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No capítulo anterior foi assinalado que Ardoino, em função de sua inserção profissional, se considera um “ analista institucional”. Esta posição fica mais clara quando observamos, no modelo de inteligibilidade que propõe, uma preocupação com a perspectiva institucional das organizações. Nesse sentido, suas preocupações se voltam para o desvelamento dos jogos de sentido que perpassam as relações sociais, os valores aí implícitos, a ideologia etc. Assim, nos deteremos neste capítulo no esclarecimento das características de sua proposta que a inscrevem no âmbito do movimento institucionalista[1].
Antes, porém, cabe esclarecer que a análise institucional é um método de investigação e pesquisa que visa elucidar as relações reais, e não somente jurídicas ou puramente subjetivas, que mantemos com as normas instituídas, ou seja, tal metodologia visa esclarecer a maneira pela qual os indivíduos se põem ou não de acordo com estas normas com o objetivo de assegurar sua participação social.
Outra particularidade da análise institucional vem a ser o fato de ela operar sobre situações concretas na prática social, isto é, ela se caracteriza como uma intervenção em grupos limitados, tais como organizações, estabelecimentos, organismos, coletividades etc. Como intervenção, a análise institucional tenta mostrar que, em toda situação, a ação simbólica das instituições ausentes/presentes é uma variável importante que deve ser considerada na compreensão das relações sociais. Conseqüentemente, não somente a face objetiva da instituição deve ser levada em conta, mas também a face simbólica, não–objetável em termos de dados de um inquérito ou resultado de uma observação, ou seja, devemos também considerar os aspectos inconscientes que nela estão implícitos.
Como modelo de análise social, a análise institucional, além de introduzir a dimensão instituição no âmbito das análises dos fenômenos sociais, chama atenção para as implicações, sociais, econômicas, políticas e libidinais da atividade de pesquisa e intervenção acima referidas[2].
Visto que não há uma única corrente teórica, ou mesmo uma escola, que expresse plenamente o ideário institucionalista, mas várias tendências teórico-práticas, trataremos aqui de apontar as características que são comuns aos campos de investigação e de intervenção que se inserem no âmbito deste movimento, e que são, de uma certa forma, apropriados por Ardoino na composição de sua proposta de análise.
Apesar das diferenças teóricas há um certo consenso entre os institucionalistas do que vem a ser uma Sociedade e do que é a História. A sociedade é compreendida como uma forma organizada de associação humana, enquanto que a história é vista como o devir da sociedade no tempo (BAREMBLITT, 1994, p. 27).
De um modo geral, o institucionalismo afirma que a sociedade é uma rede, um tecido de instituições. Estas, por sua vez, “...são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser pautas, regularidades de comportamento.” (BAREMBLITT, 1994, p. 27).
Estas lógicas estão diretamente relacionadas com a regulação das atividades humanas, elas as circunscrevem e as caracterizam, e se pronunciam valorativamente com respeito a essas atividades, clarificando o que deve ser, o que está prescrito e o que não deve ser, isto é, o que está proscrito, assim como o que é indiferente.
Tomando essa perspectiva como ponto de partida, podemos estabelecer, de imediato, uma aproximação entre esta idéia com o conceito de habitus desenvolvido por Bourdieu.
Diz esse autor:
As
estruturas constitutivas de um tipo particular de meio ... que podem ser
apreendidas empiricamente sob a forma de regularidades associadas a um meio
socialmente estruturado, produzem habitus, sistemas de disposições duráveis,
estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas
estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas
e das representações que podem ser objetivamente
‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser o produto da obediência a regras,
objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins
e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e
coletivamente orquestradas, sem ser o produto da ação organizadora de um
regente. (BOURDIEU, 1983, p. 60-61)
O ‘habitus’ está no princípio do encadeamento das ações, orientando-as, conformando-as e organizando-as objetivamente; mas, na medida em que é produto das relações sociais, ele tende a assegurar a reprodução das relações objetivas que o engendraram.
Cada
agente, quer ele saiba ou não, quer ele queira ou não, é produtor e
reprodutor do sentido objetivo: porque suas ações e suas obras são o
produto de um ‘modus operandi’ do qual ele não é o produtor e do qual
não tem domínio consciente, encerram uma ‘intenção objetiva’, como
diz a escolástica, que ultrapassa sempre suas intenções conscientes.
(BOURDIEU, 1983, p. 72)
A adequação entre as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo é assegurada através da interiorização - pelos atores - dos valores, normas e princípios sociais. A possibilidade de uma ação se exercer se encontra, assim, objetivamente estruturada, o que por sua vez não significa uma obediência às regras ou a uma previsão consciente das metas a serem atingidas. Ou seja, Bourdieu propõe uma teoria da prática na qual as ações sociais são realizadas concretamente pelos indivíduos, mas as possibilidades de elas se efetivarem são estruturadas objetivamente no interior da sociedade.
Ao considerar que a prática se traduz por uma “estrutura estruturada”, predisposta a funcionar como uma “estrutura estruturante”, fica claro que o conceito de ‘habitus’ não se aplica somente à internalização de normas e valores sociais, mas incluem os sistemas de classificação que preexistem às representações sociais, ou seja, atuam na esfera do simbólico - o mundo social é tratado como um mundo lingüístico e cognitivo, cuja totalidade é mantida por relacionamentos intersubjetivos, dinâmicos e não-mecânicos.
A
prática é ... necessária e relativamente autônoma em relação à situação
considerada em sua imediatidade pontual, porque ela é o produto da relação
dialética entre uma situação e o ‘habitus’ ... que, integrando todas
as experiências passadas, funciona a cada momento como uma ‘matriz de
percepções, de apreciações e ações’ - e torna possível a realização
de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas
de esquemas, que permitem resolver os problemas da mesma forma, e às correções
incessantes dos resultados obtidos, dialeticamente produzidas por estes
resultados. (BOURDIEU, 1983, p. 65)
O ‘habitus’ se sustenta, pois, através de ‘esquemas generativos’ que, por um lado, antecedem e orientam a ação e, por outro, estão na origem de outros esquemas generativos, que presidem a apreensão do mundo como conhecimento. Nesse sentido podemos dizer que ele se expressa sob duas dimensões: como social e como individual - refere-se a um grupo ou a uma classe, mas também a um elemento individual. No segundo caso, vale dizer que o processo de interiorização, que o conceito de ‘habitus’ pressupõe, envolve sempre a internalização da objetividade, o que ocorre de forma subjetiva, mas que não pertence exclusivamente ao domínio da individualidade.
Dentro
desta perspectiva, a história de vida de um indivíduo se desvenda como uma
‘variante estrutural’ do ‘habitus’ de seu grupo ou de sua classe, o
estilo pessoal aparece como um desvio codificado em relação ao estilo de
uma época, uma classe ou um grupo social. (ORTIZ, 1983, p. 18)
O trabalho pedagógico (da família, da escola etc.), portanto, vai além da inserção dos indivíduos num sistema moral ou ideológico, visto que tem, como função essencial, administrar o processo de inculcação das próprias categorias que presidem a interpretação do real. Na medida em que tais categorias são históricas e sociais, elas reproduzem o arbitrário social, ou seja, as relações hierárquicas da sociedade global.
Assim, o controle e a ‘dominação’, por parte da sociedade, são duplos: primeiro como discurso ideológico, segundo, como sistema lógico que ordena a representação social[3].
Sob tais circunstâncias podemos identificar várias instituições que compõem essa rede de sociabilidade em que estamos envolvidos. Temos a instituição da linguagem, principalmente no que tange aos aspectos gramaticais, pois eles estabelecem as normas que regem a combinatória dos elementos fônicos. Temos, também, as instituições de regulamentação do parentesco, que definem lugares como pai, mãe, filho, genro, nora etc., e estabelecem as uniões possíveis - assim como as interdições - entre os membros de uma sociedade.
Existem as instituições de educação que expressam as leis, normas e pautas que prescrevem como se deve socializar, instruir um aspirante a membro de nossa sociedade para que ele possa integrar-se à mesma com suas características efetivas. Há ainda a instituição da religião que regula as relações dos homens com a divindade. Enfim, temos as instituições de justiça, da administração da força etc.
BOURDIEU e PASSERON (1975), analisando a instituição escolar, apontam que o seu principal objetivo está relacionado com interiorização do sistema de regras (este geralmente de ordem inconsciente), de normas, de valores, que constituem a normatividade dominante da sociedade. Toda ação pedagógica é, sob esse ângulo, violência simbólica. Tal violência, no entanto, é da ordem do desconhecido, instituído para manter-se, tanto seu mecanismo interno como as relações de força que a fundam.
O ‘habitus’ é o resultado dessa interiorização, ao passo que as aspirações dos agentes sociais estão estruturadas pelo ethos de classe, isto é, por uma disposição geral que, ao transpor-se (na medida em que são o produto de toda aprendizagem dominada por regularidades objetivas), determina as condutas.
Barbier, tomando a observação de Luís Pinto, assinala que o recurso ao conceito de 'habitus’, apesar de explicitar o fato da conformidade da prática à estrutura, não permite saber como este ‘habitus’ se forma.
...esta
observação mostra os limites insuperáveis que [este conceito] contém
para explicar as práticas humanas socializadas. P. Bourdieu não dialetiza
o seu conceito de habitus: interiorização da exterioridade e exteriorização
da interioridade, o habitus é concebido sob a forma cibernética da
“caixa preta”, seja no ser humano, seja num grupo, entram estruturas e
saem práticas conformes inconscientes. Ficamos no universo da geometria
plana da racionalidade aplicada que, necessariamente, reduz a
hipercomplexidade do real ao modelo teórico refinado. (BARBIER, 1985, p.
149)
É necessário, pois, segundo ARDOINO (1980) e BARBIER (1985), retomar a noção de ‘habitus’ sob um ângulo diferente do proposto por Bourdieu. Concebê-lo não só como instituído, mas numa dimensão instituinte, aberta para o imaginário. Tal perspectiva supõe o reconhecimento de que o ser humano é antes de tudo um homem “imaginante” que realiza um “imaginário radical” não causal e criador de um universo sempre renascente de significações que escapam à elaboração estritamente racional dos dados (CASTORIADIS, 1995).
Para ARDOINO (1980), o homem se “alimenta” continuamente de seu imaginário, no fundo do qual está o desejo.
Ligado
ao desejo imprevisível, não se consegue circunscrever o imaginário: ele
está sempre onde não se espera e some quando se pensa havê-lo pegado.
Apenas permanecem as brasas do simbólico que acendem no real o incêndio
perceptível dos sinais ainda cheios do passado mas já portadores do
futuro. Assim como o branco é a síntese de todas as cores, o imaginário
– essa brancura da totalidade em marcha – abre todas as comportas do
simbólico, principalmente na sua dimensão de imaginário radical.
(BARBIER, 1985, p. 152)
Compreender os fenômenos educativos sob esta perspectiva implica depositar nossas preocupações sobre os aspectos que dizem respeito ao implícito das relações – ao não-dito. Ou seja, tais fenômenos caracterizam-se, tanto por aspectos relativos à objetividade e à materialidade da vida humana (vinculados a questões de ordem econômica, política, material etc.), como também, por aspectos que dizem respeito ao individual, ao subjetivo, às microrelações que se estabelecem no cotidiano social (seja no âmbito educação formal ou não-formal).
Nesse sentido, podemos dizer que estes fenômenos se circunscrevem numa dialética instituído-instituinte que, à medida que é histórica, nos permite acompanhar o desenrolar dos fatos sociais.
Para compreender a dialética do instituído–instituinte Ardoino inspira-se no trabalho de Cornelius Castoriadis[4], especialmente em sua obra A instituição imaginária da sociedade (1995). Nesse livro o autor faz uma discussão sobre o projeto de autonomia, eixo central do que denominará de projeto revolucionário, isto é, projeto de construção de uma sociedade autônoma. Nesse sentido, Ardoino salienta:
Mais
que teoria no sentido estrito do termo, isto é, “olhar que inspeciona o
que é”, a aproximação de C. Castoriadis quer ser elucidação indissociável
de um objetivo e de um projeto políticos: o projeto revolucionário...
(ARDOINO, 1980, p. 189)
A autonomia tem, para Castoriadis, o sentido de superação das diferentes formas de alienação. Esta é entendida e conceituada de formas múltiplas, mas complementares e, sintetizada como heteronomia ou regulação pelo outro.
Uma das formas de alienação definida por Castoriadis diz respeito ao processo de autonomização da instituições ante as pessoas, os indivíduos, e sociedade, e consiste no fato de que a instituição, uma vez estabelecida – criada – pela sociedade autonomiza-se, ultrapassando suas finalidades iniciais e suas “razões” de ser, caracterizando uma inversão: o que deveria ter sido um conjunto de instituições a serviço das pessoas e da sociedade, se transforma numa sociedade a serviço das instituições.
A instituição é entendida, por esse autor, como “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e em relações variáveis, um componente funcional e um componente imaginário” (CASTORIADIS, 1995, p. 159), e será a dinâmica destes dois fatores que irá determinar o processo – acima referido – de heteronomia instituída.
A dimensão funcional preenche as nossas necessidades vitais, referentes a nossa sobrevivência individual e coletiva – a nossa inerência à natureza física e biológica. Nosso pertencimento ao mundo natural impõe-nos o atendimento de nossas necessidades específicas. Entretanto, ressalta Castoriadis, reconhecer a dimensão funcional de determinadas instituições não pressupõe o entendimento de que todas elas se esgotem na funcionalidade. Ao contrário, para ele a instituição se constitui igualmente, originariamente, como dimensão simbólica: “[a] diferença entre natureza e cultura é um mundo de significações.” (CASTORIADIS, 1995, p. 168). Dito de outra maneira:
Tudo o que se nos
apresenta no mundo social-histórico está ... entrelaçado com o simbólico. Não se esgota nele. Os atos reais, individuais
e coletivos ... , ou inumeráveis produtos materiais sem os quais nenhuma
sociedade poderia viver um só momento, não são ... símbolos. Mas uns e
outros são impossíveis fora de uma rede simbólica. (CASTORIADIS, 1995, p.
142)
Imersos numa rede de sistemas simbólicos instituídos (sistemas de poder, econômico, jurídico, entre outros) a dimensão simbólica é ineliminável já que “determina aspectos da vida da sociedade (e não somente o que se supunha determinar), estando, ao mesmo tempo, cheio de interstícios e graus de liberdade.” (Catoriadis, 1995, p. 152). No entanto, para o autor, o simbólico – o instituído – não é um fato último, não se explica por si só, mas nos remete a algo que não é da ordem do simbólico, que é o imaginário. E será o imaginário que possibilitará a autonomização do simbólico e, evidentemente, da instituição que ele significa. À medida que o simbolismo não é necessariamente fonte de alienação, pois é possível ter com ele uma ação reflexiva, lúcida e crítica, sua articulação com o imaginário abre a perspectiva para uma automização das instituições. Isto significa dizer que o simbolismo recebe do imaginário o seu “suplemento essencial de determinação e especificação” (CASTORIADIS, 1995, p. 154), proporcionando a heteronomia institucional.
Em sua discussão sobre o imaginário, Castoriadis estabelece que ele se apresenta no campo social sob duas perspectivas: como imaginário radical e como imaginário efetivo.
O imaginário, no sentido primeiro
em que o utiliza CASTORIADIS (1985, p. 154), refere-se a “faculdade
originária de pôr ou dar-se, sob a forma de representação, uma coisa e
uma relação que não são (que
não são dadas na percepção) ou nunca foram”.
Eis a principal característica do imaginário
radical, ou da imaginação
produtiva ou criadora. Ele reconhece, a partir dessa noção, a
capacidade estritamente humana de criar, de produzir, de fazer
ser o que não é nem nunca foi. Trata-se, enfim, da criação de algo
que introduz o novo, constitui o inédito, a gênese ontológica, a posição
de novos sistemas de significados e significantes, presentificando o
sentido. Assim, o imaginário radical é considerado como o motor da história,
visto que ele nos põe diante da emergência da alteridade, do inédito, do
inaudito, do inesperado, do indeterminado.
O imaginário radical, além de estar relacionado à criação, à produção de novos sentidos, também subsidia o imaginário efetivo, que constitui, na linguagem de Castoriadis, o “magma” de significações imaginárias sociais atuantes, operantes, em “uso” por uma determinada sociedade.
Cada sociedade, portanto, caracteriza-se como tal a partir de um conjunto de significações que lhe dão sua unidade e identidade. É por meio dessas significações criadas que os homens percebem, vivem, pensam e agem. Tais significações, no entanto, são, antes de mais nada, operantes, efetivas, mas circunscritas (muitas vezes) na ordem do inconsciente, irrefletidas.
Assim,
esse imaginário efetivo se manifesta, se presentifica no plano sócio-histórico
através dos sistemas simbólicos instituídos
(linguagem, religião, ritos, formas de exercício de autoridade etc.) nos
quais será sempre possível encontrar uma dimensão funcional, identitária
e um sentido que se prende à
dimensão imaginária ou significativa. Esse sentido pode ser percebido,
pensado ou imaginado, se faz presente no discurso, mas se constitui como um núcleo
independente de todo discurso e simbolização.
Dito
de outra forma, as significações que caracterizam o imaginário efetivo se
estabelecem no próprio fazer da sociedade; elas atuam como organizadoras
dos comportamentos humanos e das relações sociais, independente de sua
existência para a “consciência” da sociedade – é o que Castoriadis
denomina de imaginário social do
coletivo anônimo, e é o que nós queremos denominar através do termo não-dito.
Assim
sendo, o imaginário efetivo oferece aos indivíduos, uma série de
sentidos, a partir dos quais emerge a possibilidade da vida social. No
entanto, cabe ressaltar que como afirma Castoriadis, o social
...
é uma dimensão indefinida, mesmo se está circunscrito a cada instante,
uma estrutura definida e ao mesmo tempo mutante, uma articulação objetável
de categorias de indivíduos e o que para além de todas as articulações
mantém sua unidade. (...) É o que pode apresentar-se na e pela instituição
mas que é sempre infinitamente mais do que a instituição... (CASTORIADIS,
1995, p. 135)
Castoriadis refere-se aqui ao fato de que existe um social instituído, mas ele pressupõe sempre um social instituinte.
“Em
tempo normal” o social manifesta-se na instituição, porém esta
manifestação é ao mesmo tempo verdadeira e de certa forma falaciosa –
como mostram os momentos em que o social instituinte irrompe e se coloca em
ação com as próprias mãos, os movimentos revolucionários. Mas este
trabalho visa imediatamente um resultado, que é o de dar-se novamente uma
instituição para nela existir de maneira visível – e desde o momento em
que esta instituição é estabelecida o social instituinte esquiva-se,
distancia-se, já está também alhures. (CASTORIADIS, 1995, p. 135)
Sob essa perspectiva, podemos dizer que a instituição é circunscrita pela tensão entre o instituído e o instituinte, já que é a partir dela que se manifesta o componente imaginário da instituição. Isto quer dizer que, para além da atividade consciente de institucionalização, as instituições encontram sua fonte no imaginário inconsciente. Este imaginário, no entanto, deve entrecruzar-se com uma dimensão simbólica (do contrário a sociedade não teria podido ‘reunir-se’) e com uma dimensão econômico-funcional (do contrário não teria podido sobreviver) (ARDOINO, 1998a).
O mundo das significações sociais deve ser pensado como
...posição
primeira, inaugural, irredutível do social-histórico e do imaginário
social tal como se manifesta cada vez numa sociedade dada: posição que
presentifica e se figura na e pela instituição das significações ... que
coloca, para cada sociedade” (CASTORIADIS, 1995, p. 413)
Colocar este conjunto de significações como inaugural nos remete para uma reflexão sobre os processos de socialização que se engendram nos interstícios do social: como é que se dá este processo? Que papel a educação desempenha neste processo?
Ora, pensar a sociedade em termos institucionais nos coloca diante da dimensão reprodutora da educação, manifestação da sociedade como sociedade instituída instituindo-se como identidade a si mesma. Às instituições cumpre assegurar a reprodução dos indivíduos como indivíduos sociais. A entrada na sociedade instituída, a socialização, não é negociada livremente, ela é imposta, ela representa uma ruptura violenta com relação àquilo que é, originariamente, o estado primário da psiquê e suas exigências.
Devemos esclarecer, entretanto, que não podemos perder de vista a dimensão fenomenológica e dialética que fundamenta o pensamento de Castoriadis. E é nesse momento que, outra vez, entra em cena o conceito de imaginário radical como capacidade de criação, de alteridade, de engendramento do novo, pelo qual o ser não é estático, mas por-vir-a-ser.
O imaginário radical, como imaginário social, se constitui como sociedade instituinte, existe na e pela posição-criação de significações imaginárias sociais, da instituição como “presentificação” das significações, e das significações como instituídas, isto é, definindo o certo e o errado, o que vale a pena e o que não vale, o que é e o que não é, o que pode e o que não pode: é o magma de significações a que nos referimos anteriormente[5].
Para elucidar as significações que constituem o social é necessário partir de suas conseqüências, de sua “sombra”, de seus resultados projetados no agir efetivo dos indivíduos, dos grupos, das organizações, das sociedades, ou seja, é necessário tomar como ponto de partida sua historicidade, pois sociedade instituída e sociedade instituinte são intrinsecamente história, isto é, expressam um movimento dialético que traz em si mesmo auto-alteração. A sociedade instituída não se opõe à sociedade instituinte: ela representa a fixidez/estabilidade relativa e transitória das formas-figuras instituídas em e pelas quais somente o imaginário radical pode ser e se fazer como social-histórico. Esta relação é que subsidia o movimento social, historicamente concebido - o social portanto se faz como temporalidade, como história (CASTORIADIS, 1995, p. 222 e segs).
Para aprofundar a compreensão dos processos implícitos no universo institucional – o não-dito – Ardoino aproxima, na composição de seu quadro teórico, o conceito de transversalidade, que foi elaborado por Félix Guattari no âmbito da psicoterapia institucional. Para ele:
Guattari,
com o objetivo de escapar dos perigos de uma extensão pura e simples da noção
de transfert,
construída pela clínica freudiana, para
a clínica institucional, vai elaborar a idéia fecunda de transversalidade.
(ARDOINO, 1980, p. 181)
A noção de transversalidade diz respeito, independente das estruturas horizontais (relações informais que se estabelecem na instituição) ou verticais (organograma institucional), a um sentimento vago ou distinto, obscuro ou claro, segundo a consciência que se tenha dele, das relações de fato, no seio da práxis, dos membros de um grupo ou de um coletivo, quando têm “realidades” materiais, símbolos, ideais em comum.
Coloquemos
num campo fechado cavalos com viseiras reguláveis e digamos que o
‘coeficiente de transversalidade’ será justamente esta regulagem das
viseiras. Imaginemos que a partir do momento em que os cavalos estiverem
completamente cegos, um certo tipo de encontro traumático vai se produzir.
À medida que formos abrindo as viseiras, pode-se imaginar que a circulação
se realizará de maneira mais harmoniosa. (GUATTARI, 1987, p. 96)
No âmbito da instituição – aqui pensada mais especificamente no âmbito da saúde mental – o “coeficiente de transversalidade” é o grau de cegueira de cada membro do pessoal. Trata-se então de “regular” a focalização no sentido de promover uma menor alienação – social e mental - dos envolvidos no processo de cura.
A
transversalidade é uma dimensão que pretende superar os dois impasses, o
de uma pura verticalidade e o de uma simples horizontalidade: ela tende a se
realizar quando uma comunicação máxima se efetua entre os diferentes níveis
e sobretudo nos diferentes sentidos. É o próprio objeto da busca de um
grupo sujeito. (GUATTARI, 1987, p. 96)
O conceito de comunicação não deve ser tomado aqui em seu sentido cibernético – em termos de “input” e “output”. Não se trata de analisar de uma vez por todas, conforme um modelo sociológico ou psicológico, a estrutura de poder da instituição. A transversalidade é uma dimensão permanente da instituição: continuamente submetida a exame e continuamente renovada. Segundo Guattari, “o sujeito da instituição, o sujeito efetivo, isto é, inconsciente, aquele que detém o poder real, nunca é dado de uma vez por todas.” (GUATTARI, 1987, p. 98)[6]. Isto nos indica que toda possibilidade de intervenção transformadora, no âmbito da instituição, dependerá da capacidade de fazer “sair da toca” o sujeito da instituição – ou seja, o inconsciente.
A
transversalidade é o lugar do sujeito inconsciente do grupo, o além das
leis objetivas que o fundamentam, o suporte do desejo do grupo. (...) Uma análise
de grupo que se proponha resultar no remanejamento das estruturas de
transversalidade, nos parece concebível; na condição de evitar os perigos
das descrições psicologizantes das relações internas que têm por efeito
perder as dimensões de phantasias específicas, ou das comportamentalistas,
que ficam deliberadamente no plano dos grupos sujeitados. (GUATTARI, 1987,
p. 101)
Ardoino, numa perspectiva complementarista (e também multirreferencial),
aproxima ao conceito de transversalidade (proposto por Guattari) a noção de trasversalidade. Com este termo ele quer indicar a necessidade de levar em consideração que
...
grupos artificiais (com relação aos grupos reais) ou... aqueles cujo princípio
de reunião é essencialmente simbólico (grupos de formação, de
sensibilização, grupos de terapia) são atravessados pelo jogo das forças
sociais, pelos modelos da realidade exterior, pela sociedade global, com
suas desigualdades, suas relações de força e de dominação. (ARDOINO,
1980, p. 182)
Com
a primeira noção, a de transversalidade,
nós nos aproximamos dos processos de simbolização que são possíveis no
âmbito da instituição, a segunda, porém,
a de trasversalidade,
pressupõe a idéia de que toda microinstituição (como, por exemplo, a família)
como toda instituição regional (como, por exemplo, uma escola), específica
ou local, tende a resumir, a conter e a reproduzir o sistema institucional
geral – que diz respeito à sociedade como um todo.
Organização e instituição
BAREMBLITT (1994) assinala que, em um plano formal, uma sociedade é um tecido de instituições que se interpenetram e se articulam entre si para regular a produção e a reprodução da vida humana e a relação entre os homens. Sob tal perspectiva, as instituições são entidades abstratas, por mais que possam estar presentes, registradas em escritos ou tradições.
Para ARDOINO e LOURAU (1994) este caráter abstrato da instituição é problemático pois ela é um objeto virtual, produzida pela análise que a elabora e, ao mesmo tempo, a interpreta[7]. “A instituição é imaterial. Ela não é jamais acessível diretamente. Podemos apreendê-la somente através da materialidade das coisas da organização”. (ARDOINO e LOURAU, 1994, p. 26).
Esses autores apontam que a dificuldade de estabelecer uma distinção entre instituição e organização está relacionada, principalmente, com a etimologia da palavra instituição “A instituição designa ao mesmo tempo um estabelecimento, como, por exemplo, uma clínica; ou uma escola religiosa, a instituição São José, por exemplo; mas designa também o direito, que é uma instituição; designa ainda o casamento, que é uma instituição, pode designar também a Cruz Vermelha Brasileira que é, ao mesmo tempo, uma organização e uma instituição.” (ARDOINO, 1998a). Isto significa dizer que a palavra instituição trás, em sim mesma, uma polissemia.
Para ARDOINO (1998a), os analistas institucionais, durante muito tempo, confundiram estabelecimento (organização) com instituição, o que torna necessário um refinamento conceitual que permita reconhecer a instituição em sua especificidade e descolá-la do estabelecimento, com o qual ela se confunde.
Na visão de Ardoino, a distinção entre instituição e organização é necessária porque os dois conceitos tratarão de questões completamente diferentes.
A
organização no sentido de March e Simon é um conjunto organizado de
funções interdependentes, quer dizer que ... eu só posso falar de
organização em termos funcionalistas. A organização supõe um modelo
mecanicista, sempre! Eu posso pensar a organização em termos de competência,
em termos de objetivos, em termos de estratégias, isso nos levará a uma análise
organizacional muito bem ilustrada pela escola francesa da sociologia das
organizações. Mas, a análise institucional que vai colocar problemas de
status (de posição), de
valores, de finalidades e não mais de objetivos; de missão, de política e
não mais de estratégia, abrirá um outro tipo de questionamento. De uma
certa forma a instituição é o sentido ou o não sentido da organização.
Eu não acesso jamais a instituição diretamente. Eu só posso atingir a
instituição ... através das coisas concretas da organização. Essa
Universidade é uma organização, há os prédios, as paredes, os
regulamentos sobre as paredes, por vezes há os guardas, pessoas de
uniforme, a instituição é invisível, é imaterial, mas o peso da
instituição é terrivelmente pesado, é a violência simbólica de
Bourdieu. A violência está muito mais na instituição do que na organização.
Porque é a instituição que contém as visões de mundo (...) [no âmbito
da análise institucional] não se coloca a questão do como, do porquê,
mas para quem isso serve, quem se aproveita disso, quais os interesses em
jogo. E nesse sentido nós estamos, mais precisamente,
no contexto de uma análise... de uma análise política. (ARDOINO,
1998a)
Para Ardoino, no entanto, a análise institucional se efetiva quando olhamos para a trama social, para as relações sociais que se estabelecem no âmbito de um estabelecimento (de uma organização). Pois, o que é propriamente institucional deve ser buscado mais profundamente, como aquilo que funda simbolicamente a organização. Nesse sentido, podemos dizer que a organização é uma ordem dada que se impõe e produz “efeitos de força”, enquanto a instituição somente pode ser desvelada através dos “efeitos de sentido”, os quais a análise procurará revelar. “A instituição deve portanto ser lida enquanto sentido, conjunto de significações, poder-se-ia dizer, no sentido aristotélico, a ‘alma’ da organização.’” (ARDOINO e LOURAU, 1994, p. 27).
Aqui estamos diante de dois tipos de conhecimentos que, apesar de diferentes, são complementares. No primeiro caso, aquele que diz respeito à organização, o conhecimento
...
expressa-se num modelo maquínico, com sua linguagem funcional o problema da
organização é pensado em termos energéticos: é necessário energia para
que as pessoas se movimentem, é preciso energia para mudança, e as pessoas
que resistem gastarão energia, é uma representação energética, efeito
de força. Isso implica uma concepção do funcionamento psíquico e
microssocial centrado na força,
mais energética que histórica, mais existencial que temporal. Baseia-se
mais na aprendizagem experimental e em um condicionamento. É uma concepção
que implica uma mecanização do biológico - da historicidade. (ARDOINO,
1998a)
O conhecimento que diz respeito à instituição busca os sentidos, sentidos que transpassam - estão implícitos - a organização. A posição é a da escuta - a escuta clínica, como a definimos anteriormente - o que possibilita retomar uma palavra e reenviá-la à outra, e essa palavra que é reenviada fará novo sentido.
A
relação é o ponto de partida para o esclarecimento do que está implícito,
do não-dito... o que nos coloca
diante de um processo de maturação pessoal mais profundo, de processos
sempre transferenciais. Nesse caso não se pode dizer que é energético,
mas pode haver efeitos de sentido. (ARDOINO, 1998a)
Na análise institucional, portanto, “os ‘efeitos de sentido’, mais habituais às correntes hermenêuticas, associam-se, desse modo, aos ‘efeitos de força’, mais característicos das modelizações mecanicistas”. (ARDOINO, 1998e, p. 28). Nesse sentido a análise institucional torna-se complementarista e multirreferencial.
LOURAU, nos diz:
A análise
institucional engloba, atualmente, de um lado um método de conhecimento
indutivo, situado junto da análise funcional, estrutura,
estruturo-funcional, e também junto de diversos modos de análise econômica,
política, etc., e de outro, mais especificamente, um modo de análise em
situação que se aproxima mais da clínica psicanalítica. No primeiro caso
temos de nos haver com a análise do papel, que se inspira mais ou menos
diretamente de intervenções e pesquisas no terreno. No segundo, trata-se
da intervenção institucional analisada como tal. (p.266)
Este autor, em seu livro A análise institucional, faz uma extensa discussão sobre o conceito de instituição, e considerando os diferentes sistemas de referência que utilizam esta noção, a instituição aparece para ele como polissêmica, equívoca e problemática.
Ela é polissêmica, uma vez que, como Lourau salienta, os diversos autores por ele pesquisados, ao utilizarem o conceito se alternam e/ou confundem três momentos:
- um momento da universalidade, que diz respeito à significação universal da instituição o que nos remete para uma análise de sua estrutura. É o momento da afirmação, o que diz respeito às normas, “ao que está ali”, ao que está estabelecido, é o instituído da sociologia;
- o momento da particularidade, refere-se à significação particular, contingente, histórica e dialética da instituição, é o momento da negação da afirmação anteriormente referida. É o ato de instituir, de fundar, de modificar o sistema anteriormente estabelecido;
- momento de singularidade, expressa a significação singular da instituição, como negação da negação - uma segunda negação. Isto nos remete para o instituinte já instituído, é a negação da negação precedente. Refere-se a formas sociais visíveis, tangíveis. (LOURAU, 1995, p. 139-140).
Estes
momentos descritos por Lourau nos sugerem que devemos distinguir, através
da dinâmica da institucionalização, o que está se
instituindo, o que já está instituído,
e o que está em projeto de instituição,
em curso de institucionalização: é
o instituinte já instituído.
ARDOINO (1980) assinala que quando um ou outro aspecto da instituição se encontra esquecido, sua natureza dialética desaparece para tornar-se objeto de uma falsa consciência pelo trabalho de reificação.
A perspectiva desenhada por Lourau acerca do conceito de instituição traz, claramente, uma crítica dirigida tanto aos etnólogos e aos sociólogos, que enfatizam, demasiadamente, o aspecto da particularidade de instituição, como ao marxismo que, considerando as formas particulares das relações de força, das relações de classes, das relações de produção, enfatizam o momento da particularidade, conduzindo-o para um novo dogmatismo.
Neste último caso, LOURAU (1995) esclarece:
Hipostasiados
enquanto agentes históricos, construtores de sua própria história, os
indivíduos correm o risco de perder esta autonomia e iniciativa instituinte
a partir do momento em que o marxismo deixando-se levar pelas facilidades
dogmáticas do economicismo e filosofismo materialista, torna-se
institucional. (p. 140/141)
Além disso, Lourau aponta para os limites das várias abordagens teóricas que tomaram o conceito de instituição como ponto de partida para análises antropo-sociológicas[8]. Segundo ele, estas abordagens nos possibilitam apreender a função simbólica das instituições, não a totalidade das funções que elas desenvolvem objetivamente, nem as relações dialéticas que elas estabelecem entre si.
A noção de instituição é equívoca pelo fato de o conceito designar, alternativa ou simultaneamente, o instituído e o instituinte (LOURAU, 1995, p. 141). O pensamento, expresso em normas, em axiomas, em princípios de ação, em preceitos, se compõe com esse movimento dialético. O ideário de uma ontologia da identidade através do qual ser significa estar determinado, não reconhece a ação criadora da história. Entendemos que é o caráter dialético das relações instituído-institunte que permite à instituição mudar ao longo do tempo e desenvolver-se segundo os momentos descritos anteriormente (da universalidade, da particularidade e da singularidade).
Lourau nos diz ainda que o conceito de instituição é problemático porque não é um objeto estável de observação e manipulação. Nós só a conhecemos através de uma análise e eventualmente de interpretações. O problema de sua caracterização e de seu sentido nos conduz a um código que não está estabelecido, o que nos coloca diante da necessidade de elaborar um sistema de operações (geralmente indutivo) que nos permita uma tradução da realidade social com algum tipo de coerência.
Assim sendo, temos que aceitar como científica a hipótese de uma construção da verdade elaborada que traz em si mesma o “mestiço”, o ‘heterogêneo”, a “subjetividade do pesquisador”, e renunciar o mito da objetividade da revelação de uma ordem subjacente, imutável.
Diante
do que vimos apresentando até aqui, podemos dizer que, no âmbito do
movimento institucional, o conceito de instituição
traz em si mesmo uma polissemia, decorrente das várias abordagens que
desenvolveram esta noção, o nos remete para o reconhecimento da complexidade
dos fenômenos que o conceito pretende expressar.
A
perspectiva multirreferencial defendida por Ardoino, nos permite abordar
este objeto de estudo – a instituição
– sob vários ângulos: psicológico, psicossociológico, sociológico,
psicanalítico etc., permitindo uma aproximação menos fragmentada do
mesmo.
É
importante resgatar, nesse momento, uma crítica dirigida à proposta analítica
de Ardoino. Como apontamos na nota nº 39, Ardoino utilizou, em suas elaborações
iniciais do modelo de inteligibilidade discutido no capítulo anterior, os
temos “nível” e “perspectivas” indistintamente, para se referir aos
aspectos analíticos implícitos em seu modelo. No que tange ao primeiro,
ele recebeu uma série de críticas advindas, principalmente, dos
precurssores do movimento institucionalista: René Lourau e Georges
Lapassade.
Tanto
um quanto outro, no entanto, apesar de criticarem Ardoino, fazem uma
proposta de análise institucional a partir de três níveis: o grupo, a
organização e a instituição, ou seja, ambos se contradizem[9].
Ardoino,
retomando a proposta de trabalho de Lourau[10],
afirma que, para a efetivação de tal análise – a análise
institucional, “não podemos nos
esquivar de uma realidade representada
como estratificada, que apenas pode ser aprofundada sob ângulos heterogêneos,
como se houvesse níveis diferentes, porque nenhuma leitura global,
totalizante, traduziria suficientemente a sua complexidade.” (ARDOINO,
1998, p. 45 – destaque no original).
Além
disso, ele reconhece que, se, por um lado, a instituição está presente em
todas as manifestações da atividade social – como pressupõe Lapassade[11]
- por outro, os quatro outros “níveis” propostos estão co-presentes,
um diante dos outros. Sob uma perspectiva didática, ou ainda sob uma
perspectiva analítica, ele pondera: “...não
podemos falar de tudo ao mesmo tempo. Faz-se necessário, portanto,
especificar perspectivas diferentes, mas quando as anunciamos, escrevendo-as
umas ao lado das outras, elas se tornam níveis, o que comporta, é verdade,
um perigo de reificação.” (ARDOINO, 1998, p. 45).
Ardoino,
à medida que “conjuga” as referências descritas no capítulo anterior
para compor seu “modelo de inteligibilidade”, bem como os desdobramentos
epistemológicos dele decorrentes, nos leva a pensar que a noção
de multirreferencialidade – entendida aqui como uma proposta metodológica
e epistemológica – é, em si mesma, multirreferencial
(conforme MARTINS, 1998). Tal fato fica muito claro, quando
apresentamos, apesar de resumidamente, o movimento que Ardoino buscou fazer
resgatando várias facetas, várias disciplinas, várias abordagens, para
compor o seu olhar sobre a instituição.
Um olhar “bricolado”, tecido a partir da convivência, da convergência,
da complementaridade, da contradição, o que caracteriza um olhar multirreferencial.
Traçar
uma análise dos fenômenos educativos a partir da análise institucional
significa, portanto, dirigir nosso olhar para os aspectos “latentes” das
relações sociais, para dimensões que dizem respeito aos sentidos, aos
desejos, às vontades (muitas vezes inconscientes)
dos envolvidos
no processo.
Implica, além
disso, a
consideração dos
aspectos políticos que subsidiam as práticas educativas: é o “para
quem”, ou o “em função de
quem”, o sistema educacional funciona dessa ou daquela maneira.
Ao
operacionalizar suas análises a partir de várias referências, Ardoino nos
indica a necessidade de assegurarmos a complexidade
das situações que estão sob análise, bem como a dialética nelas
intrincada. Isto significa reconhecer a sua heterogeneidade,
sua opacidade e o caráter negatriz
que lhes são próprios.
Além
disso, vale lembrar, que os elementos utilizados (que não se esgotam nas
indicações que ele
faz em
seu modelo de inteligibilidade) na
composição do
olhar
multirreferencial está relacionado com as implicações do próprio pesquisador/interventor[12],
ou seja, o processo de elucidação dos fenômenos educativos está
vinculado
à clareza que estes profissionais têm dos seus motivos, dos seus
compromissos, de seu lugar, de sua disponibilidade para “escutar
clinicamente” os sentidos que perpassam
as relações que estabelecem no contexto de pesquisa ou de intervenção[13].
O modelo proposto por Ardoino, enfim, nos permite, quando aproximamos sistemas descritivos diferentes – multilógicas – manter as contradições que caracterizam toda realidade complexa. Tais lógicas nos fazem e nos ajudam a ter uma idéia diferente desta realidade, conforme o ângulo privilegiado sob o qual a percebemos. Ou seja, não se trata de elaborar um sistema descritivo que “sintetize” várias possibilidades analíticas, mas manter várias lógicas em constante tensão, possibilitando a criação de novas interpretações acerca dos fenômenos colocados em questão.
NOTAS DO CAPÍTULO 3
[1] Cabe registrar que o movimento institucionalista – em especial o que se desenvolveu na França – iniciou-se na década de 40, a partir da atividade prática de alguns profissionais vinculados com a problemática da saúde mental.
[2] Conforme definição de implicação referida na página 74 deste trabalho.
[3] Na proposta de Bourdieu há uma superação das análises marxistas na medida em que ele recoloca a política na dimensão da infra-estrutura na determinação da posição do indivíduo dentro da sociedade, relacionando a objetividade da infra-estrutura e a subjetividade de suas representações.
[4] Segundo ARDOINO (1998a) Castoriadis é um dos inspiradores do movimento de análise institucional mas ele nunca pertenceu a esse movimento. Ele faz parte de um grupo de autores que contribuíram para o estabelecimento de uma “análise institucional generalizada” (ARDOINO e LOURAU, 1994, p. 59), na qual haverá cortes marxistas, sociológicos, psicológicos diferentes e nos quais se inspirarão as correntes que compõem o movimento institucionalista.
[5] Ver página 107 e seguintes.
[6] Tal perspectiva nos sugere a idéia de acompanhamento e de escuta clínica que discutimos anteriormente.
[7] Esta idéia é muito próxima a de Geertz quando este autor nos diz que “no estudo da cultura a análise penetra no próprio corpo do objeto.” (GEERTZ, 1978, p. 25).
[8] Ele se refere explicitamente aos trabalhos de Malinowski; Durkheim; de Mauss e de Lévi-Strauss.
[9] Lourau em A análise institucional critica textualmente Ardoino; no entanto, junto com Lapassade, no livro Chaves de sociologia, apresentam uma proposta que aponta para uma análise institucional em três níveis. Ver também essa contradição em LAPASSADE, 1980, pgs. 92/93 e 135/138.
[10] É possível, mediante análises em situação que não se confundem nem com os “jogos da verdade” da psicossociologia, nem com “a higiene social” da sociologia das organizações, decifrar as relações que os indivíduos e os grupos mantêm com as instituições. Para além das racionalizações ideológicas, jurídicas, sociológicas, econômicas, políticas a elucidação dessas relações revela que o vínculo social é acima de tudo um arranjo do não saber dos atores com relação à organização social.” (LOURAU, 1995, p. 267).
[11] Na realidade ... a instituição atravessa todos os níveis de uma determinada formação social. (LAPASSADE, 1980, p. 93).
[12] Entendemos com essa “dobradinha”, que todo pesquisador realiza uma intervenção em seu campo de investigação, tendo em vista suas implicações. Mais detalhes sobre essa questão, ver MARTINS, 1996.
[13] A noção de intervenção refere-se a uma ação intencional que os indivíduos promovem no campo social. Aqui incluímos o pesquisador, o analista institucional, o professor, o educador, o pedagogo etc.
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