricos autônomos: as sociedades ditas ‘primitivas’, ou seja, exteriores às áreas em que se localizavam as sociedades européias, possibilitando dessa forma – geograficamente – estabelecer-se uma dualidade entre o observador e seu objeto. Esta dualidade, por sua vez, envia-nos à problemática do ‘outro’ - e conseqüentemente à da identidade.
Com uma perspectiva evolutiva da história, os primeiros estudos antropológicos objetivavam – a partir da análise da diversidade cultural, do outro, do diferente – compreender os estágios pelos quais a sociedade européia havia passado, afirmando que o contato dos nativos com a religião, com a moral cristã, com a escrita, com a civilização enfim, tornaria esse ‘diferente’ cada vez mais próximo e semelhante. Assim, o que se verifica nessas análises é a anulação do ‘outro’, do ‘diverso’, enquanto tal [11].
LÉVI-STRAUSS (1987) indica-nos a obra de Rousseau como fundadora da etnologia. O “Discurso sobre a origem e fundamentos das desigualdades entre os homens” de Rousseau, é considerado por ele como o primeiro tratado de etnologia geral, visto que, além de tratar do problema das relações entre a natureza e a cultura, estabelece com clareza o objeto próprio dos etnólogos:
Quando se quer estudar os homens, é preciso olhar perto de si; mas para se estudar o homem, é preciso aprender a dirigir para longe o olhar; para descobrir as propriedades, é preciso primeiro observar as diferenças. (ROUSSEAU apud LÉVI-STRAUSS, 1987, p.43)
Para Lévi-Strauss, tal regra metódica aponta em direção à superação do que pareceria um paradoxo: a possibilidade de o etnólogo estudar os homens distantes e, simultaneamente, o homem particular que lhe parece o mais próximo, ou seja, ele mesmo; por outro lado, sugere que a vontade de identificação com o outro caminha lado a lado com uma recusa da identificação consigo mesmo.
Vemos, portanto, que a questão da alteridade é emergente no trabalho do antropólogo e está sempre presente – nela se funda. A relação entre pesquisador e objeto é compreendida aqui como um encontro intersubjetivo, e o conhecimento é elaborado a partir de uma reflexão que envolve os dois pólos da relação. Isto significa afirmar a impossibilidade do distanciamento, como propõem os pioneiros da Antropologia.
Nesse sentido, ZARUR (1976), estabelecendo uma relação entre objetividade e o envolvimento do antropólogo com o seu objeto de estudo, comenta:
A grande diferença [entre o antropólogo e o sociólogo] é que a objetividade para o antropólogo vem do próprio envolvimento. Novamente somos levados a ver o trabalho de campo trazendo o aspecto distintivo da Antropologia. O deslocamento puramente ideológico da maioria dos sociólogos ... é substituído por um deslocamento concreto e social, o trabalho de campo. A transformação em uma espécie de nativo marginal uma vez que jamais será ele um nativo integralmente, a busca intencional de uma ambigüidade, de uma situação intermediária entre duas culturas, é exatamente o que faz da Antropologia, provavelmente, a mais precisa e objetiva das ciências sociais. O envolvimento do Antropólogo é portanto teoricamente indispensável. E assim, a não neutralidade do antropólogo, neutralidade aqui considerada como afastamento do objeto, é o que traz a precisão e a objetividade da Antropologia. (...) Separar um envolvimento que busque informações de um envolvimento de outro teor é impossível eticamente e só pode culminar em uma péssima antropologia. É uma grande contradição com o próprio método antropológico que não separa ideologia de relações sociais. (p. 4)
O projeto da Antropologia completa-se na medida em que estabelece para si uma metodologia específica, o que também caracterizará o exercício profissional do antropólogo. A legitimação da figura do antropólogo profissional ocorre a partir da legitimação do método para o conhecimento de ‘outras culturas’: a observação participante.
Foi MALINOWSKI (1978) quem sistematizou as regras metodológicas para a pesquisa antropológica: a idéia que caracterizava o método era a de que, apenas através da imersão no cotidiano de uma outra cultura, o antropólogo poderia chegar a compreendê-la. O antropólogo deveria passar por um processo de transformação através do qual ele, idealmente, tornar-se-ia um nativo. No entanto, na medida em que essa experiência não é sistemática, o antropólogo deveria reelaborá-la, transformando-a numa descrição objetiva (científica?) da cultura. O resultado desta “transformação” consiste no texto etnográfico, onde o antropólogo apresenta uma re-elaboração de suas experiências.
Tal re-elaboração, no entanto, deveria ser inspirada numa teoria da cultura específica. Malinowski, por sua vez, inspirou-se no funcionalismo, uma vez que ele concebia as culturas como unidades discretas existentes sob forma unitária e acabada, passíveis de serem observadas e conhecidas desde que olhadas pelos olhos certos: os olhos treinados do antropólogo profissional.
Vale ressaltar que a Antropologia norte-americana (Margaret Mead, Ruth Benedict etc.), de modo diferente dos ingleses - que sustentavam a existência de uma profunda universalidade e de uma equivalência das instituições, por serem respostas a necessidades universais - consideravam que as instituições não passavam de formas vazias cuja universalidade é insignificante, porque cada sociedade as preenche de modo diferente. Ao antropólogo, então, cabia desvelar esta diversidade concreta e, ao invés de voltar-se para a comparação entre culturas, examinar as suas particularidades culturais. Todo etnocentrismo tornar-se-ia, desse modo, desqualificado, emergindo em seu lugar o relativismo cultural, onde cada sociedade possui o direito de desenvolver-se de modo autônomo, inexistindo uma teoria acerca da humanidade que seja dotada de um alcance universal e capaz, portanto, de impor-se diante de uma outra, reivindicando qualquer tipo de superioridade[12].
Tais perspectivas vão ser de fundamental importância para a compreensão do que se passa com o antropólogo durante o trabalho de campo. DAMATTA (1987), ao tecer algumas considerações sobre esse tipo de trabalho, faz uma comparação deste com os “rituais de passagem” estudados por VAN GENNEP (1975) e TURNER (1974), vindo a considerá-lo como tal.
Aqui desejo simplesmente observar que a iniciação na antropologia social pelo chamado trabalho de campo fica muito próxima deste movimento altamente marcado e consciente que caracteriza os rituais de passagem. Realmente, em ambos os casos, antropólogo e noviço são retirados de sua sociedade; tornam-se a seguir invisíveis socialmente, realizando uma viagem para os limites do seu mundo diário e, em pleno isolamento num universo marginal e perigoso, ficam individualizados (...) Finalmente, retornam à sua aldeia e os novos laços sociais tramados na distância e no individualismo de uma vida longe dos parentes, podendo assim triunfalmente assumir novos papéis sociais e posições políticas. (DAMATTA, 1987, p.151 - destaques no original)
Esta experiência – a de sair de um “status” e inserir-se “em outro” – é que vai possibilitar ao antropólogo o encontro com a diversidade, com a diferença, o que implica um encontro entre identidades, marcado, portanto, pela alteridade: seja a pesquisa realizada em um espaço fora do cotidiano do pesquisador - o que implica seu deslocamento - seja em seu próprio meio.
Em vista dessas duas possibilidades, o trabalho do antropólogo consistiria, enfim, em transformar o “exótico” em “familiar” (quando o antropólogo estuda sociedades que não a sua) e o “familiar em exótico” (quando ele estuda sua própria cultura) (DAMATTA, 1987, p.157).
É no universo de pesquisa, portanto, que a questão da alteridade é constantemente recolocada. É o que podemos deduzir das palavras de LÉVI-STRAUSS (1987):
Cada vez que está em seu campo de ação, o etnólogo vê-se abandonado em um mundo onde tudo lhe é estrangeiro, freqüentemente hostil. Não tem senão este eu (...) para permitir-lhe sobreviver e fazer sua pesquisa; mas um eu física e moralmente abatido pela fadiga, fome, desconforto, choque com os hábitos adquiridos, o surgimento de preconceitos dos quais nem sequer suspeitava; e que se descobre a si mesmo (...) Na experiência etnográfica, por conseguinte, o observador coloca-se como seu próprio instrumento de observação. Evidentemente, precisa aprender a conhecer-se, a obter de um si mesmo, que se revela como outro ao eu que o utiliza, uma avaliação que se tornará parte integrante da observação de outras individualidades.” (p.43/44 - destaques no original)
Tal possibilidade, no entanto, toma novas dimensões quando o antropólogo pesquisa sua própria cultura, problematizando-se a questão da relatividade cultural. DAMATTA (1987) assinala que, neste caso, o problema é “tirar a capa de membro de uma classe, e de um grupo social específico para poder - como etnólogo - estranhar alguma regra social familiar e assim descobrir o exótico no que está petrificado dentro de nós.” (DAMATTA, 1987, p.157 - destaques nossos). Isto significa dizer que o antropólogo - quando trabalha em sua própria culturaa - coloca em jogo o seu próprio sistema de classificação que, construído a partir de seu processo de socialização, se reestrutura nas relações que estabelece no fazer antropológico.
Ora, se considerarmos que os indivíduos constroem suas identidades apropriando-se de um sistema de classificação através do qual ele passa a se sentir parte da sociedade em que vive; e, na medida em que o trabalho de campo impõe ao antropólogo - principalmente quando está trabalhando em sua cultura - uma constante reelaboração deste sisteema, podemos considerar que tal experiência requer uma reestruturação, também, da sua identidade.
Os riscos implícitos neste processo de relativização, no entanto, não estão presentes somente para quem estuda os grupos próximos, já que o fato de estudar grupos ou sociedades distantes não “significa que (...) não estejamos sempre classificando e rotulando de acordo com princípios básicos através dos quais fomos e somos socializados.” (VELHO, 1987, p.128, ver também VELHO, 1980)
Se, por um lado, a introdução do trabalho de campo como um método de estudo para a Antropologia possibilita ao pesquisador entrar em contato com seu objeto de estudo, abordá-lo epistemologicamente; por outro, o antropólogo ao escrever sua monografia, deve estabelecer uma distância entre ele e a sua cultura, e a cultura do grupo estudado. Tal distanciamento expressa a forma pela qual os pioneiros da Antropologia enfrentaram a questão da subjetividade, em prol da constituição de parâmetros legitimadores de um conhecimento objetivo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988) – característica fundamental das ciências no início do século.
Esse controle, no entanto, expressa-se nas monografias como uma re-elaboração da experiência de campo, ou seja, as experiências ocorridas no campo deviam submeter-se às regras que circunscrevem o valor científico da disciplina - organização dos dados, fotos, terminologia impessoal etc.[13], o que, enquanto produto científico, descartaria as experiências subjetivas do observador, processo individual do estar ali. Entretanto:
... uma domesticação [da subjetividade, da história e do indivíduo] não é o mesmo que uma pura e simples exclusão. No máximo se trataria de uma exclusão metódica quando, na hipótese de uma difícil domesticação, os elementos seriam submetidos a uma certa ‘epoche’, isto é, seriam postos em colchetes, neutralizados... negar a proeminência da subjetividade, do indivíduo ou da história é ter esses elementos ao menos sob controle. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p.94 - destaques nossos)
No entanto, a presença do antropólogo, tanto no trabalho de campo quanto no texto etnográfico, foi essencial para a constituição do conhecimento antropológico.
Baseando a sua produção de conhecimento na experiência pessoal de uma outra cultura, a antropologia legitimou seus enunciados na fórmula ‘eu estive lá, vi e portanto, posso falar sobre o outro’. (CALDEIRA, 1988, p.134)
Assim, o trabalho do antropólogo - sujeito que experimenta e traduz - prooposto pelos teóricos da disciplina circunscreve uma ambigüidade, pois o pesquisador precisa, ao mesmo tempo, mostrar-se (revelando a experiência pessoal) e esconder-se (garantindo-se a objetividade). Tal ambigüidade marca a presença do antropólogo nos textos etnográficos (CALDEIRA, 1988).
Com a emergência do paradigma hermenêutico no campo da Antropologia - que fundamenta a Antropologia Interpretativa – a questão da objetividade da disciplina é recolocada. Ao considerar que o trabalho do antropólogo é fazer etnografias e que estas são descrições densas que objetivam apreender uma cultura[14]; e ao considerar a etnografia como uma leitura - no sentido de ‘construir uma leitura de’ -, tal perspectiva coloca em pauta a postura do pesquisador no fazer antropológico, a qual se expressa no texto etnográfico, uma vez que
... no estudo da cultura a análise penetra no próprio corpo do objeto, isto é, começamos com as nossas próprias interpretações do que pretendem nossos informantes, ou o que achamos que eles pretendem, e depois passamos a sistematizá-las ... (enfim) os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são ‘algo construído’, ‘algo modelado’. (GEERTZ, 1978, p.25-26 - destaques nossos)
Sob a perspectiva da Antropologia Interpretativa, os pressupostos de cientificidade que a Antropologia tomou emprestado das Ciências Físicas e Naturais são rediscutidos, visto que o produto do trabalho do antropólogo – o texto etnográfico – é visto como o resultado da interação que se estabelece entre o pesquisador e seu objeto de estudo, durante a pesquisa de campo: uma interpretação que se elabora a partir da posição histórica do pesquisador na relação com seu objeto de estudo, ou seja, a posição histórica do pesquisador é considerada como condição de conhecimento.
Como sugere CARDOSO DE OLIVEIRA (1988), a Antropologia Interpretativa abre seu espaço reformulando os elementos que haviam sido, por eles, “domesticados” pela antropologia tradicional, ou seja,
... a subjetividade ... toma sua forma socializada, assumindo-se como inter-subjetividade; o indivíduo ... toma sua forma personalizada, e não teme assumir sua individualidade; e a história ... toma sua forma interiorizada, e se assume como historicidade. (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988, p.97 - destaques no original)
DAMATTA (1978), a partir destes pressupostos considera que, em princípio, a Antropologia é uma ciência da “comutação e da mediação”. Quanto a isso, ele diz que:
Em antropologia é preciso recuperar esse lado extraordinário e estático das relações entre pesquisador/nativo. Se este é o lado menos rotineiro é o mais difícil de ser apanhado da situação antropológica, é certamente porque ele se constitui no aspecto mais humano de nossa rotina. (...) Essa descoberta da Antropologia Social como matéria interpretativa segue, por outro lado, uma tendência ... que parece marcar sua passagem de uma ciência natural da sociedade, como queriam os empiricistas ingleses e americanos, para uma ciência interpretativa, destinada antes de tudo a confrontar subjetividades e tratar delas. (p.11/12)
VELHO (1987), afirmando o caráter aproximativo do conhecimento devido a uma certa ‘dose’ de subjetividade do pesquisador, afirma:
A ‘realidade’ ... sempre é filtrada por determinado ponto de vista do observador, ela é percebida de maneira diferenciada. (...) não estou proclamando a falência do rigor científico no estudo das sociedades, mas a necessidade de percebê-lo enquanto objetividade relativa, mais ou menos ideológico e sempre interpretativo. (p.129)
Estas questões nos sugerem que a construção do objeto em Antropologia implica, simultaneamente, a construção do observador – o antropólogo. Entendemos que tal perspectiva pode ser ampliada para todo o campo de pesquisa que toma o homem como objeto de estudo – incluindo-se aqui aquelas vinculadas ao campo da educação.
Tal possibilidade é assinalada por TEDLOCK (1987) quando caracteriza as Ciências Sociais. Para ele o
... domínio das Ciências Sociais caracteriza-se como um repertório de conhecimento e expectativas ou cultura comum, que foi compartilhado com os participantes e foi criado a partir da interação dos mesmos. (p.184 - destaque nosso)
Tais considerações levam-nos à idéia de que o produto do trabalho de campo – o texto etnográfico – constrói-se a partir da relação entre pesquisador e pesquisado que ali se estabelece. E na medida em que tal relação é um “encontro intersubjetivo”, nela também estão envolvidos aspectos da construção da identidade tanto do antropólogo como de seu objeto de estudo, constituindo-se, portanto, faces de uma mesma moeda.
LAPLANTINE (1988), refletindo sobre tal relação aponta:
... a antropologia ... só começa a adquirir um estatuto científico a partir do momento em que integra, para analisá-lo, esse envolvimento do pesquisador...as voltas com a diferença. (p. 197/198 - destaque nosso)
Tal perspectiva vem afirmar a especificidade da prática antropológica - não mais através de um objeto empírico constituído, mas através de uma abordagem epistemológica constituinte. Ou seja, quando o antropólogo se insere no campo ele só não observa, mas também participa com os seus interlocutores nas várias situações sociais que circunscrevem o universo social que está pesquisando, o que envolve um constante confronto de identidades.
Assim, podemos dizer que o objeto teórico da Antropologia deixa de estar ligado a um espaço cultural ou histórico particular, visto que ela passa a caracterizar-se como uma maneira de olhar o outro e a si mesmo - em relação[15].
Gostaríamos de apontar, neste momento, alguns desdobramentos desta discussão para o campo educacional e, em especial, para a discussão sobre formação.
Sob a perspectiva do racionalismo e do positivismo, não há dúvida de que a formação e, por conseguinte, os processos de ensino e aprendizagem tendem a ajustar-se cada vez mais a uma visão tecnicista, tecnológica e pragmática que invade todos os domínios da atividade humana. Na base, conforme ARDOINO (1971), está uma lógica interativa que se assenta numa concepção de ser humano como ser social que é suceptível de se realizar através do trabalho, da ação ou da prática. Assim, a manifestação dos objetos técnicos (tecnologia) ou conceptuais (prática de analise) ocupam o lugar dos valores primordiais. A mesma lógica seguem a manipulação, a mobilização e o aproveitamento das pessoas e dos gupos, cujo objetivo é a otimização da produtividade e a maximização dos lucros.
No que diz respeito à formação de profissionais da educação, estas perspectivas consolidam-se numa concepção de “racionalidade técnica” muito presente nas organizações escolares. Segundo afirma PÉREZ GOMES (1992):
... trata-se de uma concepção epistemológica da prática herdada do positivismo, que prevaleceu ao longo de todo o século XX, servindo de referência para a educação e a socialização dos profissionais em geral e dos docentes em particular. Segundo o modelo da “racionalidade técnica”, a atividade do profissional é, sobretudo, instrumental, dirigida para a solução de problemas, mediante a aplicação rigorosa de teorias e técnicas científicas”. (p. 98)
Tendo como ponto de partida esta concepção, o profissional em formação – inicial ou continuada –, quando muito adquire um bom instrumental teórico, cuja aplicação se faz somente em situações artificiais, onde as condições complexas são deixadas de lado. A redução da atividade profissional a uma mera racionalidade instrumental obriga o profissional a aceitar a definição externa das metas da sua intervenção. Como conseqüência, há o aumento do planejamento centralizado, isto é, há um corpo de especialistas – geralmente lotado nos orgãos responsáveis pela elaboração e implantação de reformas – com os mais elevados conhecimentos teóricos, que definem as regras e procedimentos a serem executados pelos professores que atuam nas escolas.
Apesar destes pressupostos terem sido amplamente discutidos e questionados nos últimos anos, e a obra de Paulo Freire aqui é um referencial de extrema importância na consecução destas críticas, é ainda tênue o desenvolvimento de práticas e metodologias que assegurem a dialogicidade do processo educativo no âmbito escolar. Como mostram os trabalhos de MIZUKAMI (1986) e DIAS DA SILVA (1992), o modelo tradicional ainda impera na prática escolar cotidiana.
No que diz respeito às pesquisas desenvolvidas no campo da educação, a situação não é diferente. COSTA (1994) aponta que já se percebe, disseminada entre os educadores, a necessidade de rompimento com a tradição empirista de ciência e de adoção de caminhos alternativos de investigação. No entanto, analisando uma série de trabalhos científicos submetidos à seleção para serem apresentados durante um congresso, a autora observa que muitos destes textos, ao buscarem consolidar novas práticas, expressavam tentativas de forçar uma realidade para enquadrar-se em supostos padrões correntes de aceitabilidade, configurando um certo modismo. Para ela, “tal postura, além de ser profundamente discutível sob o ponto de vista epistemológico, é indicativa de conhecimento parcial e/ou superficial da teoria gerando aplicação inadequada da mesma.” (COSTA, 1992, p. 17).
Tomando, por exemplo, os trabalhos que se fundamentaram numa perspectiva marxista, a autora comenta:
... ainda permanece, de forma pouco discreta e quantativamente bem disseminada entre os educadores brasileiros, uma forma de pensar e fazer ciência, em Educação, que nada tem de progressista. São os resquícios da velha ciência tradicional, com vocação formalista, e em contradição com as vertentes hermenêutica, histórica e crítica, cujos padrões epistemológicos têm se mostrado mais adequados à natureza da própria Educação. (COSTA, 1994, p. 18)
Em seguida, a autora conclui:
Apesar de o discurso dominante hoje entre nós ser o discurso progressista e de a metodologia propalada referir-se a posturas alternativas, ou seja, aquelas que rompem com a concepção de ciência como atividade teórica, isenta de valores e preocupada com a busca desinteressada de conhecimentos empíricos, penso que ainda temos um longo caminho a percorrer até que nossa prática corresponda aos nosso discurso. (COSTA, 1994, p. 18)
Considerando as rupturas estabelecidas com relação ao modelo de ciência que se embasa no racionalismo e no positivismo – aqui exemplificada pela Etnometodologia e pela Antropologia Interpretativa – podemos considerar, no que diz respeito à concepção de ciência que sustenta as pesquisas educacionais, que houve uma certa superação das abordagens tradicionais, e que as metodologias que identificamos genericamente como qualitativas têm-se consolidado como uma forma de investigação que possibilita a construção de um arcabouço teórico que contemple a complexidade dos fenômenos educacionais.
Entendemos que, no âmbito das novas concepções de ciência que se vêm desenvolvendo em nosso século, é possível desenvolver pesquisas e consolidar práticas educacionais que, por um lado, desvelem a transitoridade e as irregularidades e, por outro, promovam as rupturas e o esfacelamento dos grandes sistemas de explicação desenvolvidos durante a Modernidade – as metanarrativas, nas palavras de LYOTARD (1993) e de SILVA (1994) – possibilitando a consolidação de práticas que resgatem a particularidade da realidade escolar, e que valorize o conhecimento elaborado a partir de uma postura de implicação por parte do professor e pesquisador.
NOTAS DO CAPÍTULO 1
[1] Entendemos “caos” como o “impensado”, o “incontrolável”, aquilo que tem a capacidade de desbaratar uma situação considerada “normal”.
[2] Mais detalhes sobre o medo ver DELUMEAU (1989), onde estuda a constituição do medo na história do ocidente.
[3] Sobre o encontro com o outro no âmbito do colonialismo, ver TODOROV (1983).
[4] A confiança nas crenças científicas repousa na autonomia do sujeito epistêmico e na eficácia dos procedimentos constitutivos. À medida que esses procedimentos se estabilizam e tece-se com eles uma rotina metodológica, eles tendem a perder a dimensão instrumental, transformando-se em formalismo.
[5] Foucault utiliza a palavra episteme para indicar o conjunto de conhecimentos regulados (concepção do mundo, ciências, filosofias...) próprio de um grupo ou de uma época.
[6] Vamos encontrar na literatura uma série de críticas dirigidas às Ciências Sociais onde é denunciada a conivência de algumas áreas de conhecimento com o colonialismo. Sobre essa questão ver COPANS et al., 1974; LECLERC, 1973; a revista Les Temps Moderns, nºs 293-294 e 299-300.
[7] Tal caracterização será discutida mais detalhadamente no capítulo dois.
[8] Como veremos mais adiante, Ardoino parte destas proposições, porém as incrementa com outros elementos para compor os pressupostos da abordagem multirreferencial.
[9] Veremos, na próxima sessão, quais são suas características.
[10] Este termo é utilizado por etnometodólogos para indicar a incompletude natural de uma palavra, de uma expressão, que só ganham o seu sentido completo no seu contexto de produção,quando são indexadas a uma situação de intercâmbido lingüístico. (COULON, 1995, p. 33)
[11] Para RUBEN (1988) as teorias da identidade da época enfatizavam a não-contradição, a homogeneidade.
[12] No que tange ao relativismo cultural CANCLINI (1983) comenta: "o relativismo cultural naufraga porque se apóia numa concepção atomizada e ingênua do poder: imaginava que cada cultura existe sem saber nada das demais, como se o mundo fosse um vasto museu habitado por economias autosuficientes, cada uma na sua vitrina, imperturbável diante da proximidade das demais, e repetindo invariavelmente os seus códigos, as suas relações internas." (p. 26). Ver também ZALUAR (1994), que apresenta críticas semelhantes.
[13] CLIFFORD (1983) discorre sobre tais convenções assinalando que elas caracterizam os textos enquanto “científicos” e que sustentam a autoridade do antropólogo enquanto “cientista”.
[14] Geertz vai definir o objeto da Antropologia - a cultura - como essencialmente semiótico. “Acreditando como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa, à procura do significado.” (GEERTZ, 1978, p. 15).
[15] Tal afirmação remete-nos para uma relação implicada, mais detalhes no próximo capítulo.
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II – Multirreferencialidade e Complexidade: Uma Abordagem para os Fenômenos Sociais