Abordagem Multirreferencial:
contribuições epistemológicas e metodológicas
para o estudo dos fenômenos educativos

 

II – Multirreferencialidade e Complexidade
uma abordagem para os fenômenos sociais 

Discutiremos ao longo deste capítulo as contribuições da abordagem multirreferencial para a compreensão dos fenômenos sociais e, mais especificamente, dos fenômenos educativos. Esta abordagem, à medida que pretende assegurar a complexidade[1] de tais fenômenos, pressupõe, para a sua compreensão, a conjugação de uma série de abordagens, disciplinas etc. de tal forma que elas não se reduzam umas às outras, levando-nos a um tipo de conhecimento que se diferencia daquele que é concebido sob a ótica do cartesianismo e do positivismo, caracterizando-se, principalmente, pela pluralidade e heterogeneidade.

Nesse sentido, a abordagem multirreferencial pode ser considerada como uma (dentre várias) resposta às críticas que são dirigidas aos modelos científicos estruturados a partir do racionalismo cartesiano e do positivismo comteamo. Como vimos no capítulo anterior, quando as Ciências Humanas se instauraram, buscaram seu reconhecimento e sua legitimidade como ciências apoiando-se em paradigmas então consagrados na Ciências Naturais. Objetividade e neutralidade são almejadas em direção a um conhecimento positivo da realidade humana. O homem torna-se objeto de conhecimento (como nos aponta Foucault). Os fatos sociais são vistos como coisas (como propõe DURKHEIM, 1977).

Buscar nas Ciências Naturais os meios para garantir a legitimidade científica fez com que as Ciências Humanas assumissem os pressupostos daquelas, incorporando uma perspectiva epistemológica e, em conseqüência,  uma perspectiva metodológica, que não lhe é própria, o  que não nos possibilita explicitar os fenômenos humanos em sua profundidade – em sua complexidade.

Além disso, como Foucault nos assinala, o homem,  objeto que se institui como “o objeto” das Ciências Humanas, é abordado sob múltiplos aspectos (inicialmente a partir das disciplinas Economia, Biologia e Filologia, que se desdobraram em várias outras disciplinas como Sociologia, Psicologia, Antropologia, História, enfim,  as diversas disciplinas que têm o humano como objeto principal), o que concorre para o estabelecimento de visões parciais dos fenômenos que implicam esse “objeto”, destituindo-os de seu caráter complexo.

A noção de multirreferencialidade propõe-se, enfim, abordar as questões acima, tendo como perspectiva estabelecer um novo “olhar” sobre o “humano”, mais plural, a partir da conjugação de várias perspectivas teóricas, o que se desdobra em nova perspectiva epistemológica na construção do conhecimento sobre os fenômenos sociais, principalmente os educativos[2].

 

A emergência da noção de multirreferencialidade

A noção, ou melhor, a abordagem multirreferencial foi esboçada inicialmente por Jacques Ardoino, professor da Universidade de Vincennes - Paris VIII, e seu grupo de trabalho. Em vários momentos de sua obra (e em suas conferências), Ardoino assinala que o aparecimento da idéia da abordagem multirreferencial no âmbito das Ciências Humanas e, especialmente da educação, está diretamente relacionada com o reconhecimento da complexidade e da heterogeneidade que caracterizam as práticas sociais.

 

Foi efetivamente, em 1966, especialmente em Communications et Relations Humaines (...), no prefácio à La pedagogie institutionnelle, de Michel Lobrot (...), e na revista Education Nationale (...), de junho de 1967, que foram delineadas as primeiras noções deste procedimento a respeito das situações educativas representadas como complexas. (ARDOINO apud BARBOSA, 1998a, p. 200)

 

Em seus trabalhos iniciais, Ardoino estabelece o que denominou de modelo de inteligibilidade das organizações; suas preocupações o aproximam de outros intelectuais vinculados ao que é conhecido como Movimento de Análise Institucional[3]. Nesse sentido, ele comenta

 

Se existem efetivamente ligações, parentesco, que não é questão de negar (...) entre a abordagem multirreferencial e a análise institucional, é porque essas problemáticas encontravam-se, na época, no “ar” e porque alguns pesquisadores em ciências humanas, cujas formações múltiplas e experiências sociais e políticas respectivas guardavam relações entre si, estavam trabalhando ao mesmo tempo, paralelamente e de acordo, já que se conheciam muito bem e se encontravam freqüentemente. (ARDOINO, 1998, p. 44)

 

Atualmente, na Universidade de Vincennes, Ardoino integra um grupo de analistas institucionais. Segundo ele, o grupo inicial de analistas institucionais que começou os trabalhos nesta linha de pesquisa e intervenção nesta universidade era composto por Michel Lobrot, Georges Lapassade, René Lourau, Remi Hess etc., e por ele mesmo.

Para Ardoino a análise institucional é uma forma de introdução para a análise multirreferencial (ARDOINO, 1998a), visto que ambas têm o mesmo objetivo, qual seja, permitir uma certa explicação - uma elucidação - do não-dito, das entrelinhas, do movimento latente, implícito nas práticas sociais, entre as quais a educação (ARDOINO, 1995). A análise multirreferencial, por sua vez, caracteriza-se como um modelo de inteligibilidade específico, que se tornou conhecido mais tarde por “análise institucional multirreferencial, ou plural.” (ARDOINO, 1998, p. 43).

Cabe salientar que Ardoino, numa das citações precedentes, denomina a abordagem multirreferencial de procedimento, referindo-se ao modelo de inteligibilidade esboçado em 1966. Nesse sentido, podemos dizer que esta abordagem é, inicialmente, uma resposta ao caráter extremamente complexo da prática social e, principalmente, das práticas educativas. Tal complexidade traz para aqueles que estão envolvidos com questões educacionais (professores, pedagogos, psicólogos etc.) uma série de dificuldades de leitura e de compreensão sobre suas próprias práticas, o que se desdobra em dificuldades de tomar decisões (ARDOINO, 1998c).

Se, num primeiro momento, a abordagem multirreferencial se caracteriza como um procedimento, notamos, ao longo dos trabalhos de Ardoino, que suas preocupações se voltaram para as questões epistemológicas implícitas no procedimento proposto. Isto se revela  quando procura esclarecer as origens dos conceitos que utiliza, respaldando-se, para tanto, em vários campos do conhecimento[4], conferindo às suas proposições um refinamento teórico.

A postura epistemológica de Ardoino estrutura-se a partir do reconhecimento do caráter plural dos fenômenos sociais “quer dizer que no lugar de buscar um sistema explicativo unitário ... as ciências humanas necessitam de explicações, ou de olhares, ou de óticas, de perspectivas plurais para dar conta  um  pouco  melhor,  ou  um pouco menos mal, da complexidade dos objetos.” (ARDOINO, 1998d).

Nesse  sentido, a “análise multirreferencial das situações das práticas dos fenômenos e dos fatos educativos se propõe explicitamente uma leitura plural de tais objetos, sob diferentes  ângulos  e  em função de sistemas de referências distintos, os quais não podem reduzir-se uns aos outros. Muito mais que uma posição metodológica, trata-se de uma decisão epistemológica.” (ARDOINO, 1995, p. 7).

Esta  proposta de trabalho é elaborada  num momento muito específico da educação francesa. Resgatando esse momento Ardoino destaca:

 

... [nos anos 60] a educação coloca questões de reificação efetivamente, o peso de um aparelho educativo do serviço público, de um aparelho ideológico de estado para falar na linguagem de Althusser, faz que não haja mais elasticidade, não haja mais flexibilidade. Note bem, trinta e cinco anos depois o atual ministro da educação definiu o sistema educativo francês como um “mamute”, que tem que emagrecer. Isto quer dizer que aí há uma forma de monstro pré-histórico, e isso quer dizer também que não houve muito progresso [durante todos esses anos]. Na época, 1965, isso já era visível e a complexidade emergia ... no prolongamento de inovações cibernéticas, tecnológicas. Eu acho que são esses os fatores que vão nos conduzir ... ao reconhecimento do plural. (ARDOINO, 1998d)

 

Quanto ao domínio científico daquele momento ele avalia que existia e ainda existe

 

... uma idéia de pureza, da unidade, que encontra a idéia de homogeneidade. Então a multirreferencialidade é antes de tudo o reconhecimento do valor do plural [da pluralidade]. Quer dizer que esse plural vale pelo menos tanto quanto a unidade. Eu creio que isso já era verdade em 1965 ao nível das práticas, mas é tanto verdade também hoje, em 1998, e provavelmente porque se vê melhor o movimento de globalização que busca incansavelmente esta homogeneização. (ARDOINO, 1998d)

 

Temos a partir desta posição de Ardoino, uma nova perspectiva para a compreensão dos fenômenos educativos: a da pluralidade e da heterogeneidade.

Com apontamos em outro lugar (MARTINS, 1999), nosso sistema educacional – apesar das novas experiências e iniciativas, ainda aborda o processo educacional como aquele que deve oferecer um conjunto de experiências que assegure uma espécie de unidade, tendo em vista a “formação integral do educando”.

Esta forma de abordar o processo, no entanto, traz implícita uma noção de identidade, o que nos remete para a mesmice, para o igual – o que revela uma repetição do mesmo. Repetição que se distende sob duas perspectivas: a primeira diz respeito ao cumprimento das expectativas que professores e estudantes estruturam entre si (AQUINO, 1996); a segunda refere-se ao próprio processo de aprendizagem, cujo desdobramento se revela nas “eternas repetições do conteúdo aprendido” realizadas pelos alunos durante sua vida escolar. Tais perspectivas, no entanto, modificam-se na medida em que considerarmos os espaços educativos em sua complexidade. A introdução desta noção no âmbito educacional redimensiona-o, trazendo novas perspectivas para a pesquisa dos fenômenos que ali se estabelecem. É o que veremos a seguir.

 

A noção de complexidade

Como assinalamos anteriormente, a noção de multirreferencialidade está estreitamente relacionada com a noção de complexidade. Ardoino, toma esta noção sob o sentido que Edgar Morin lhe confere.

MORA (1971), em seu Dicionário de Filosofia, nos ensina:

 

Complexo é, em geral um conjunto de objetos determinados por caracteres comuns. O complexo eqüivale neste sentido a classe, totalidade, estrutura ou conjunto; a ele se atribui habitualmente um sistema de relações internas que o converte em um todo fechado e autônomo e que permitem falar de complexo físico, psicológico, sociológico, causal, de sentido,  etc. (p. 311)

 

Esta definição remete-nos para a idéia de que a soma das partes é igual ao todo fechado. Este todo, por sua vez, é possível de ser decomposto em partes cada vez mais simples, isto é, esta definição contempla a possibilidade de uma redução. Cabe assinalar que a compreensão de Morin sobre o complexo difere completamente da de Mora.

Morin, ao referir-se ao complexo, nos assinala que a utilização de tal palavra revela uma dificuldade para explicar. “Designamos algo que, não podendo realmente explicar, vamos chamar de ‘complexo’. Por isso que existe um pensamento complexo, este não será um pensamento capaz de abrir todas as portas (...) mas um pensamento onde estará sempre presente a dificuldade.” (MORIN, 1996, p. 274).

O termo complexidade traz em seu cerne confusão, incerteza e desordem. Para Morin, ele expressa “nossa confusão, nossa incapacidade para definir de maneira simples, para nomear de maneira clara, para por ordem em nossas idéias.” (MORIN, 1996a, p.21). Conforme suas palavras, o pensamento complexo é visto como uma

 

... viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a multidimensionalidade[5], a riqueza, o mistério do real, e de saber que as determinações - cerebral, cultural, social, histórica - que se impõem a todo o pensamento codeterminam sempre o objeto de conhecimento. É isso que eu designo por pensamento complexo. (MORIN apud PETRAGLIA, 1995, p. 46)

 

Tal posição é claramente distinta da perspectiva epistemológica do conhecimento científico tradicional (cartesiano, positivo  etc.), pois este último “foi concebido durante muito  tempo,  e  ainda  é  freqüentemente,  como  tendo  por  missão  dissipar  a  aparente complexidade dos fenômenos, com o intuito de revelar a ordem simples a que obedecem.” (MORIN, 1996a, p.21)

A necessidade do pensamento complexo se impõe, portanto, quando o pensamento simplificador encontra seus limites, suas insuficiências, suas carências. No entanto, cabe ressaltar que a complexidade não elimina a simplicidade.

 

... a complexidade aparece ali onde o pensamento simplificador falha, mas integra em si mesma tudo aquilo que põe ordem, claridade, distinção, precisão no conhecimento. Enquanto o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o pensamento complexo integra o mais possível os modos simplificadores de pensar, mas recusa as conseqüências mutilantes, reducionistas, unidimensionalizantes e finalmente ocultadoras  de uma simplificação... (MORIN, 1996a, p.22)

 

Morin, em seu livro “Ciência com consciência”, faz uma crítica à ciência, indicando sua responsabilidade e seu papel na sociedade. Considerando a complexidade que permeia nossa realidade, propõe uma comunicação entre as ciências, o que possibilitaria tanto a compreensão da complexidade da realidade, quanto a compreensão da realidade da complexidade.

Nesse mesmo livro, ele estabelece alguns “mandamentos da complexidade”, os quais subsidiam o que ele chama de “paradigma de complexidade”. Tal paradigma distingue-se do “paradigma de simplificação”. Ele nos esclarece:

 

Chamo de paradigma de simplificação ao conjunto de princípios que comanda/controlam a inteligibilidade próprios da cientificidade clássica, e que, ligados uns aos outros, produzem uma concepção simplificadora do universo (físico, biológico, antropossocial) Chamo paradigma de complexidade, ao conjunto dos princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as condições de uma visão complexa do universo (físico, biológico, antropossocial). (MORIN, s/d, p. 330 – destaques no original)

 

Entre os princípios que sustentam a inteligibilidade da Ciência Clássica identificados por Morin, destacamos[6]:

-         o princípio da universalidade, onde só há ciência do geral, desconsiderando-se o que é local e o que é singular;

-         eliminação da irreversibilidade temporal, do eventual e do histórico;

-         redução do conhecimento dos conjuntos ou sistemas ao conhecimento das partes simples ou unidades elementares que os constituem;

-         redução do conhecimento das organizações aos princípios da ordem (leis, invariâncias, constâncias etc.);

-         a inteligibilidade de um fenômeno ou objeto complexo reduz-se ao conhecimento das leis gerais e necessárias que governariam as unidades elementares;

-         separação entre objeto e sujeito que o percebe/concebe, o que implica a objetividade, alcançada pela experimentação, do conhecimento e na exclusão do sujeito conhecente;

-         eliminação de toda problemática do sujeito na construção do conhecimento científico;

-         confiabilidade na lógica para o estabelecimento da verdade intrínseca das teorias: as contradições são consideradas como erros;

-         as idéias devem ser claras e distintas num discurso monológico.

 

Para  a  formulação  da hipótese de um paradigma de complexidade, Morin aponta os seguintes princípios, que devem ser abordados conjuntamente:

 

“1. Validade, mas insuficiência do princípio da universalidade. Princípio complementar e inseparável da inteligibilidade a partir do local e do singular.

2. Princípio de reconhecimento e de integração da irreversibilidade do tempo na física (segundo princípio da termodinâmica, termodinâmica dos fenômenos irreversíveis), na biologia (ontogênese, filogênese, evolução) e em toda problemática organizacional (“só se pode compreender um sistema complexo referindo à sua história e ao seu percurso” – Prigogine) Necessidade inelutável de fazer intervirem a história e o acontecimento em todas as descrições e explicações.

3. Reconhecimento da impossibilidade de isolar unidades elementares simples na base do universo físico. Princípio que une a necessidade de ligar o conhecimento dos elementos ou partes ao dos conjuntos ou sistemas que elas constituem. (...)

4. Princípio da incontornabilidade da problemática da organização e ... da auto-organização.

5. Princípio de causalidade complexa comportando causalidade mútua inter-relacionada (...), inter-retroações, atrasos, interferências, sinergias, desvios, reorientações. Princípio da endo-exocausalidade para os fenômenos de auto-organização.

6. Princípios de consideração dos fenômenos segundo uma dialógica. Integração, por conseguinte, não só da problemática da organização, mas também dos acontecimentos aleatórios na busca da inteligibilidade.

7. Princípio de distinção, mas não de separação, entre o objeto ou o ser e seu ambiente. O conhecimento de toda organização física exige o conhecimento de suas interações com seu ambiente. O conhecimento de toda organização biológica exige o conhecimento de suas interações com seu ecossistema.

8. Princípio de relação entre observador/concebedor e o objeto observado/concebido. Princípio de introdução do dispositivo de observação ou de experimentação – aparelho, recorte, grade – (...) e, por isso, do observador/concebedor em toda observação ou experimentação física. Necessidade de introduzir o sujeito humano – situado e datado cultural, sociológica, historicamente -  em estudo antropológico ou sociológico.

9. Possibilidade e necessidade de uma teoria científica do sujeito.

10. Possibilidade, a partir de uma teoria da autoprodução e da auto-oganização, de introduzir e de reconhecer física e biologicamente (e sobretudo antropologicamente) as categorias do ser e da existência.

11. Possibilidade, a partir de uma teoria da autoproduação e da auto-organização, de reconhecer cientificamente a noção de autonomia.

12. Problemática das limitações da lógica. Reconhecimento dos limites da demonstração lógica nos sistemas formais complexos (...) Consideração eventual das contradições ou aporias impostas pela observação/experimentação como indícios de domínio desconhecido ou profundo da realidade (...) Princípio discursivo complexo, comportando a associação de noções complementares, concorrentes e antagônicas.

13. Há que pensar de maneira dialógica e por macroconceitos, ligando de maneira complementar noções eventualmente antagônicas.” (MORIN, s/d, p. 332-334)

 

Cabe ressaltar que, para Morin, o paradigma da complexidade não “produz” nem determina a inteligibilidade: “ele pode incitar a estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão estudada” (MORIN, s/d, p. 334). Ou seja, para Morin, assim como para ARDOINO (1998c), a complexidade não está no objeto, mas no olhar de que o pesquisador se utiliza para estudar seu objeto, na maneira como ele aborda os fenômenos.

Sob a perspectiva da complexidade, a educação é entendida, no âmbito da abordagem multirreferencial, ”como uma função global, que atravessa o conjunto dos campos das ciências do homem e da sociedade, interessando tanto ao psicólogo como ao psicólogo social, ao economista, ao sociólogo, ao filósofo ou ao historiador etc., etc.” (ARDOINO, 1995, p. 7). À medida que os fenômenos educativos são apreendidos enquanto complexidade, torna-se necessário uma abordagem que atente para essas várias perspectivas, reconhecendo suas recorrências e contradições, de tal forma que elas não se reduzam umas às outras.

Entretanto, uma abordagem tradicional – aquela cujos pressupostos vinculam-se ao racionalismo cartesiano ou ao positivismo – tem como perspectiva “recortar” o real, decompô-lo em elementos cada vez mais simples, cada vez mais fundamentais, cuja combinação resulta igualmente nas propriedades do conjunto, ou seja, o todo corresponde à soma de suas partes, e vice-versa.

Esta última postura pressupõe, para Ardoino, que os fenômenos educativos são susceptíveis de transparência. Por transparência ele entende

 

...algo mais que só aquilo que pode ser atravessado pelo olhar, abarcado, totalmente descrito, definido ou inspecionado segundo o sentido corrente, e incluir o que pode ser construído efetivamente, fisicamente, segundo a necessidade, mas ainda descontruído (decomposto) e reconstruído, idêntico, com todas suas propriedades, pelo espírito conhecedor. (ARDOINO, 1995, p. 8)

 

Para Ardoino, este tipo de abordagem é possível quando se trata de fenômenos químicos, ou físicos, até mesmo matemáticos, mas “não há coincidência possível entre essa visão das coisas e o fenômeno vivo ou, mais especificamente ainda, humano e social. Nesse sentido, nenhuma redução é legítima.” (ARDOINO, 1995, p. 8).

Atribuir a um objeto a característica de complexo significa, em princípio, que nós estamos nos defrontando com um problema lógico, e este problema aparece quando a lógica dedutiva se mostra insuficiente para dar uma prova num sistema de pensamento, o que faz com que apareçam contradições insuperáveis.

Visto que o ser humano se caracteriza por uma multideterminação de fatores: sociais, econômicos, políticos, psíquicos etc., o que o localiza na ordem do complexo, as abordagens que se inspiraram no cartesianismo ou mesmo no positivismo, buscando na redução a compreensão para os fenômenos humanos, se confrontam constantemente com os limites que estas posturas epistemológicas lhes impõem, acabando por produzir um conhecimento fragmentado e superficial.

Nesse sentido, tomando a educação em sua complexidade, bem como as ciências que fazem dela seu objeto, Ardoino, assinala:

 

Apesar das tentativas para “calcá-las” mais ou menos sobre o padrão das ciências exatas, já não podemos nos contentar atualmente com uma aproximação somente “positivista” no marco das ciências antropossociais, no seio das quais se situam, incontestavelmente, diferentes olhares que pretendem dar conta cientificamente dos fenômenos que interessam à educação e às práticas que põem esta em ação. (ARDOINO, 1995, p. 8)

 

Com a noção de complexidade desenvolvida por Morin, Ardoino quer chamar a atenção para a necessidade de um “luto da ambição simplificadora”, bem marcada pela ciência de inspiração cartesiana - dividir a dificuldade. “Reconhecer a complexidade como fundamental em um âmbito de conhecimento dado é então, por sua vez, postular o caráter ‘molar’, holístico da realidade estudada e a impossibilidade de sua redução por recorte, por decomposição em elementos mais simples.” (ARDOINO, 1995, p. 8).

A noção de complexidade e os princípios propostos por Morin na elaboração do paradigma de complexidade trazem para o campo de educação contribuições importantes à medida que, a partir deles, abre-se a possibilidade de ter um conhecimento mais amplo da realidade. Vejamos algumas dessas possibilidades.

No que diz respeito aos pressupostos que estruturam currículo escolar, por exemplo, Morin assinala:

 

As crianças aprendem a história, a geografia, a química e a física dentro de categorias isoladas, sem saber, ao mesmo tempo, que a história sempre se situa dentro de espaços geográficos e que cada paisagem geográfica é fruto de uma história terrestre. (...) As crianças aprendem a conhecer os objetos isolando-os, quando seria preciso também recolocá-los em seu meio ambiente para melhor conhecê-lo, sabendo que todo ser vivo só pode ser conhecido na sua relação com o meio que o cerca, onde vai buscar energia e organização. (MORIN apud PETRAGLIA, 1995, p. 69)

 

Tal assinalamento acerca do currículo nos indica que sua operacionalização não oferece aos alunos uma visão mais ampla da realidade física e/ou social, não há uma comunicação entre os saberes, ou seja, as disciplinas que compõem o currículo bem como seus programas/conteúdos não se integram ou se complementam, dificultando aos alunos uma abordagem da realidade mais ampla, mais relativizada, assim como as possíveis interfaces que podem ser estabelecidas entre os vários campos do conhecimento.

O mesmo pode ser dito quando analisamos o conjunto de disciplinas que tomam os fenômenos educacionais como objeto de estudo. Observamos que há certa dificuldade na sua articulação, o que aprofunda ainda mais as distâncias que existem entre elas.

A perspectiva multirreferencial, à medida que postula que o conhecimento sobre os fenômenos educativos – considerando a complexidade destes últimos – deve ser construído através da conjugação e aproximações de diversas disciplinas, inscreve-se num universo dialético e dialetizante, onde o pensamento e o conseqüente conhecimento são concebidos em contínuo movimento, num constante ir e vir, o que possibilitará a criação e, com ela, a própria construção do conhecimento.

Reconhecer a necessidade de um olhar múltiplo para a compreensão dos fenômenos educativos implica um rompimento com o pensamento linear, unitário e reducionista característico do “paradigma de simplicidade” descrito anteriormente, e privilegiar o heterogêneo, como ponto de partida para a construção do conhecimento.

 

Heterogeneidade e Conhecimento

Quando Morin desenvolve as hipóteses para estabelecer o paradigma de complexidade, ele assinala a necessidade de uma conjugação entre noções complementares, concorrentes e antagônicas (item 12 e 13 da ultima citação da sessão anterior); ele coloca como imprescindível a necessidade de estruturarmos o conhecimento científico a partir de vários pontos de vistas de tal forma que ele comporte suas diferenças e contradições.

Vamos encontrar este mesmo princípio na proposta de Ardoino quanto à caracterização da abordagem multirreferencial, já que,  como assinalamos anteriormente, ele toma a pluralidade como ponto de partida para estabelecer os elementos que subsidiam tal abordagem: ela traz em si mesma a marca da heterogeneidade como o eixo principal na construção do conhecimento.

No âmbito dessa abordagem, a heterogeneidade deve ser entendida a partir de duas perspectivas. A primeira está relacionada à conjugação de diversas disciplinas para o processo de elucidação dos fenômenos humanos, o que vai circunscrever o modelo de inteligibilidade citado anteriormente.

Podemos dizer que o trabalho do pesquisador, nesta perspectiva, aproxima-se ao do “bricoleur”, como propõe LAPASSADE (1998). Essa idéia elaborada por Lapassade inspirou-se nas considerações tecidas por Lévi-Strauss quando discutiu as características do trabalho científico. Apesar de esse último autor não estar preocupado com a questão da complexidade dos fenômenos sociais, ele reconhece as dificuldades enfrentadas pelo pesquisador  no desvelamento da realidade, em vista dos limites teóricos que ele enfrenta. Tal dificuldade leva o pesquisador a “negociar” com a realidade, buscando “pedaços de teorias heterogêneas”, estabelecendo um conhecimento plural da realidade[7].

ARDOINO (1998d) aponta, no entanto,  que o problema que a análise multirreferencial se coloca é o utilizar várias linguagens para a compreensão dos fenômenos sem misturá-las, sem reduzi-las umas às outras – o conhecimento produzido por esta postura seria, portanto, um conhecimento “bricolado”, “tecido”  etc. Nesse sentido, Ardoino assinala que a compreensão da realidade  se efetiva apelando

 

...à sistemas de referências, a grades de leitura diferentes (psicológica, psicossociais, sociológicas) ... O trabalho de análise consiste menos em tentar homogeneizá-las, ao preço de uma redução inevitável, que em procurar articulá-las, se não as conjugar. (ARDOINO, 1995, p. 7-8)

 

Tal forma de abordar os fenômenos, traz implícita a idéia de complexidade desenvolvida por Morin. Conforme afirma este autor:

 

A visão não complexa das ciências humanas, das ciências sociais, implica pensar que existe uma realidade econômica, por um lado, uma realidade psicológica, por outro, uma realidade demográfica, mais além, etc. Acreditamos que essas categorias criadas pelas universidades são realidades, mas esquecemos que, no econômico, por exemplo, estão as necessidades e os desejos humanos. Por trás do dinheiro, existe todo um mundo de paixões (...) A consciência da complexidade nos faz compreender que não poderemos escapar jamais à incerteza e que jamais poderemos ter um sabet total: “a totalidade é a não verdade”. (MORIN, 1996a, p. 100-101)

 

Ardoino articula-se, portanto, com o pensamento de Morin, a partir da idéia de “complexidade”, senão de “hipercomplexidade” (ARDOINO, 1998e, p. 24) e da crença de que a barbárie dos tempos modernos, como a barbárie de todos os tempos, está no pensamento simplificante (ARDOINO, 1998c, 1995).

Cabe ressaltar, no entanto, que a análise multirreferencial não tem como pretensão “esgotar” seu objeto de estudo. Analisar, neste contexto, não se define mais através de sua capacidade de recortar, de decompor, de dividir-reduzir em elementos mais simples, mas através de suas propriedades de “compreensão”, de “acompanhamento” dos fenômenos vivos e dinâmicos (ARDOINO, 1995, p. 9).

Além disso, a abordagem multirreferencial - à medida que não se caracteriza como um movimento de decomposição ou redução de seus objetos - aceita a opacidade própria dos fenômenos humanos (o que pressupõe, conseqüentemente, o reconhecimento de sua complexidade).

 

A segunda perspectiva que gostaríamos de assinalar com relação ao papel da heterogeneidade na compreensão dos fenômenos humanos diz respeito à questão da relação entre sujeito e objeto.

Como apontamos anteriormente, a ciência que se desenvolveu durante a Modernidade tem como pressuposto a manutenção de um distanciamento entre os termos dessa relação, de tal forma que, se assim fosse, se asseguraria a objetividade e a neutralidade do conhecimento.

CALDEIRA (1988) assinala que as ciências, desde o século XVIII, se caracterizam como tais na medida em que o analista e/ou o pesquisador procuram estar ausentes da análise e da exposição dos dados, como  meio de garantir uma posição neutra e objetiva, legitimadora da cientificidade.

Como assinalamos anteriormente, a relação entre sujeito e objeto – apoiada nos pressupostos das Ciências Físicas e Naturais – implica numa “domesticação da subjetividade do sujeito...” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1988). No entanto, esse tipo de posição assumida pelas Ciências Humanas, traz, em si mesma, uma contradição.

Esta contradição está presente, por exemplo, no trabalho do antropólogo. Como tivemos a oportunidade de demonstrar no capítulo anterior, quando discutimos as rupturas engendradas pela Antropologia Interpretativa no âmbito da Antropologia, o trabalho deste profissional pretende, de uma maneira objetiva (científica, diriam alguns), fazer a ponte entre dois mundos culturais, revelando para um deles uma outra realidade que só o antropólogo, este sujeito que experimenta e traduz, conhece. Nesse sentido, a presença do antropólogo em seu trabalho final – a etnografia – expressa uma ambigüidade, uma vez que ele precisa, ao mesmo tempo, mostrar-se (revelando a experiência pessoal) e esconder-se (garantindo a objetividade de seu texto).

Historicamente, conforme CALDEIRA (1988), a objetividade do conhecimento antropológico (o que poderíamos generalizar para a maioria das ciências que têm o homem como objeto de estudo), estruturou-se pelo estabelecimento e legitimação do pesquisador profissional – o antropólogo, e pela escolha de um método de pesquisa – no caso da Antropologia a observação participante. No entanto, a experiência de campo do pesquisador, necessária para a construção do conhecimento, deve ser “lapidada”, re-elaborada, de tal forma que o produto final – a etnografia – expresse neutralidade e objetividade. Para tanto, o antropólogo deve retirar-se de seu texto, substituindo-se por uma terceira pessoa coletiva – o nós; para comprovar sua presença no campo, seu texto deve ser acompanhado por fotos, mapas, desenhos etc.

Caldeira, analisando os efeitos desta modalidade de antropologia, ressalta:

 

O que era uma experiência de campo fragmentada e diversa acaba sendo retratado como um todo coerente e integrado. O que era um processo de comunicação, de trocas, de negociação entre antropólogo e seus informantes, vira autônomo... O que era diálogo, vira um monólogo encenado pelo antropólogo, voz única que subsume todas as outras e sua diversidade `a sua própria elaboração. O que era interação, vira descrição. (CALDEIRA, 1988, p. 138)

 

 A abordagem multirreferencial retoma esta discussão assumindo que o conhecimento se realiza exatamente ali onde a ciência cartesiana e positivista não o reconhece: na relação mesma entre sujeito e objeto – na relação intersubjetiva (conforme propõe Cardoso de Oliveira para a Antropologia). Isto significa dizer que no lugar de ter um objeto que se quer objetivo, nós iremos, na verdade, ter um objeto que é ao mesmo tempo sujeito (ARDOINO, 1998d).

Nesse sentido, Ardoino, para explicitar melhor suas idéias, afirma que, no âmbito da pesquisa, os seres vivos, especialmente os humanos, quando submetidos a quaisquer que sejam os determinismos (econômicos, sociais, culturais etc.) que condicionam e podem explicar seus modos de funcionamento, têm em si um poder de negação, de contra-estratégia que lhes dá, ao menos em parte, a inteligência destes determinismos e uma certa capacidade de reagir e de adaptar-se, senão de transformá-los. Ardoino denomina esta capacidade de negatricidade[8], o que significa o reconhecimento de uma certa opacidade própria dos objetos que estão sob investigação. Isto quer dizer que o homem - tanto individual como coletivo - não é indiferente às produções de saber que lhe concernem e reagirá diante delas, interferirá constantemente com os dispositivos de análise e de investigação que lhe serão aplicados, perturbando seu funcionamento[9].

Além disso, do ponto de vista do pesquisador, Ardoino considera que, além de ele não dominar (no sentido de controle) seu objeto (em função da negatricidade que lhe é inerente), ele está implicado com (n)ele. A implicação é entendida aqui como

 

... engajamento pessoal e coletivo do pesquisador em e por sua práxis científica, em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passadas e atual  nas relações  de  produção e de classe, e de seu projeto sócio-político em ato, de tal modo que o investimento que resulte inevitavelmente de tudo isso seja parte integrante e dinâmica de toda atividade de conhecimento. (BARBIER, 1985, p. 120)

 

A idéia de implicação nos sugere que o processo de construção de conhecimento não se efetiva sob a égide exclusiva de uma determinada racionalidade. Pelo contrário, o conhecer se estabelece a partir de outros vários planos: das motivações mais profundas do pesquisador (inconscientes?), de seus desejos, de suas projeções pessoais, das suas identificações, de sua trajetória pessoal  etc. Nesse sentido, podemos dizer que a relação entre sujeito e objeto propicia tanto o desvelamento do objeto como o desvelamento do sujeito.

Com a idéia de implicação assume-se que o conhecimento produzido no âmbito da abordagem multirreferencial é da ordem da intersubjetividade, o que significa reconhecer que a produção de conhecimento implica um processo de “negociação” entre as múltiplas referências que compõem o conjunto das representações de cada indivíduo envolvido no processo, ou seja, o conhecimento se produz a partir da heterogeneidade implícita nas relações que se estabelecem no campo da pesquisa.

Em outro lugar (MARTINS, 1995)[10], tivemos a oportunidade de assinalar as vicissitudes inerentes à relação entre sujeito e objeto. Neste trabalho apontamos para a necessidade de reconhecermos a imprevisibilidade que esta relação traz  em si mesma, já que tanto o “outro”, que foi tomado como objeto, como o pesquisador, estiveram submetidos a uma situação de “alteração”[11], vindo a se influenciarem mutuamente.

Tal situação, principalmente no que tange ao papel do pesquisador, tornou  possível a emergência de alguns questionamento de ordem pessoal que lhe possibilitaram redimensionar seu próprio projeto de pesquisa, levando-o ao reconhecimento de suas implicações ao longo da pesquisa.

As situações experienciadas no campo foram tão intensas – do ponto de vista psicológico e sociológico – que não foi possível manter a “clássica” relação entre sujeito e objeto (aquela prevista nos livros e manuais), levando o pesquisador a estabelecer uma relação sincrética com os seus “informantes”.

O trabalho – a  dissertação em si – foi-se dando à medida que se foram esclarecendo as implicações inerentes às relações que se estabeleceram durante o trabalho de campo – o que podemos chamar de “perlaboração” [12].

Queremos dizer com isso que a relação entre sujeito e objeto, entendida como um encontro intersubjetivo, requer o reconhecimento de dimensões que não estão relacionadas nem com os aspectos teóricos, nem com os aspectos metodológicos, que utilizamos quando da realização de nossas pesquisas. Tais dimensões  estão circunscritas pela ordem do psíquico, do desejo, da vontade, que implicam afetos nem sempre “dizíveis” em nosso cotidiano acadêmico, mas que emergem durante a construção do conhecimento.

Muitas vezes as informações provenientes deste tipo de experiência são registradas em nossas anotações, em nossos cadernos de campo, e “lapidados” e “re-elaborados” sob o prisma da razão[13].

Numa perspectiva psicológica, podemos dizer que a heterogeneidade intrínseca na relação  entre sujeito   e   objeto se   caracteriza   como processo  de   alteração,   já que ela é circunscrita por um jogo de influências mútuas. Ardoino prefere utilizar o termo alteração no lugar de alteridade, pois para ele

 

...a alteridade, como o sufixo dade em português, representa uma essência, uma idéia, quer dizer algo puramente estático, uma qualidade, uma propriedade. Dito de outra forma, uma alteridade é a idéia do outro. A alteração, como o sufixo ão em português indica, é a ação do outro, é dinâmico, é interativo. (ARDOINO, 1998d)

 

A interação (alteração) desencadeia “jogos próprios das vontades, dos desejos, da angústia, das manifestações de uma vida inconsciente, de um funcionamento imaginário...” (ARDOINO, 1995a, p. 19), que suscitam tantas estratégias, resistências, ambivalências, opacidades: expressões de uma negatricidade que permanecem ininteligíveis para um aparato racional. Tal situação, em função de sua complexidade, geralmente, nos levam para os caminhos das incertezas e do inacabamento, condições impensáveis na ótica de uma epistemologia tradicional - cartesiana, positivista.

 

A abordagem multirreferencial, enfim, nos abre a possibilidade de traçar um novo caminho no processo de elucidação dos fenômenos sociais, rompendo com a posição epistemológica desenvolvida ao longo da Modernidade[14]. Podemos dizer que este rompimento restaura o espaço de sentido de cada participante da relação e nos permite pensar esse espaço restaurado como circunscrevendo o discurso de um sujeito falante - tanto para aquele que se diz pesquisador como para aquele que é olhado como objeto - libertando o  homem da sua condição de objeto.

 

Abordagem Multirreferencial como escuta clínica

Assinalamos na sessão anterior que a análise que se desenvolve no âmbito da abordagem multirreferencial se define por suas propriedades de compreensão, de acompanhamento dos fenômenos colocados sob análise. Tal afirmação nos remete para uma postura diferente da adotada pelo pesquisador que subsidia sua prática num modelo cartesiano ou positivista, aproximando-se de uma postura caracterizada como clínica.

Tradicionalmente  o  termo  clínico,   seja   ele   empregado como substantivo seja como adjetivo, indica ou um tipo de prática, de experiência, de formação, ou um estabelecimento onde as pessoas procuram um tratamento para suas doenças: clínica psicológica, clínica médica  etc.

No âmbito da medicina, este termo nos remete para o trabalho do médico junto a seu paciente, o que traz implícita a idéia de uma certa evolução favorável da doença que o paciente apresenta, em função da atenção que ele recebe. Nesse sentido, entende-se que há uma certa relação entre o conceito de clínico e a noção de mudança.

No entanto, ARDOINO (1990) alerta-nos que as expectativas implícitas nestas mudanças estão relacionadas com um retorno a uma norma e a ação do médico será reparatória, pressupondo-se o reestabelecimento de um estado considerado “normal”.

Para ARDOINO (1990) o sentido original do termo clínico, no âmbito das Ciências do Homem e da Sociedade, encontra-se consideravelmente modificado. A questão não está mais colocada sobre uma qualidade ou estado de um paciente, o que demandaria um certo tipo de trabalho e, por conseqüência, uma determinada prática e/ou metodologia de intervenção, mas “[O] projeto do clínico está-se tornando fundamental para a inteligibilidade de sua prática. Ao questionamento metodológico se superpõe ... uma interrogação epistemológica.” (p. 37).

De uma certa maneira, as considerações tradicionais sobre o clinicar nos remete para um tipo de familiaridade (com o “doente”), para o conhecimento pela experiência (devemos lembrar que a medicina não é uma ciência mas, muito mais, uma prática, a clínica é para a medicina o que a jurisprudência é para o direito). Mas, a essas idéias, acrescenta-se, atualmente, a idéia de intervenção do prático, e mesmo do pesquisador - especialmente quando se trata de metodologias como a pesquisa-ação (BARBIER, 1985); a etnometodologia (COULON, 1995, GARFINKEL, 1967) etc.; e o postulado de uma capacidade de evolução, de aquisições, que se dão pela integração e pelo jogo de alterações[15]. “É justamente essa hipótese de transformações possíveis, (...), que se torna essencial quando se trata de praticas sociais definidas como clínicas. (ARDOINO, 1990, p. 37)

Nesse sentido, apesar de ainda encontrarmos o emprego do termo “clínico” em sua acepção original, vinculando-o à ação do médico spbre o doente; as práticas sociais que implicam alterações, como é o caso tanto das psicoterapias e socioterapias, como em certos aspectos da educação, da formação etc., trazem novos sentidos para o termo. Estes últimos, por sua vez, incorporam-se ao sentido original, ampliando-o, suportando algumas contradições, o que o localiza no âmbito de uma certa polissemia.

Sob essa perspectiva, a noção de clínico se inscreve na ordem da praxiologia, enquanto ação-reflexão, seja no âmbito da escola, seja no âmbito do hospital... Assim, “clínico” passa a ser um “conceito chave, na confluência da ciência fundamental com a ciência aplicada no que se refere ao homem.” (BARBIER, 1985, p. 46).

Para Ardoino

 

...o procedimento clínico e sua teorização devem conquistar o lugar que lhes foi até agora recusado (...) o que é fundamental ao procedimento clínico é o respeito, ou melhor, a sensibilidade ao que é ambíguo, ao duplo sentido e à hipercomplexidade. (ARDOINO apud BARBIER, 1995, p. 46)

 

Tal declaração de Ardoino nos revela o quanto a “clínica” é desvalorizada no âmbito das Ciências Humanas. Como podemos depreender de nossas discussões precedentes,   neste   universo   científico,     uma  nítida  oposição  entre  a  investigação experimental e a investigação clínica. A primeira é antes de tudo métrica, sistemática, comparativa e, na medida do possível, praticada no laboratório. Enquanto o método clínico

 

... serve-se da abordagem qualitativa, monográfica, e é aplicado de preferência no próprio terreno de investigação. A intenção é de explorar o comportamento e as representações de um sujeito ou de um grupo de sujeitos diante de uma situação concreta, para compreender-lhes o sentido, colocando-se alternadamente na perspectiva de observador e na de sujeitos-atores e de sua vivência. (BARBIER, 1985, p. 46)

 

As considerações anteriores permitem-nos caracterizar o olhar clínico como aquele que toma em consideração um campo - de pesquisa ou de intervenção - estruturado por um jogo de relações e de interações dinâmicas e complexas. No entanto, ele também supõe que o prático  e o pesquisador estejam convenientemente deslocados na relação, isto é, que eles assumam uma postura de implicação-distanciamento. Tal postura, por sua vez, possibilitar-lhes-ão estar efetivamente co-presentes na situação que eles analisam, sem perder, para tanto, suas especificidades e suas competências.

DAMATTA (1987) aproxima-se bastante desta perspectiva ao analisar possibilidades do trabalho antropológico no âmbito das sociedades em que o antropólogo está inserido.  Ele nos aponta que a tarefa do antropólogo nessa situação será transformar o que lhe é “familiar” em “exótico’. Isto requer, o que podemos denominar de uma atitude de “estranhamento” para o que é vivenciado como rotineiro, comum, próximo, conhecido etc., o que significa, concomitantemente, um “estranhamento de si mesmo”, um “auto-estranhamento”. Tal atitude, portanto, implica a busca de novos sentidos para a relação que o antropólogo estabelece com seu objeto, reconhecendo nela - na relação – a possibilidade de dar novos sentidos para as suas próprias representações.

Ardoino, por sua vez, nos lembra, nesse caso

 

... o tipo de análise em questão não tem mais grande relação com a análise entendida etimologicamente (decomposição, redução do complicado em elementos mais simples) É mais uma sagacidade (perspicácia), vinculada a um processo de acompanhamento numa duração, a intimidade partilhada, donde (...) os exemplos: psicanalítico, sócioanalítico, etnológico, etnográfico, e até etnometodológico, podem nos dar alguma idéia. (ARDOINO, 1990, p. 38)

 

Esta citação de Ardoino leva-nos a pensar que se a clínica se apóia fundamentalmente na observação - no olhar mais ou menos caracterizado por uma ambição de controle, como o que caracteriza a postura médica tradicional - a ela (a observação) acrescenta-se a importância, mais temporal, da escuta - aquela do não-dito. “O ouvido aí se encontra assim conjugado com o visto.” (Ardoino, 1990, p. 39)[16].

Isto significa que as funções do “olhar” e da “escuta”, que se apoiam sobre  visões de  mundo diferentes – ou seja, implicam  paradigmas diferentes (os primeiros mais voltados para dimensões espaciais enquanto que os relativos ao segundo mais voltados para as dimensões  temporais)  e  conseqüentemente  em metodologias específicas – devem ser articuladas convenientemente a fim de estabelecer pontos de referência no tempo e no espaço, concomitantemente.

Tal perspectiva, tanto para o plano da pesquisa como para o plano das práticas  sociais,   permite-nos   um   reconhecimento  mais   profundo   de    elementos   até   então  desconsiderados (principalmente no que se refere à pesquisa) sobre os processos relacionais,    possibilitando-nos   uma  reapropriação   da   experiência   pela   abertura   ao desconhecido,   pela   disponibilidade  para  a  alteração (e  por   conseqüência     da heterogeneidade), para a escuta do inefável. Para Ardoino há nessa escuta, como na interpretação que a acompanha, uma primeira forma de multirreferencialidade

 

...é a língua do outro, sua indexicabilidade[17] que é necessário apreender e falar, para encontrar os fios de sua pré-história e os avatares de seu desejo. [Na relação clínica] o discurso não tem necessidade de ser explícito pois ela joga essencialmente ao nível do sub-entendido. (ARDOINO, 1990, p. 40)

 

Em vista do reconhecimento da heterogeneidade que a abordagem clínica pressupõe em si mesma, ela é notadamente multirreferencial quando se trata de sujeitos coletivos. Nesse caso, para compreendê-los, é necessário recorrer a “...óticas de leitura  e de linguagem diferentes (psicológica, psicossociológica, sociológica, econômica  etc.), heterogêneas, que é necessário saber combinar e articular.” (ARDOINO, 1990, p. 40).

Tal consideração envia-nos para o luto da transparência e da pureza original, como pressupõe o cartesianismo e seus desdobramentos. O reconhecimento da negatricidade e da opacidade dos objetos, assim como a intuição[18] (temporalizada) das qualidades diferentes, resultantes de perlaborações, de processos de maturação, de alteração, passam a ser o ponto de partida para a pesquisa dos fenômenos humanos.

 

O “Modelo de Inteligibilidade das Organizações”

Como assinalamos anteriormente, ao longo dos anos 60, Ardoino iniciou a elaboração de um “modelo de inteligibilidade das organizações”, cuja instrumentalização consolida a perspectiva multirreferencial que caracteriza seu pensamento.

No âmbito das ciências – especialmente aquelas que se inspiram no cartesianismo – a  questão da multirreferencialidade não está colocada, pois:

 

Tudo se passa como se os diferentes pesquisadores, as diferentes escolas estivessem mais preocupados em estabelecer o bom fundamento de sua recepção privilegiada, a superioridade de seu ponto de vista que de reconhecer e reunir para uma eventual composição orgânica esses diferentes fragmentos duma análise sempre incompleta quando não parcial. (ARDOINO, 1971, p. 405)

 

O reconhecimento da heterogeneidade, da complexidade das situações sociais – e mais especificamente das práticas educativas – levaram  Ardoino a elaborar um modelo onde aproxima vários campos disciplinares (Psicologia, Sociologia, Psicossociologia etc.), articulando-os de tal forma que eles não se reduzem uns aos outros. Nesse sentido, ele esclarece:

 

Quando nós falamos de uma instrumentalização conceitual mais apropriada a seu objeto complexo, nós entendemos uma análise que ultrapasse o enclausuramento das monorracionalidades disciplinares, permitindo ... restaurar as várias teorias explicativas ou compreensivas e, por conseqüência, referenciais diferentes. (ARDOINO, 1980a, p. 148)

 

O modelo proposto por Ardoino, permite-nos, portanto, colocar em ação vários métodos de leitura ou de aproximação da realidade, várias linguagens, a partir de um mesmo dado prático.

 

... muito mais que categorias explicativas ou variáveis manipuláveis em experimentos elaborados para tal fim, são constelações de idéias, noções diferentes, atitudes, comportamentos, manifestos ou latentes, conscientes ou inconscientes que expressam valores, significações, desejos ou temores, “hábitos”, em relação à situação analisada e que correspondem a sistemas práticos de inteligibilidade, a concepções de sociedade, das relações e da “natureza humana” e que, se não são descobertos, distinguidos, identificados, reconhecidos, explicados, constituem zonas de opacidade e uma prática mais cega. (ARDOINO, 1980, p. 50)

 

Nessa conjugação que envolve diversos campos do conhecimento, os dados de realidade que são reagrupados por Ardoino sob a denominação de perspectivas[19] não são de essências diferentes. São sempre os mesmos dados complexos, olhados sob ângulos diferentes e, conseqüentemente, organizados diferentemente, em discursos mais ou menos coerentes, em função das óticas de quem os levam em consideração. Além disso, essa aproximação traz em si mesma, em função da diversidade característica dentre as disciplinas, relações contraditórias entre si, exatamente como as relações dinâmicas e dialéticas dos dados que elas se esforçam por tornar inteligíveis. Cabe ressaltar ainda que a unidade ou a homogeneidade das referidas “constelações” dependerá do olhar do pesquisador ou daquele que promove uma intervenção e das concepções teórica e ideológica que estruturam esse olhar – nesse sentido podemos dizer que a abordagem multirreferencial é muito mais uma atitude em face da realidade do que uma simples metodologia.

Esses diferentes referenciais utilizados na composição de seu modelo, foram dispostos por Ardoino em cinco perspectivas[20], quais sejam:

 

1 – perspectivas de análise centradas sobre os indivíduos e as pessoas: os indivíduos e pessoas aqui são olhadas, inicialmente, sob o ângulo de suas tendências, de suas estruturas próprias, de seus fantasmas, de suas carências, de seus sistemas de defesas, de suas resistências, de suas motivações, de suas implicações libidinais, de suas opiniões, de suas atitudes e de seus sistemas de valores, de suas capacidades, de seu nível de conhecimento, de suas particularidades culturais, e de sua história de vida etc. A orientação dessas leituras é psicológica, voltadas para a compreensão do indivíduo.

A inteligibilidade dos fenômenos considerados serão diferentes em razão das diferentes abordagens que podem ser operacionalizadas para a compreensão desses fenômenos.

Sob a influência de uma psicologia categórica, encontramo-nos diante de uma ótica essencialmente estática, cuja prática aproxima-se de uma “ortopedia mental”[21].

As mudanças individuais são decorrentes da transmissão do conhecimento ou pela influência de alguém. No caso da relação entre professor e aluno, a ação do primeiro determinaria mudanças no segundo, ou serja, a relação é considerada conforme o esquema de uma causalidade ou de um determinismo linear:

 

 

Diagrama 1

 

 

Tal perspectiva pode ser identificada, no âmbito escolar, quando observamos práticas classificatórias, onde as pessoas são rotuladas como “bons” e/ou “maus” (alunos e/ou professores), alunos “mentirosos”, “preguiçosos”, “esforçados” etc. Os quocientes de inteligência e as idades mentais[22] podem ser considerados como critérios para a ordenação, orientação e seleção dos indivíduos, possibilitando a  sua inserção em determinadas categorias.

A comunicação entre os indivíduos será determinada pelo professor; não haverá comunicação lateral – entre alunos. A prioridade é a transmissão de informações.

Se a psicologia for mais refinada, os indivíduos serão considerados como individualidades que se personalizam, e as preocupações se dirigem para os processos dinâmicos implicados no desenvolvimento dos mesmos.

 

2 – perspectivas de análise centradas sobre as interações: as abordagens analíticas arroladas por Ardoino que compõem este conjunto de perspectivas são vinculadas a uma abordagem psicossociológica, limitam-se a levar em consideração a relação dual ou a combinação das relações duais. As observações dos comportamentos do grupo ou das interações ou o jogo das “teles”[23] como propõe a sociometria moreniana, assim como a relação centrada sobre o cliente (ou sobre aluno)  na  perspectiva  rogeriana,  são  algumas  teorias  que  podem ser


conjugadas na análise das interações. Sob a luz da psicanálise,  certos aspectos da relação, principalmente aqueles relacionados com fantasias primitivas, podem ser considerados. Os processos de influência e de alteração serão evidentemente privilegiados através do encontro, assim como a análise da comunicação.

A relação puramente linear, traço caracterítico das perspectivas centradas sobre os indivíduos e as pessoas, dá lugar a uma concepção mais dinâmica:

 

Diagrama 2

 

Sob essas perspectivas, a relação entre professor e aluno, deixa entrever sua problemática educativa: a alteração, como fonte de mudanças bem como a negatricidade que acompanha as relações podem ser consideradas como elementos fundamentais para a compreensão do processo.

A comuniação, por sua vez, já se torna possível. A necessidade do diálogo manifesta-se, ao mesmo tempo que a sua grande dificuldade. Enfatiza-se a importância das atitudes e da vida afetiva.

A não-diretividade e a compreensão, no sentido rogeriano dos termos, podem ser considerados como meios pedagógicos importantes para o desenvolvimento e amadurecimento do aluno.

No entanto, como isso é expresso pelas idéias de dualidade ou de diálogo, não saímos da relação a dois (mestre com cada aluno, ou aluno em situação de rivalidade fraterna com outros alunos). Quando muito, há a justaposição de relações a dois. Por falta de um terceiro termo e, por conseguinte, de mediação, as contradições, embora reconhecidas, tendem a enquistar-se ou a esgotar-se em fases conflitivas e provocam, em poucas ocasiões, uma superação criadora. Quando o jogo dos fantasmas, da autoridade e da sexualidade arcaicas são levados em consideração, a análise e a interpretação tornam-se úteis para um amadurecimento relacional.

 

3 – perspectivas de análise centradas sobre os fenômenos do grupo: estas  perspectivas abrangem modelos explicativos concorrentes que, articulados, contribuem para um conhecimento mais aprofundado desse objeto da psicologia social.  Tais modelos são, por um lado, os desdobramentos das óticas moreniana – sociometria – e rogeriana – grupos de encontro; por outro lado, as concepções psicanalíticas do funcionamento dos pequenos grupos (Bion, da Inglaterra; D. Anzieu e R. Käes, da França). Além desses modelos, podemos remeter-nos também, à aqueles desenvolvidos a partir das teorias de K. Lewin sobre a dinâmica do campo.

No âmbito das práticas sociais, reconhece-se a influência de uma corrente anarco-sindicalista mais politizada que também pode contribuir para o esclarecimento dos fenômenos grupais.

Esta constelação de  teorias nos permitirá estudar mais especificamente as dimensões funcional, simbólica e dialética dos grupos, o que nos revelará, mais claramente, a sua vida afetiva.

Tais perspectivas permiterm-nos perceber que as inter-relações constituem estruturas mais estáveis. O professor também faz parte dum tal conjunto e nele exerce papéis e funções privilegiadas, mas se esforçará para que os alunos assumam, por sua vez, funções e papéis.

Podemos observar, a partir dessas perspectivas, fenômenos especificamente grupais: clivagens, desvios, subgrupos, conflitos de liderança, coesão etc.

As relações, aqui, deixam o mundo da relação a dois para o mundo da relação a três ou mais, acrescentam-se às precedentes possibilidades de mediação, de negociação, de compromisso. Os Diagramas 3 e 4 representam duas possibilidades de abordagem das relações.  

 

Diagrama 3

 

Diagrama 4

 

O poder, presente na relação, é generalizado. O controle será menos exterior e de todas as maneiras se apoiará sobre uma educação para o autocontrole.

A comunicação existirá em todos os sentidos e será mais facilmente regulada. A competição tenderá a exercer-se mais em relação ao “não-grupo” – a gupos exteriores e menos nas relações intragrupos. A vida afetiva tomará igualmente formas específicas (experiências da camaradagem, experiência da separação).

 Por sua mobilidade e pelas possibilidades de mediação, o grupo, quando funciona efetivamente como tal e não como um simples “coletivo”, aparece como um dos lugares privilegiados da mudança e do amadurecimento afetivo e social, ao mesmo tempo que se caracteriza como uma das ocasiões fundamentais de fazer uma primeira aprendizagem da democracia.

 

4 – perspectivas de análise centrada sobre as modalidades de organização: estas perspectivas estão relacionadas ao domínio das ciências da organização – uma vertente sociológica das Ciências Humanas. A análise sistêmica, a sociologia das organizações, o desenvolvimento organizacional, assim como as concepções de Taylor e de Fayol, quanto à organização, constituem algumas das correntes teóricas que podem aqui ser articuladas.

Essas perspectivas privilegiarão a racionalidade, os “modelos”, as estratégias, os objetivos, os planos e os programas: a leitura se fará a partir dos modelos de referências mecânicos.

Nas situações de formação, escolar ou não, são os regulamentos, os programas, as tarefas, os meios e as ferramentas (métodos e técnicas), as funções, o equipamento, os locais etc., que serão objetos de estudo nesse tipo de análise. As ações que se desenvolvem nas situações educativas – no contexto escolar – devem   seguir determinados “modelos”, aos quais elas devem se conformar. Tal modelização permite ao conjunto escolar – aqui considerado em seus aspectos mais amplos – tende a funcionar de maneira sistemática, mais racional. A filosofia subjacente é decididamente mecanicista. As funções são cuidadosamente diferenciadas; há uma divisão do trabalho. Reencontramos aqui o pensamento categorial do primeiro plano. A aquisição de conhecimentos, o respeito dos programas e a manutenção da ordem prevista se sobrepõem sobre os fatos de relação. A transmissão da informação, os problemas técnicos de regulamentação e de liberdade, os procedimentos, a ordem do dia predominam facilmente sobre a comunicação propriamente dita. O exercício da autoridade voluntariamente se deixará reduzir a seus aspectos funcionais. Poderá mesmo haver recusa de implicação, por parte do professor, sob o pretexto da tecnicidade e de “neutralidade”. O Diagrama 5 nos dá uma idéia de como as relações podem ser percebidas sob essas perspectivas:

 

 

 

 
Diagrama 5

Cabe assinalar que, o indivíduo, como “pessoa”, como “membro de um grupo” ou como “ser social” encontra-se “preso” em sua função, função essa determinada pelos organogramas das organizações, deixando-o, conseqüentemente, “alienado”.

 

5 – perspectivas centradas sobre a instituição: as abordagens a que Ardoino se refere sob esta dimensão, abrangem tanto a uma sociologia crítica e militante, no limite de uma contra-sociologia (LAPASSADE e LOURAU, 1972), como a uma sociologia descritiva e positivista, ancorada no conhecimento do “instituído”, mas que não reconhece a existência do não dito e do “instituinte” (como, por exemplo, a teoria de BOURDIEU, 1983, BOURDIEU e PASSERON, 1975).

Os sistemas de valores manifestos e latentes, as finalidades, os objetivos, o “projeto”, as dimensões imaginárias  da instituição, a  interrogação política e crítica sobre o sentido das práticas, são os principais objetos destas perspectivas analíticas.

ARDOINO e LOURAU (1994) identificam, no âmbito do movimento francês da Análise Institucional, uma análise institucional generalizada, cujos pontos de partida são as teorias de Sartre, Lefebvre, Marcuse, Castoriadis, Guattari  etc. Este conjunto de teorias ofereceu os subsídios para a emergência de uma análise institucional, desenvolvida por LOURAU (1995) e de uma análise institucional em ato, conforme as propostas da pedagogia institucional realizadas por LOBROT (Ó1966) e por Fernand Oury e A. Vasques (conforme ARDOINO e LOURAU, 1994), e da socioanálise feita por LAPASSADE (1977, 1980).

A organização educacional é um lugar institucional. Não raro uma escola é chamada de instituição. Por esse titulo ela é determinada, de direito, institucionalmente, regulamentarmente, e seu caráter instituído marca bem seu peso, sua inércia, tanto para os professores como para alunos. Há uma administração, o diretor, o supervisor, os inspetores etc. que se ocupam de estabelecer e manter a “programação” (os programas), os controles, assim como a definição dos poderes, os estatutos. O caráter estático da organização expressa-se através da “burocratização”.

A instituição, por sua vez, não tem somente um caráter instituído, ela tem também um caráter instituinte. Assim, a escola pode ser o lugar de aprendizagem institucional e da experiência democrática. Ela é, vista sob esse ângulo, igualmente possibilidade de mudança, se admitirmos que as instituições possam mudar de maneira evolutiva e não somente de maneira revolucionária[24]. Através do Diagrama 6, podemos perceber, a complexidade das relações sob a perspctiva institucional.

 

Diagrama 6

 

A nota que segue, acompanha o  Diagrama acima:

 

Note-se que, tal como [no Diagrama 4], há relações intragrupos A-B, A-C, A-D, A-E, E-A, E-B, etc., mas na medida em que essas relações se prolongam a si próprias por grupos similares e vizinhos, constituem canais de intergrupos e podem mesmo prolongar-se para o exterior desses conjuntos, num campo social mais amplo. Note-se igualmente que, tal como no nível precedente, cada figura, progressivamente mas complexa e mais geral, contém os esquemas precedentes como um caso particular. Por exemplo, aqui certas relações foram representadas em vermelho e simbolizam, de certo modo, as relações privilegiadas de poder e de hierarquia. Representamos em cinco figuras geométricas, em amarelo, zonas de “interstícios” para marcar a presença das comunicações informais. É bem claro que na prática estes “interstícios” não são assim tão geomètricamente distribuídos. Este esquema não pretende, em absoluto, decalcar a realidade, mas dar uma idéia dela. (ARDOINO, ã1966, p. 46.)

 

Como podemos perceber, a proposta de Ardoino consolida alguns dos pressupostos do “paradigma de complexidade” elaborado por Morin, à medida que aproxima campos teóricos bastante distintos e, em alguns casos, contraditórios, considerando suas origens epistemológicas. A heterogeneidade aqui se realiza, levando-nos a reconhecer a possibilidade de produzir um tipo de conhecimento diferente do que nos propõem as perspectivas   científicas  que se ancoram no racionalismo cartesiano. Aqui, o conhecimento se circunscreve na ordem do “mestiço”,  do “impuro”; refere-se ao local e não ao universal;  caracteriza-se na ordem do “multi” e não na do unitário; é complexo e não simplificado.

Cabe salientar, no entanto, que, no âmbito da abordagem multirreferencial, não se objetiva o estabelecimento de novas sínteses transdisciplinares, pois ela vai se preocupar em tornar mais legíveis, a partir de uma certa qualidade de leituras (plurais), os fenômenos complexos. Essas óticas – psicológicas, sociológicas, históricas, antropológicas, sociológicas, psicanalíticas etc. – possibilitar-nos-ão olhar esses objetos sob ângulos diferentes, requerendo, em si mesmo, o exercício e o reconhecimento da alteridade e da heterogeneidade (ARDOINO, 1998e).

Sob a ótica da abordagem multirreferencial, a atividade do pesquisador, aproxima-se da atividade do “bricoleur”, ou seja, o conhecimento produzido acerca dos fenômenos sociais – e, especialmente, dos fenômenos educativos – será o resultado sempre inacabado de uma conjugação de disciplinas, ele será tecido a partir de várias referências de tal forma que elas não se reduzam umas às outras.

A proposta de Ardoino, por sua vez, nos leva ao reconhecimento de uma heterogeneidade própria do campo das Ciências Humanas, visto que esta se caracteriza por uma  coexistência temporal de várias perspectivas teóricas, várias abordagens, vários paradigmas. À diferença das Ciências Naturais, que registram um contínuo processo de sucessão de teorias (conforme KUHN, 1978), nas Ciências Humanas as vemos em plena simultaneidade, sem que uma nova teoria (ou abordagem, ou paradigma) elimine a anterior pela via das “revoluções científicas” de que nos fala Kuhn. Trata-se de uma convivência onde todas “valem” à sua maneira, em função de sua própria forma de conhecer. O fato de aproximarmos perspectivas teóricas marcadas pela heterogeneidade – como nos indica a abordagem multirreferencial – engendra um campo de tensão, a partir do qual podemos vislumbrar novas perspectivas epistemológicas para a compreensão dos fenômenos humanos.

 

Resta ainda observar que essas perspectivas se questionam entre si, tanto quanto senão mais do que, interrogam o objeto que as mobiliza, através dos questionamentos do pesquisador. Essa diversidade de ângulos, de óticas, de perspectivas, vai acarretar, por sua vez, uma pluralidade de linguagens descritivas próprias para permitir a compreensão dessas diferentes leituras. Nessa questão não se poderia ter uma linguagem única. Não há e não haverá jamais um esperanto das ciências do homem e da sociedade. (ARDOINO, 1998e, p. 37)

 

Outra marca da heterogeneidade que indicamos como intrínseca na produção do conhecimento diz respeito à relação intersubjetiva que se estabelece entre pesquisador e pesquisado, o que nos leva a considerar que esta produção se circunscreve a partir de uma relação de  implicação e que, em função disso, uma nova postura metodológica se faz necessária, para que o pesquisador não perca sua especificidade e competência, qual seja, a da escuta clínica. Privilegia-se, assim, no processo de construção do conhecimento, não tanto os dados de realidade em si mesmos, mas o jogo de sentidos que percorrem as relações que se estabelecem no campo de pesquisa – o que significa reconhecer as implicações do pesquisador nesta construção. Tal perspectiva se aproxima das metodologias desenvolvidas no campo da antropologia, da etnometodologia, da pesquisa-ação, onde o vivido, o experienciado, a história compartilhada, as implicações pessoais, os jogos dos sentidos etc., são os pontos de partida para elaboração do conhecimento científico.

 

 

 

NOTAS DO CAPÍTULO 2

 

 

[1] Mais adiante o termo complexidade será mais bem explorado. No momento vale indicar que, neste contexto, este conceito será utilizado coforme osentido que Edgar Morin lhe dá.

[2] A discussão que ora iniciamos foi elaborada a partir de textos produzidos por Jacques Ardoino e de conferências que ele pronunciou no Brasil no ano de 1998, conforme serão referenciados ao longo do trabalho.

[3] Mais adiante discutiremos as principais características desse movimento.

[4] Tal postura  fica muito clara numa coletânea de textos intitulada Le directeur et l’intelligence de l’organization: repéres et notes de lecture, de 1995.

[5] Cabe assinalar que Ardoino não utiliza o termo muldimensionalidade, mas sim multirreferencialidade.

[6] Apontaremos aqui os princípios que consideramos mais relevantes para nossa discussão. Mais detalhes, ver MORIN, s/d, p. 330-334.

[7] Para mais detalhes sobre a perspectiva de LÉVI-STRAUSS (1976), capítulo 1.

[8] “quero dizer com isso ... a capacidade que o outro possui sempre de poder desmantelar com suas próprias contra-estratégias aquelas das quais se sente objeto.” (ARDOINO; BARBIER e GIUST-DESPRAIRIES, 1998, p. 68).

[9] GEERTZ (1978), explora esse tema no âmbito da Antropologia apontando que o informante, no campo de pesquisa, elabora interpretações a respeito da realidade, e que o conhecimento que o antropólogo tem desta, pode ser de “terceira mão”.

[10] Este trabalho refere-se a minha dissertação de mestrado elaborada para o Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.

[11] Exploraremos este termo mais adiante.

[12] “Processo pelo qual a análise integra uma interpretação e supera as resistências que suscita. Tratar-se-ia de uma espécie de trabalho psíquico que permite ao indivíduo aceitar certos elementos recalcados e libertar-se da influência dos mecanismos repetitivos.” (LAPLANCHE e PONTALIS, ©1967, p. 429).

[13] Sobre esta questão ver BORBA, 1997, especialmente o capítulo intitulado “Jornal de Pesquisa”.

[14] MARTINS (1998) sugere-nos uma aproximação da abordagem multirreferencial com as propostas epistemológicas desenvolvidas por autores pós-modernos.

[15] Conforme assinalamos anteriormente, a alteração é entendida aqui como uma dinâmica onde se reconhece que, numa relação entre pessoas, elas se influenciarão entre si, modificando-se. Neste processo estão implícitos não apenas os aspectos conscientes de cada um, mas também esse processo é marcado por desejos, vontades  etc. traços muito mais relacionados com o inconsciente.

[16] Mais detalhes sobre essas mudanças, ver FOUCAULT, 1987.

[17] Ver definição de indexicabilidade na nota 15.

[18] Sobre o reconhecimento da intuição no processo de conhecimento ver MAFFESOLI (1996).

[19] Quanto à utilização do termo perspectivas, Ardoino esclarece: “Em nossos primeiros escritos que envolveram essa questão falávamos quase indiferentemente ora de níveis ora de perspectivas. Hoje, preferimos esta última denominação. A noção de nível remete à própria estrutura de uma realidade, ou seja, a uma espécie de anatomia. A perspectiva constitui um ponto de vista sobre a realidade da qual a origem é, ao mesmo tempo,  afirmada, reconhecida.” (ARDOINO, 1998e, p. 37).

[20] A descrição que se segue baseou-se em ARDOINO, 1966, Ó1966, 1980, 1980a.

[21] Conforme ARDOINO (1980a, p. 170), ortopedismo é uma prática cirúrgica ou médica cujo objetivo é manter ou remediar o que pode estar deformado, eventualmente, o que está enfraquecido, através de próteses ou através de aparelhos de contenção. O ortopedismo mental seria, por analogia, um sistema de técnicas, de normas, etc.  que buscam obter psiquicamente o mesmo tipo de resultado.

[22] Vale a pena notar aqui a influência da psicologia diferencial e das psicologias do desenvolvimento humano. Sobre essas últimas, ver abordagem crítca de BURMAN, 1994.

[23] Este termo foi desenvolvido por J. L. Moreno, criador do psicodrama, que o definiu “como uma ligação elementar que pode existir tanto entre os indivíduos como, também, entre indivíduos e objetos e que o homem, progressivamente, desde o nascimento, desenvolve um sentido das relações interpessoais (sociais) O tele pode ... ser considerado como fundamento de todas as relações”. (MORENO, 1974, p. 52).

[24] Mais adiante nós aprofundaremos mais essa relação instituído e instituinte.

 
 
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III - Multirreferencialidade e Ánalise Institucional
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