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Ardoino,
concomitantemente ao processo de construção de suas propostas referentes
à abordagem multirreferencial, levanta uma série de questionamentos
referentes aos processos de formação e à educação. Entendemos que, a
partir de tais questionamentos, ele aponta novas possibilidades para a
compreensão dos fenômenos educacionais, ampliando nosso campo de reflexão,
complexificando-o pela operacionalização de uma série de noções, tais como: negatricidade, autorização, heterogeneidade etc.
Neste
capítulo, exploraremos a visão de Ardoino sobre a educação, a relação
pedagógica etc., e discutiremos os conceitos que ele desenvolve e das quais
se apropria para compreendê-la.
Da educação...
O termo educação, etimologicamente, deriva principalmente do latim educo, as, atum, are que significa nutrir, alimentar e nos remete, também, para o sentido de fazer crescer, desenvolver, tornar grande, sugerindo a idéia de progressão. O termo também deriva, de uma maneira acessória, de educaceo, ere, que significa “tirar de”, “levar para fora”, “o que sai de um estado para o outro”, sugerindo mudanças; por exemplo, sair da infância e inserir-se no mundo do adulto (ARDOINO, 1998d).
Será a partir desta bipolaridade que encontraremos os diversos sentidos para o termo educação ao longo da história. Por um momento, o segundo sentido (que na visão de Ardoino não é a etimologia correta) coincidiu com as formas tradicionais de iniciação. “A iniciação tal como os etnólogos a estudaram nas sociedades tradicionais, onde há efetivamente um problema de entrada na sociedade, de entrada na comunidade, que pressupõe que se vençam provas, que são as provas iniciáticas.” (ARDOINO, 1998d).
No entanto, diz ARDOINO (1995d):
A
partir do momento em que nas sociedades modernas, os sistemas educativos se
institucionalizaram, convertendo-se, em última instância, em aparelhos de
Estado, o campo da educação parece restringir-se a populações
privilegiadas como a infância e a adolescência e aos perímetros específicos
da família, da escola e de seus prolongamentos. (p.5)
Ele nos assinala que o termo educação, tradicionalmente, tem sido referido à escola, à família, às crianças e aos jovens. “Isto quer dizer que há os territórios da família e da escola que são os lugares da educação, e os temas da educação são os mais jovens que os mais velhos procuram aculturar, isto é, dar as bases - ler, escrever, contar... o que vai permitir que eles se adaptem no mundo em que vivem.” (ARDOINO, 1998d).
Em função dos “fracassos” do sistema educativo, principalmente devido ao caráter elitista em que se ampara, emergiram vários movimentos de educação popular que se contrapuseram ao monopólio escolar, principalmente ao que é oferecido pelo Estado[1].
No entanto, para Ardoino, as redefinições quanto às idéias que circunscrevem o campo educacional aconteceram somente depois da Segunda Guerra Mundial, através do surgimento das noções de educação permanente e de formação contínua dos adultos[2]. “Estas provém ... dos métodos ativos, saídos tanto dos movimentos progressistas franceses e das correntes filosóficas (Rousseau), como das abordagens da psicologia social norte-americana (Dewey, Rogers, Moreno, Lewin, etc.).” (ARDOINO, 1995d, p.5).
Outra influência apontada por Ardoino, que contribuiu para a emergência de uma nova concepção de educação, foi o desenvolvimento de modelos mais culturalistas no âmbito das Ciências Sociais. Estes modelos substituíram os modelos constitucionalistas os quais estão relacionados com uma visão de homem cujas características são marcadas pela sua natureza, pela sua hereditariedade, e se preocupam muito mais com os processos de seleção do que com a própria formação. Enquanto os modelos culturalistas,
... influenciados pelas ciências humanas e, em especial pela psicanálise, privilegiam as idéias de “inacabamento” (Lapassade) e de “totalização em curso” (Sartre), dando lugar aos processos de grupo. Com este passo, de uma pedagogia de inspiração positivista (...) à problemática muito mais ampla da educação, se produz uma mutação epistemológica. (ARDOINO, 1995d, p.5)
Todavia, quando a formação contínua apareceu, ela foi vista, num primeiro momento, como um prolongamento da formação inicial, e mesmo, no limite, como uma forma de recuperação[3], como uma segunda oportunidade, quando na formação inicial não se permitiu aos indivíduos o acesso à escolarização. Tal abordagem localiza a educação contínua numa linearidade: o que vem depois pega a seqüência do que havia antes.
Cabe ressaltar, entretanto, que quando a dimensão da educação contínua vem somar-se às noções mais antigas de seleção e de formação inicial, não há uma justaposição pura e simples. A partir dela estabeleceu-se uma nova racionalidade quanto aos objetivos educacionais. “Quer dizer que literalmente no currículo as seqüências da formação inicial, da escola, da universidade para a formação profissional, deveriam ser deduzidas da compreensão em termos de formação contínua.” (ARDOINO, 1998d). Tal perspectiva, por sua vez, “faz aparecer revoluções epistemológicas” no que tange à compreensão dos fenômenos educacionais.
A escola, como transmissora de um saber e de um saber fazer, tem como modelo dominante a idéia de universalidade: o que caracteriza o saber é que ele é cientificamente estabelecido, o que lhe distingue da doxa, da opinião, e ele é universal. Isto significa que as noções são as mesmas em todo o tempo e em todo lugar. A vantagem dessa posição científica é que ela é ao mesmo tempo política, porque ela é uma garantia contra o arbitrário e a verdade que pré-existe, verdade essa que é única (que se trata de encontrar pelo trabalho científico), e é a mesma para todos: aqui não há espaço para as diferenças culturais!
Enquanto no âmbito da formação de adultos, da formação profissional contínua, não nos localizamos mais sob o signo da universalidade, mas sob o signo da particularidade e da singularidade.
Porque cada adulto, ou profissional em formação contínua, já tem uma experiência, saberes adquiridos, mas eles têm também visões de mundo, julgamentos, valores e o que vai tornar-se fundamental na perspectiva da formação contínua é a apropriação do conhecimento por cada um. Ora, cada um só pode-se apropriar do conhecimento pelo seu ritmo próprio, como percurso de uma maturação. Ao contrário, a escola, a formação inicial, por razões de gerenciamento econômico e de administração, fáceis de compreender, impõe cadências comuns a todos, e considera que se o professor souber o seu ‘metier’ e se os estudantes têm boa vontade, eles devem compreender, todos ao mesmo tempo e todos a mesma coisa, o que é puramente uma ficção. (ARDOINO, 1998d)
Ardoino assinala que o salto epistemológico introduzido pala formação contínua vincula-se à redescoberta da dimensão temporal e histórica no processo educacional. Tal dimensão não se refere ao tempo quantitativo, àquele contado em número de horas de aula, em número de semanas de aulas, ou número de anos. Trata-se de uma “duração”, de um tempo vivido, do ritmo próprio de cada um. Tempo esse que se estabelece a partir de nossos preconceitos, de nossos prismas, de nossos “filtros”... e de nossa temporalidade própria. A escola, por sua vez, “faz como se isso não existisse.” (ARDOINO, 1998d).
A partir desta última perspectiva, pode-se dizer que a educação contínua e a formação de adultos estão situadas no plano do inacabamento, e à medida que esta dimensão é incorporada ao conjunto de idéias que subsidiam a formação inicial, estas últimas se reformulam profundamente.
Esta visão de Ardoino encontra ressonâncias nos pensamentos de Paulo Freire. Para FREIRE (1997) o ser humano, como ser histórico-social
...
experimenta continuamente a tensão de estar sendo para poder ser e de estar
sendo não apenas o que herda mas também o que adquire e não de forma mecânica.
Isto significa ser o ser humano enquanto histórico, um ser finito,
limitado, inconcluso, mas consciente de sua inconclusão. Por isso um ser
ininterruptamente em busca, naturalmente em processo. (p. 18)
Quanto à educação permanente, ele esclarece:
A
educação é permanente não porque certa linha ideológica ou certa posição
política ou certo interesse econômico o exijam. A educação é permanente
na razão, de um lado, da finitude do ser humano, de outro, da consciência
que ele tem de sua finitude. Mais ainda, pelo fato de, ao longo da história,
ter incorporado à sua natureza não apenas saber
que vivia mas saber que sabia
e, assim, saber que podia saber mais. A educação e a formação permanente
se fundam aí. (FREIRE, 1997, p.20 – destaques no original)
Tanto Ardoino como Freire[4] ensinam que a educação - o ensinar-aprender – requer necessariamente o outro. Ambos localizam, portanto, a interação social como imprescindível para a compreensão dos fenômenos humanos - especificamente aqueles implicados com a educação.
O que está em questão aqui, portanto, é a qualidade da relação que se estabelece. Barbosa, analisando alguns aspectos da educação de adolescentes, e partindo do pressuposto de que a relação pedagógica se funda na relação humana, enfatiza o seu caráter formativo. Afirma esse autor
... sem o estabelecimento de relação humana com qualidade, sem o estabelecimento de vínculos com os adolescentes, certamente a produção de ação formativa não ocorrerá. Dizendo de outro modo: a qualidade do resultado da ação educativa é diretamente proporcional à qualidade das relações humanas estabelecidas com os alunos, crianças e adolescentes. (BARBOSA, 1997)
A qualidade do processo educacional a que o autor se refere está relacionada com a possibilidade de a relação pedagógica preparar os indivíduos para a vida. No entanto, Barbosa nos lembra
... o objetivo da educação não ocorre só com a presença do aluno, nem tão somente com a do educador, mas sim, na relação bipolar educador-educando. Com isto já é possível registrar uma dificuldade intrínseca ao nosso trabalho, que é ser sujeito (pensante da relação) e, ao mesmo tempo, objeto (constituinte da relação). (BARBOSA, 1997)
Isto significa dizer que a relação pedagógica é, em si mesma, uma relação implicada o que nos remete para a idéia de que a educação se dá muito mais por aquilo que somos do que por aquilo que falamos ou expressamos sobre tal relação.
Tais considerações levam o referido autor a estabelecer dois princípios norteadores para nossas reflexões sobre educação. O primeiro refere-se ao fato de que o conhecimento de nós mesmos é o parâmetro da qualidade e da profundidade da educação posta em prática por nós.
O segundo princípio diz respeito à noção de processo.
Embora de forma até estranha, não sei se haveria outro modo de dizer: a educação se dá enquanto ocorre. Depois de acontecida, podemos nos perguntar sobre o que ocorreu. Antes, podemos até imaginar. Mas, é no processo que a educação se dá. Portanto, para nós educadores, a finalidade da educação mais do que um lugar, um ponto de chegada, é o estabelecimento de processos relacionais pessoais, antes de mais nada. Desencadear processos, redirecioná-los, concluí-los, são tarefas sem as quais não se faz educação. Para se ter uma idéia da complexidade e da sofisticação de nossa profissão, basta lembrar o nosso despreparo para saírmos de processos relacionais pessoais em nosso cotidiano. (BARBOSA, 1997)
Podemos notar, pelas considerações de Barbosa e pela operacionalização das noções de interação, de processo, de implicação na compreensão dos fenômenos educativos, o quanto eles são complexos.
Ao deixarmos de visualizar os aprendizes a partir de uma perspectiva sócioeconômica – aquela que os localiza exclusivamente por sua classe ou renda familiar – ou psicológica – aquela que os classifica através das medidas de idade mental ou quociente de inteligência –, e tomarmos a interação e suas vicissitudes como objeto de nosso olhar, um passo diferente estará sendo dado, pois isto nos levará a abordar o processo não mais a partir de atributos, ou do caráter do ser, mas sim a partir das relações, onde há mudanças promovidas pelo próprio jogo dessas interações.
Vamos precisar mais um pouco ... é necessário distinguir entre as interações não implicadas como, por exemplo, as interações que a química poderá nos mostrar: corpos químicos podem ter interações entre si, com efeitos que se alteram, pois certos corpos químicos serão o produto da combinação de outros corpos. Em física tem-se a idéia de interação, na astrofísica há a idéia de interação, mas eu não preciso supor que essas interações sejam inteligentes e que elas estejam carregadas de desejo. É porque as interações humanas, entre João, Paulo, Pedro... são interações implicadas, quer dizer carregadas de desejo e de afetividade, e é por isso que elas nos interessam particularmente. Se o professor tem um grupo-classe no lugar de uma classe tradicional, quer dizer se ele ... espera alguma coisa com a formação de seus estudantes, do jogo dessas interações, [ele verá], João, Maria etc. ... em uma relação dinâmica onde cada um e cada uma vai exercer influência sobre o outro, o que eu chamo aqui alteração. Interação e alteração. A psicologia tradicional, a das atitudes e das capacidades, [à medida que incorpora tal discussão] será completamente revolucionada e modificada. (ARDOINO, 1998d)
Pensar a educação no âmbito da interação pressupõe, portanto, um redirecionamento – principalmente no que tange às intencionalidades das práticas educativas.
De forma geral, tais práticas sempre colocam a aprendizagem dos alunos na ordem de um saber (savoir) e de um saber-fazer (savoir-faire). O primeiro está relacionado com o conhecimento em si, enquanto o segundo está relacionado com as capacidades de resolução de problemas, utilização de materiais etc. Não existe, de imediato, uma preocupação com a formação do indivíduo - o que Ardoino denomina de saber-ser (savoir-être) (ARDOINO, 1971, 1973).
Cabe salientar, no entanto, que as relações que se estabelecem no âmbito da educação sob a perspectiva exclusiva de um saber e/ou saber-fazer estão estruturadas, segundo ARDOINO (1971, 1980) a partir dos pressupostos do que se denominou na literatura de “educação tradicional” (MIZUKAMI, 1986). Apesar das mudanças curriculares, das novas teorias sobre o ensino, dos novos esclarecimentos psicológicos sobre o processo de conhecimento etc., ainda encontramos em nossas salas de aula uma relação que se estrutura verticalmente, onde o professor detém o poder do conhecimento e o aluno é aquele que recebe e incorpora tal conteúdo. FREIRE (1974, 1979) denomina este modelo de “educação bancária”. ARDOINO, numa de suas conferências (1998d), nos lembra que a palavra “aluno” significa aquele que não detém a luz, e que o professor, imbuído da luz, “ilumina” seu aluno oferecendo-lhe a “luz”, ou seja, o conhecimento.
Além disso, as relações que se estabelecem no âmbito da escola estão, geralmente, subsidiadas por uma racionalidade que privilegia as metodologias, os conteúdos, as grades curriculares, a organização burocrática etc., desconsiderando-se aspectos não lógicos, irracionais, como os afetos, a emoção, as expressões do inconsciente etc.
Sobre tal questão, Ardoino esclarece
...não
lógico ou irracional não querem dizer aqui que escapam a toda lógica e
que são irredutíveis a toda racionalidade, mas antes que dependem de
outras lógicas ou de outros tipos de racionalidade, uma vez que nossas óticas
aristotélicas ou cartesianas familiares não permitem integrá-los
realmente nem explicá-los eficazmente... (ARDOINO, 1971, p. 66, n. 77)
Os educadores ao não reconhecerem estes elementos como inerentes à relação educativa nos remete à hipótese de que eles não estabelecem uma relação mais profunda com aqueles que estão trabalhando diretamente - os estudantes.
Assim, um envolvimento que contemple dimensões “não-lógicas”, as vicissitudes da subjetividade, as expressões do inconsciente etc. - necessário para o processo de formação do indivíduo - fica desqualificado, abortado, colocado de lado da relação educativa, já que o subjetivo é localizado na ordem do “não-confiável”, do “não- mensurável”. Prioriza-se, por exemplo no âmbito da escola, a técnica e o conteúdo, como mediadores da relação entre professor e aluno.
O que queremos dizer com isso é que a educação deve-se fundamentar não mais na
... tradição dum ‘saber’ ou dum ‘saber-fazer, mas da comunicação duma ‘experiência’, da aquisição dum ‘saber-viver’ ou dum ‘saber-ser’. A ação formativa [deve] produzir aqui um ‘conhecimento experimental’[5] dos problemas, que se pode opor ao conhecimento intelectual... (ARDOINO, 1971, p. 70)
Sob essa perspectiva, podemos estabelecer uma distinção entre “conhecimento” e “saber”. O conhecimento pode ser encontrado em qualquer biblioteca, dicionário ou enciclopédia. Está disponível, pois, como produção cultural, os indivíduos a ele podem ter acesso. O saber, por sua vez, toma outras dimensões, requer necessariamente a presença de um outro. É através do outro que o indivíduo chega a saber ser, a saber tornar-se. É na interação, portanto, que o indivíduo “sabe-se sendo”, é na troca, no vivido que aprende “saber-ser”.
Nessa direção, GREEN e BIGUM (1995), olhando a realidade escolar através do universo da ficção científica, nos levam a pensar sobre esta questão. Eles partem da idéia de que está surgindo uma nova geração, com uma constituição radicalmente diferente, em função do desenvolvimento da chamada cultura da mídia, o que traz alguns problemas para os educadores, tendo em vista que estes últimos não dominam a mesma “tecnologia” que os jovens. Assim, eles nos dizem:
Os
alienígenas da ficção científica são criaturas de outros mundos. Em
nossa presente e emergente ecologia digital, existem muitos desses mundos
que estão aparentemente fora do alcance de ciborgs mais velhos, mas no
interior dos quais os/as jovens ciborgs estão ocupados, neste exato
momento, na tarefa de moldar e fabricar suas identidades. As escolas podem
perfeitamente se tornar locais singulares, como mundos próprios nos quais
ciborgs geracionalmente diferentes se encontram e trocam narrativas sobre
suas viagens na tecno-realidade - desde que nós nos permitamos reimaginá-los
e reconstruí-los de uma forma inteiramente nova, em negociação com
aqueles que um dia tomarão nosso lugar. (GREEN e BIGUM, 1995, p. 240)
Devemos compreender aqui que o processo de “negociação” não se estabelece entre adversários, pelo contrário, ele se dá entre “parceiros necessários”, uma vez que, quando alguém se envolve numa negociação, necessita de um “outro” para poder negociar (ARDOINO, 1995c), há uma certa complementaridade entre eles, eles são faces de uma mesma moeda. Tal fato, portanto, nos leva a olhar o processo educativo como interatividade, inscrito no plano da intersubjetividade.
A citação de Green e Bigum nos coloca também diante de um problema que quase não levamos em consideração na análise dos processos educacionais: o da substituição de uma geração por outra, a continuidade social.
Se um dia nós assumimos ou assumirmos os lugares de nossos pais - os cyborgs mais velhos - um dia os adolescentes, os jovens - os cyborgs mais novos - assumirão nossos lugares. Isto significa que nós somos ou estamos ficando “velhos”; significa que, às vezes, as nossas respostas para as demandas de nossa juventude não suprem suas necessidades; significa que nós não temos todas as respostas e que eles podem nos ajudar, e muito, a compreender este mundo de rápidas e constantes transformações. Por outro lado, apesar de nós, adultos, sermos chamados de “quadrados”, “babacas”, “velhos” etc., pelos mais jovens, eles necessitam da nossa presença para poderem se inserir no universo do adulto, no universo social[6].
Sob a perspectiva da interação, o educar traz, em si mesmo, um paradoxo[7]. Se se entende o processo educacional como aquele vinculado ao desejo de manutenção do status quo social por parte dos mais velhos, através da manutenção das instituições sociais (como nos sugere Althusser); há, por outro lado, um movimento por parte dos mais jovens no sentido de modificarem os conteúdos socioculturais que lhes são oferecidos pelo entorno social (MARTINS, 1995). Tal perspectiva nos leva a entender que educar - as relações que
se entabulam entre os “mais velhos” com os “mais jovens” - é muito mais um processo de negociação” (de sentidos, de valores, de expectativas, de projetos etc.) do que uma sobreposição dos desejos e expectativas dos “mais velhos” sobre os “mais jovens”.
Para ARDOINO (1971), o paradoxo do educador
...
consiste talvez nisto: tira seu ser
de sua função de fazer ser ou, melhor ainda, de ajudar a ser mais. Se
compreende bem o seu papel e a sua missão, ele não o é, verdadeiramente, através de seu sucesso educativo, ao
terem o menino ou o discípulo conquistado efetivamente sua maturidade e sua
autonomia relativas, e sim quando, tornado inútil, ele não é mais, não existe mais, para esse menino ou para esse
discípulo, da mesma maneira que antes, a qual muitas vezes era a única
possível, ou a única válida para eles. E, justamente, o menino ou o discípulo
não podem ser verdadeiramente
sem quebrar o laço educativo, para romper a dependência, e ir ora em
diante sozinhos à conquista da autonomia. Aqui, como em outra parte,
afirma-se negando, ao menos provisoriamente, outra coisa: nós nos pomos, em
nos opondo. (p. 98-99 – destaques no original)
No entanto, há uma resistência, por parte do educador, em aceitar essa posição: morrer (ao menos simbolicamente) para permitir a outrem existir mais plenamente, de tal forma que este outrem assuma o lugar que o educador considera ser seu.
Tais considerações nos levam a olhar o processo educativo mais profundamente. Para esclarecê-lo buscaremos outras referências que nos auxiliarão a dimensionar melhor as proposições de Ardoino.
A noção de sujeito
A noção de sujeito desenvolvida por Ardoino estrutura-se, fundamentalmente, a partir da psicanálise; mais particularmente, das propostas de dois psicanalistas: Jacques Lacan e Cornelius Castoriadis. Em seguida, apresentaremos algumas considerações sobre o sujeito na perspectiva psicanalítica e, após, as idéias de Lacan e Castoriadis que subsidiaram Ardoino na composição de sua noção de sujeito.
Podemos depreender de nossa discussão do primeiro capítulo que a noção de sujeito proposta pelo cartesianismo o identifica como um sujeito consciente. À medida que, para Descartes, a verdade habita a consciência, será através dela que o homem terá acesso ao conhecimento e, conseqüentemente, à verdade. Desde Descartes, a representação é o lugar da moradia da verdade. O problema que se coloca é saber se chegamos a ela pela via da razão ou pela via da experiência. Apesar de diferirem quanto aos caminhos, racionalistas e empiristas sabem aonde querem chegar: ao reino da verdade, da universalidade, da identidade, desconsiderando, assim, aspectos vinculados à questão da subjetividade e da individualidade.
Para GARCIA-ROZA (1984), é com Descartes que a questão do sujeito receberá sua primeira formulação: diante da incerteza da realidade do mundo objetivo, Descartes afirma a certeza do cogito: Penso, logo existo. No entanto, Garcia-Roza avalia que a resposta de Descartes para esta questão é incompleta, já que ele nos diz o que é o pensamento, mas não nos diz o que é o Eu. O “Ego cogito” tem seu acento situado muito mais no cogito do que no ego.
Garcia-Roza assinala ainda que, quando Descartes se refere ao sujeito, não o faz como sujeito concreto, mas como substância pensante que divide com a res extensa e a res finita o domínio do real. O sujeito cartesiano é uma natureza humana abstrata, uma essência universal.
O cartesianismo supõe uma universalidade do espírito como fundamento do cogito. Se este é tomado como ponto de partida, não é para afirmar a singularidade do sujeito, mas a universalidade da consciência. O logos individual nada mais é do que um momento ou uma manifestação do Logos universal e supra-individual. (GARCIA-ROZA, 1984, p. 14-15)
Para Garcia-Roza a identificação da subjetividade - aquilo que diz respeito ao sujeito - com a consciência parece ser um ponto inabalável da filosofia moderna. Para ele, tal filosofia possibilita-nos duvidar da existência do mundo, até da existência de Deus, mas nada pode ameaçar a certeza inabalável do cogito. “A consciência é o absoluto”[8] (GARCIA-ROZA, 1984, p. 19). Nesse mundo concebido e conduzido cartesianamente, o ideal de uma consciência idêntica a si mesma é plenamente atingido.
A psicanálise inscreve-se neste universo rompendo profundamente com as noções de sujeito desenvolvidas sob o prisma do cartesianismo. ARDOINO (1998d), considera a idéia freudiana de inconsciente como “uma revolução coperniciana”, uma noção transformadora... Com tal conceito produziu-se um descentramento da razão e da consciência, derrubando-as do lugar sagrado em que ambas se encontravam.
Desde
Descartes, o sujeito ocupava um lugar privilegiado: lugar do conhecimento e
da verdade. A subjetividade, identificada com a consciência, devia se fazer
clara e distinta para que o Modelo fizesse seu aparecimento. Nessa transparência
o desejo era visto como perturbação da Ordem, era ele que modificava o
pensamento, tornando-o inadequado à realidade que pretendia representar.
(GARCIA-ROZA, 1984, p. 23)
É esse sujeito do conhecimento que a psicanálise vai desqualificar como sendo o referencial a partir do qual a verdade aparece. Além disso, a psicanálise não vai colocar a questão do sujeito da verdade, mas a questão da verdade do sujeito. Ela vai perguntar exatamente por esse sujeito do desejo que o racionalismo recusou.
Contra a unidade do sujeito defendida pelo racionalismo, a psicanálise vai-nos apontar um sujeito fendido: aquele que faz uso da palavra e diz “eu penso”, e aquele referente ao “eu sou”. O primeiro é identificado por Lacan como o sujeito do enunciado (ou sujeito do significado), e o segundo, como o sujeito da enunciação (ou sujeito do significante) que se coloca como excêntrico em relação ao sujeito do enunciado.
Paralelamente à clivagem da subjetividade em Consciente e Inconsciente, dá-se uma ruptura entre o enunciado e a enunciação, o que supõe admitir uma duplicidade de sujeitos na mesma pessoa. Uma fenda entre o dizer e o ser, entre o “eu falo” e o “eu sou”.
Daí
a conhecida inversão lacaniana da máxima de Descartes: ‘Penso onde não
sou, portanto sou onde não me penso.’ O que essa fórmula denuncia é a
pretensa transparência do discurso perseguida pelo cartesianismo e a
suposta unidade do sujeito da enunciação, mas aquele que produz o
desconhecimento deste último. Dito de outra maneira: o cogito não é o
lugar da verdade do sujeito mas o lugar do seu desconhecimento.
(GARCIA-ROZA, 1984, p. 23)
A introdução da idéia de inconsciente no campo do conhecimento, por sua vez, transforma a consciência em algo suspeito, não verdadeiro, pois o comportamento humano estaria sendo regido por algo que é da ordem do opaco, do inatingível. Além disso, no âmbito da psicanálise, não há lugar para a consciência total. O inconsciente permanece sendo o irredutível. Essa irredutibilidade, no entanto, não é devida a uma irracionalidade do inconsciente, ele não é o “lugar das trevas” por oposição à racionalidade interior do mesmo indivíduo, mas relativa à dinâmica das próprias manifestações inconscientes.
ARDOINO (1998a), tomando a metáfora do iceberg para explicitar a importância do inconsciente, comenta
...antes
da psicanálise eu só vejo a parte emergida [para fora] do iceberg, após
Freud eu sei que há a parte imersa e pelo seu volume é talvez dez vezes
mais importante do que esta parte que está emergida. Vocês compreenderam
que o iceberg é o psiquismo - metaforicamente ... [Isso] nos obriga a
reconhecer que há em nós uma parte importante de nossas habilidades psíquicas
e mentais que nos escapa, que nós não controlamos ... quer dizer que há
em nós a diversidade, o plural, nós não somos um nós somos muitos, nós
somos múltiplos.
Isso significa dizer que Ardoino considera imprescindível o reconhecimento do inconsciente permeando as relações humanas - principalmente nas relações educacionais - pois, será a partir desse reconhecimento que novos sentidos poderão ser vivenciados, desvelados, e atribuídos à cotidianidade das pessoas.
Cabe ressaltar, no entanto, que toda relação – e aqui mais especificamente a relação educacional - é uma relação de implicação[9]. Ou seja, o sujeito e seus outros se constituem concreta, interativa, mútua e reciprocamente, e sem nenhuma simetria, pelo jogo da negatricidade que os afeta; o que lhes permite atribuírem identidades uns aos outros, através do reconhecimento dos limites de cada um. Isso significa dizer que estamos diante do processo de alteração, ou seja, as relações se caracterizam pelas influências mútuas, resistências, desejos etc., entre os que nelas estão envolvidos. Há, portanto, transformações do comportamento por esse jogo das influências e da interação.
O reconhecimento da presença de um outro em mim, literalmente introjetada, incorporada, a descoberta do que de mim me é estranho, é fundamental, ou mais exatamente, fundador: eu serei plenamente eu mesmo a partir do momento que eu tiver consciência de minha pluralidade e de minhas divisões.
No entanto, o outro me atrapalha, me perturba, principalmente quando ele não faz o que lhe peço, aquilo que eu espero dele. Quando eu não tenho o domínio sobre ele eu não posso aceitá-lo.
Se
eu sou um militante político, se eu sou militante, por exemplo, da Liga dos
Direitos Humanos, eu posso ser um militante convicto da importância do
respeito ao outro, enquanto alteridade. É muito fácil dormir com a idéia
do outro, ele não ronca, ele não fede. Mas é muito mais difícil viver
com a alteração, quer dizer com a ação do outro, que tem negatricidade,
que se opõe a nós, e do qual o desejo não responde necessariamente ao
nosso. É aqui que se localiza toda a diferença entre o outro na sua relação
com o sujeito, mas uma relação que, ao
mesmo tempo, o outro já está dentro do sujeito, ele mesmo, como não
domínio, não controle, é parte imersa do iceberg. Quer dizer que o outro
deve ser reconhecido em cada um de nós... (ARDOINO, 1998d)
A relação humana, e mais particularmente aqui, a relação educativa, aparece como uma realidade estratificada e poliforma, significante e, por conseguinte, tão simbólica como real. Esta relação não se esgota no racional; no entanto, a irracionalidade constatada não se deixa reduzir aos aspectos patológicos da relação ou à outra racionalidade.
As relações contêm outra coisa, algo
mais... e aí está toda sua densidade, toda opacidade de seu passado e, ao
mesmo tempo, o poliformismo de seu porvir.
Lacan propõe que a emergência do sujeito se dá a partir da inter-relação dialética de três instâncias: o real, o imaginário e o simbólico. Para ARDOINO (1995e), estes três termos conservam algo de seu sentido inicial: imaginação por imaginário; símbolo por simbólico, real por realidade.
Assim,
o ‘imaginário’ conservará seu caráter abundante, exuberante, confuso,
enredado, enquanto que o ‘real’ se diferencia do ‘sujeito’ pensante
e se opõe a ele resistindo-o. De seu lado, o ‘simbólico’ conserva o
caráter de um laço, de uma relação de elementos separados, de
conformidade com a etimologia da palavra símbolo. (ARDOINO, 1995e, p.23)
ARDOINO (1995e) assinala que para Lacan o sujeito se estabelece, se constitui, se institui convertendo-se em uma quarta instância a partir do jogo com outras três figuras (“eu-criança”, pai, mãe - figuras plurais do outro), com todas as dificuldades de tal diferenciação. A entrada na vida e na sociedade, objeto de toda educação,[10] depende de uma evolução favorável desta identificação-confrontação-construção.
Enquanto que neste jogo de instâncias, necessariamente conflitivo, o “imaginário” é o eixo segundo o qual se efetuam as inversões psíquicas, entre o lugar do “eu” e o lugar do objeto do desejo, o “simbólico” é o eixo da relação com o outro e, por aí, com ele mesmo.
Será o simbólico que vai instituir no sujeito a ordem da linguagem (linguagem dos pais, da cultura), logo, linguagem própria do sujeito marcado por sua história.
O “imaginário”, no entanto, se estrutura na criança através da experiência ideal do “espelho”. Este “estádio” vai permitir a unificação, em uma representação global, deste corpo-ser, até então dividido, fragmentado (LACAN, 1996).
Lacan descreve o “estádio do espelho” para designar um momento da história do indivíduo no qual a criança forma uma representação de sua unidade corporal por identificação com a imagem do outro. Esse momento é concretizado de forma exemplar pela experiência que a criança tem ao perceber sua própria imagem num espelho, experiência essa que é fundamental para o indivíduo e na qual Lacan identifica a matriz, a partir da qual se formará um primeiro esboço do ego. Essa experiência deve ser entendida, segundo ele, “como uma identificação[11] no sentido pleno que a análise dá a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando este assume uma imagem.” (LACAN, 1996, p. 98).
Apesar do nome, o estádio do espelho não se refere necessariamente à experiência concreta da criança em face de um espelho, mas sim a um tipo de relação da criança com seu semelhante através da qual ela constitui uma demarcação da totalidade de seu corpo. Essa experiência pode-se dar tanto em face de um espelho como em face de outra pessoa - o si mesmo e o outro. O que a criança tem devolvido pelo espelho, pela mãe ou pelo outro é uma gestalt cuja função primeira é ser estruturante do sujeito, mas ainda em nível do imaginário (LACAN, 1996, p. 98-99).
A esse tipo de relação que caracteriza o imaginário Lacan chama dual. O termo expressa a natureza especular da relação que consiste numa oposição imediata entre a consciência e o outro. O que sobretudo é demarcado aqui é a distinção entre o interior e o exterior. Contudo, essa relação, por ser imediata, isto é, por não se fazer pela mediação da linguagem, se esgota nesse jogo especular no qual a primeira consciência se perde ou se aliena. Ao procurar a realidade de si, a criança encontra apenas a imagem do outro com a qual se identifica e na qual se aliena. O outro, no caso, é a Mãe.
Devemos esclarecer que se trata aqui de uma concepção topológica, onde o termo “Mãe” designa não uma pessoa concreta mas um lugar[12]. Por outro lado, a criança não é um corpo biológico, natural, suporte do desejo, mas ao contrário, um ser imaginário, formado pelas inscrições maternas: criança é o desejo do desejo do outro. Eis o lugar que ocupa a criança nesse início de vida (GARCIA-ROZA, 1984).
Cabe salientar que, quando dizemos que a fase dual que caracteriza o imaginário e que é anterior ao acesso ao simbólico por parte das crianças, não quer dizer que o simbólico esteja ausente. Apesar de a criança não ter ainda acesso à sua própria fala, ela é falada pelos outros, ela já surge num lugar marcado simbolicamente. Ela não dispõe ainda de uma função simbólica própria, no entanto, é desde o seu nascimento e mesmo antes dele, “simbolizada” pelos outros.
Cabe ressaltar, porém, que o imaginário não é autônomo em relação ao simbólico, mas um momento subordinado à Ordem Simbólica. Segundo ARDOINO (1995e), dos três registros a que Lacan se refere - o imaginário, o real e o simbólico - este último é o que deve ser tomado como determinante. O real não deve ser entendido como o equivalente ao dado ou à coisa em si; o real é o barrado, o impossível de ser definido, o que não é passível de simbolização, mas que só é apreendido por intermédio do simbólico.
O simbólico, por sua vez, é a ordem, a lei, traço que distingue o universo humano do animal, é ele que funda o inconsciente. A ordem simbólica é a ordem humana, é transindividual na medida em que precede o sujeito e é a condição de sua constituição como sujeito humano. É no interior do simbólico, e por intermédio dele, que o imaginário pode constituir-se.
Cabe assinalar, no entanto, que não devemos ver na fase do espelho o momento da constituição do sujeito. Essa fase é ainda dominada pelo imaginário e o que aí se produz é apenas um ego especular. O sujeito somente se constituirá quando da passagem do imaginário ao simbólico, isto é, através da linguagem. É através da linguagem que a criança ingressa na cultura, na ordem das trocas simbólicas, rompendo o tipo de relação dual que mantinha com a mãe (GARCIA-ROZA, 1984).
Como o imaginário se constitui no “estádio do espelho” como instância própria, seguirá sendo fundamentalmente, irremediavelmente, especular, ilusório, contraparte pobre, apesar de seu luxo, de um impossível real sempre fora de nosso alcance, porque é indiferente a nossa temporalidade própria.
Para Cornelius Castoriadis, também psicanalista, mas complementarmente durante muitos anos, militante trotskysta e historiador do movimento operário, a imaginação radical e o imaginário social estão mais além de um imaginário especular-reprodutor como o de Lacan. Fonte inesgotável e sempre indeterminada de significações, é ele tanto social como individual, e se estabelece através das práticas e do jogo próprio das instituições[13].
Como vimos anteriormente[14], CASTORIADIS (1995) desenvolve a noção de “magma” para caracterizar este “imaginário”. Com esta noção ele vai indicar a ilimitada abundância de significações que se criaram e se desenvolveram nos fluxos representativos, afetivos, intencionais das interações humanas, como no rio aberto do coletivo anônimo, enquanto fazer social-histórico.
Assim, a imaginação radical e o imaginário social se fortalecerão e se articularão mediante o jogo de um “duplo apoio” para produzir tudo o que é imaginável: o quimérico, os mitos, a ficção, a utopia, nossos sonhos como nossos projetos e as representações do que se convém chamar e reconhecer como real. História e temporalidade são as condições e os meios desta gênese. A alteração, a mudança, são indissociáveis do tempo; o que os permite e contribui para sua elaboração-perlaboração. Assim, nunca há produção de sentido senão através e por meio da história.
Cabe salientar que o imaginário aqui não é imagem de, mas criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de figuras/formas/imagens a partir das quais somente pode falar-se de “algo”. É a capacidade imaginante, fundamental, de colocar ou de dar-se, de figurar através da representação, algo que todavia não é. Mais ainda, algo que não pertence ao sujeito. Dita capacidade é uma característica que possibilita o sujeito fazer-se constantemente outro, aquilo que ele não é e colocar-se em e pela posição de figura, refazendo toda figura já dada. Nesse processo, as significações serão retomadas e serão trabalhadas mediante uma lógica conjuntista-identitária.
A lógica conjuntista-identitária opera (age e pensa) através de e em “elementos”, “propriedades” e “relações” postas como distintas e definidas. Ela
...repete,
prolonga, elabora a lógica do vivente - ou ao menos, uma parte essencial da
lógica do vivente. Sem dúvida, em uma imensa parte dessas operações... o
vivente opera por meio de classes, propriedades e relações. O vivente
constitui um mundo – constitui para
si seu mundo – organizado, cuja organização é evidentemente
correlativa à ... organização própria do vivente... O vivente cria para si a sua própria universalidade e a sua própria ordem.
(CASTORIADIS, 1987, p. 414-415 – destaques no original)
Nesse sentido, a lógica conjuntista-identitária possibilita ao sujeito existir socialmente, pois lhe é ofertado, através das instituições, os elementos para que ele se insira na sociedade em que vive. Cabe salientar, no entanto, que se essa lógica esgotasse por completo tudo o que existe, não poderia haver qualquer tipo de “ruptura”. Para Castoriadis:
Um
sujeito completamente inserido em um universo conjuntista-identitário,
longe de poder modificar qualquer coisa nele, não poderia sequer saber que está preso a um tal universo. (CASTORIADIS, 1987, p. 421)
Sob tal perspectiva não haveria a
possibilidade de autonomia, a auto-instituição do sujeito e da sociedade.
Tal ruptura, por sua vez, se estrutura a partir da dimensão imaginária.
Para Castoriadis, a existência – nesta dimensão – é
significação. As significações imaginárias sociais em uma dada
sociedade, nos apresentam, segundo ele, uma organização desconhecida,
irredutível, que possibilita aos indivíduos darem novos sentidos para suas
experiências, enquanto fazer-histórico
social.
O caráter de ruptura (e denegação) do imaginário afirma-se, por sua vez, não somente em relação ao sensível, mas também em relação ao estabelecido, com o que já estava aí.
Para ARDOINO (1995e) estas duas teorias do imaginário expressam visões de mundo, cosmogonias e, por conseguinte, as ideologias que delas se derivam. Para ele, o que parece especificar melhor estas duas visões de mundo, uma em relação à outra, e as teorias que elas contêm, é o estatuto que conferem à criação e às incidências, o que vai derivar-se de acordo com a definição do real.
Para a primeira, isto é para a teoria de Lacan, a criação não é nada mais que o descobrimento, a revelação, o desvelar-se do preexistente, do que já estava ali, mas permanecia escondido, inacessível a nossa consciência por falta de ferramentas adequadas. O real está verdadeiramente mais além do sujeito. O sujeito não é sempre mais que criatura, limitado aos únicos recursos e às disposições de sua inteligência, assim como ao conhecimento mais adequado possível das ciladas nas quais ele se inscreve e se constrói. O lugar do tempo e da história no universo do sujeito tem como função permitir esse descobrimento.
Para Castoriadis, se os limites vividos seguem sendo inegáveis a cada momento da história tomada em consideração, tais limites não são nem essenciais nem eternamente imutáveis: movem-se no tempo. O homem individual e o coletivo fazem-se através do “fazer histórico-social”. Ele está sempre inacabado e, conseqüentemente, sempre em curso de criação: “totalização em curso”, segundo a fórmula de SARTRE (1960). Assim, o homem se inventa, ao longo de sua história, através do que faz, e a modificação do real depende justamente deste imaginário na origem da concepção de seus pro-jetos (para realização dos quais as lógicas do tipo conjuntista-identitária seguirão sendo, claro, necessárias).
Uma vez colocada esta identificação-diferenciação-distinção, torna-se mais fácil considerar, sem grandes riscos de confusão, as teorias de Lacan e de Castoriadis como complementares sob certos pontos de vista. A deste último interessa-se pelo homem social-histórico, na interação, em suas dimensões tanto econômicas como políticas e psicológicas, enquanto que a do primeiro se limita ao mundo fechado do sujeito em suas relações com o sentido e com o inconsciente (ARDOINO, 1995e).
De certa forma, ambos os autores localizam a emergência do sujeito a partir da relação que estabelecem com um outro, ou seja, este sujeito se faz e se estabelece em relação, interativamente.
Estas considerações acerca do sujeito – tanto na perspectiva de Lacan como na de Castoriadis – levantam questões importantes que redimensionam e aprofundam nossa compreensão sobre os fenômenos educativos.
A educação é um fazer social através do qual a sociedade modela ou fabrica os indivíduos, isto é, é através delas que os “enfans” – pequenos seres-vivos-animais (conforme a visão Castoriadis) – são transformados em seres propriamente humanos. Nesse processo interagem, de um lado, a psiquê: fluxo representativo/afetivo intencional, fluxo de pulsões, universo do inconsciente etc.; e, de outro, a sociedade, como coletivo anônimo, presente através da relação materna, depois familiar, da linguagem e das demais instituições, impondo à psiquê um conjunto de significações que constituem a sociedade como sociedade e como tal sociedade.
Nesse sentido, a educação é, antes de tudo, um infrapoder que se exerce junto ao inconsciente, e é através desse trabalho que os indivíduos constroem a realidade, estabelecendo para si os modelos e os marcos identificatórios. Será através da educação, portanto, que se dará a “sociologização do psiquismo”; ela promoverá a articulação dialética entre “interno” e “externo”. Tal socialização, por sua vez, caracteriza-se pela apropriação – efetuada pela psiquê – das formas socialmente instituídas e das significações que as acompanham, estabelecendo-se uma interface entre o mundo privado e o mundo público (comum).
Assim, podemos dizer que o processo educacional, além de possibilitar a emergência do sujeito no universo social, também deve possibilitar aos indivíduos o acesso aos mecanismos inconscientes que perpassam a relação educativa, de forma que eles possam realizar uma reflexão crítica e deliberativa sobre os mesmos.
O indivíduo torna-se sujeito à medida que, pela reflexão sobre tais conteúdos, se coloca em condições de escolher lucidamente – ou com o máximo possível de lucidez – os instintos/pulsões e as idéias/representações que buscará efetivar ou atualizar na relação. Não se trata aqui de uma eliminação do inconsciente como uma instância, mas sim de promover uma nova forma de relação de tal forma que o recalque deixe lugar para o reconhecimento dos conteúdos inconscientes e para a reflexão sobre eles, possibilitando que a inibição, a fuga ou o agir compulsivo cedam lugar à deliberação lúcida.
Isto significa dizer que a relação educativa, tanto por parte dos educandos como por parte dos educadores, é permeada por demandas que se inscrevem na ordem do inconsciente, na ordem do incontrolável, na ordem do não-dito, e que, caso essas demandas não sejam reconhecidas, haverá lugar para atitudes repressivas e, até, violentas – violência simbólica ou mesmo física. Nesse sentido, o educador deve, principalmente ele, ter clareza de suas demandas, de seus desejos etc., que emergem na relação pedagógica, uma vez que, por um lado, em decorrência da própria relação, entrará em contato com conteúdos inconscientes até então recalcados, e por outro, será depositário dos desejos também inconscientes de seus estudantes[15]. Tal clareza lhe possibilitará certa tranqüilidade no tratamento deste conteúdos, de tal forma que não venha atuar[16] na relação.
Tal perspectiva nos leva a pensar a relação educativa não mais sujeita a uma racionalidade que mutila os indivíduos, submetendo-os a um processo de adaptação social onde a afetividade, as emoções, os desejos, são ignorados; pelo contrário, entendemos tal relação como interatividade que, como tal, traz em si mesma a possibilidade de alteração, de criatividade, de ineditismo, localizando os indivíduos inscritos na ordem do inacabamento, processo que se consolida ao longo de um fazer social histórico.
Gostaríamos de retomar algumas questões levantadas na sessão anterior para refletir, mais especificamente, sobre a relação entre professor e aluno. Dissemos que as relações educativas são permeadas por demandas, muitas vezes inconscientes, que aí são depositadas pelos envolvidos no processo. No âmbito da psicanálise, este processo pode ser entendido como uma expressão do mecanismo de transferência.
Este
termo foi utilizado por Freud pela primeira vez no seu livro Interpretação
dos sonhos, de 1900. Segundo ele, alguns acontecimentos que ocorriam
durante o dia eram transferidos para o sonho; tais conteúdos, todavia, eram
modificados pelo trabalho do próprio sonho.
Mais
tarde, Freud observou que, no âmbito do processo terapêutico, a figura do
analista também funcionava como um “resto diurno”, sobre o qual o
paciente “trabalhava”, transferindo para ele imagens que se relacionavam
com antigas vivências do paciente com outras pessoas. Assim, por exemplo,
um paciente, a partir de um determinado
momento do processo terapêutico, relacionava-se com Freud como se ele fosse
seu pai, com medo da autoridade.
O
fato de nenhum paciente perceber este movimento de transferência fez com
que Freud considerasse esse fenômeno como uma manifestação
do inconsciente, que constitui, por isso, um bom instrumento para a análise
dessa instância psíquica.
Freud observa ainda que a transferência também ocorre nas
diferentes relações estabelecidas pelas pessoas no decorrer de suas vidas.
Entendida como “...a repetição de
protótipos infantis vivida com uma sensação de actualidade
acentudas...” (LAPLANCHE e PONTALIS, ©1967, p. 669), a
transferência pode se dirigir tanto ao analista – aqui no âmbito do
processo psicoterapêutico – como a qualquer outra pessoa. Nesse sentido,
podemos dizer que estamos diante de um fenômeno que permeia qualquer relação
humana, o que nos possibilita compreender a relação entre professor e
aluno também sob essa perspectiva.
Freud
assim define as transferências:
São novas edições, ou fac-símeles, dos impulsos e fantasias que são
criados e se tornam conscientes durante o andamento da análise; possuem,
entretanto, essa particularidade, que é característica de sua espécie:
substituem uma figura anterior pela figura do médico. Em outras palavras:
é renovada toda uma série de experiências psicológicas, não como
pertencentes ao passado, mas aplicadas à pessoa do médico no momento
presente. (FREUD, 1901[1975c], p. 113)
Assim,
um professor – tal como o analista – poderá
tornar-se a figura a quem serão dirigidos os interesses de seu aluno
porque é objeto de transferência. E o que se transfere – nas relações
– são as experiências vividas primitivamente com os pais. Ou seja, a
transferência é uma reedição dessas experiências.
MILLER
(1987), em sua leitura do termo transferência na obra de Freud,
especialmente quando ele aparece na Interpretação
dos sonhos, aponta que o que ocorre na transferência é, na verdade,
uma transferência de sentido. O desejo do sonho opera um deslocamento:
utiliza formas estranhas a ele, apodera-se delas e as infiltra com seu próprio
sentido, dotando-as de uma nova significação. Nesse sentido, transfere-se,
desloca-se algo (sentido) de um lugar para outro.
A
transferência de sentido que ocorre entre os restos diurnos e os elementos
do sonho ocorre igualmente em relação ao analista e, de modo análogo, em
relação ao professor. Miller afirma que a transferência, no sentido
psicanalítico, produz-se quando o desejo se aferra a um elemento muito
particular, que é a pessoa do analista. Podemos dizer o mesmo a respeito da
relação entre professor e aluno: a transferência produz-se quando o
desejo de saber do aluno se aferra à pessoa do professor.
Cabe
salientar ainda que o desejo inconsciente busca aferrar-se a “formas”
(aos restos diurnos, ao analista, ao professor) para esvaziá-las de seus
sentidos, para em seguida atribuir um sentido especial àquela figura
determinada pelo desejo[17].
Ou seja, instalada a transferência, tanto o analista como o professor
tornam-se depositários de algo que pertence ao analisando ou ao aluno. Em
função dessa “posse”, tais figuras ficam carregadas de uma importância
especial, importância essa da qual emana o poder sobre o indivíduo, ou
seja, em razão dessa transferência de sentido operada pelo desejo, ocorre
também uma transferência de poder.
Além
disso, se o analisando ou o aluno se dirigem ao analista ou ao professor,
atribuindo-lhe um sentido conferido pelo desejo, então essas figuras passarão
a fazer parte de seu cenário inconsciente. Isso significa que o analista ou
o professor, colhidos pela transferência, não são exteriores ao
inconsciente do sujeito, mas o que quer que digam será executado a partir
desse lugar em que estão colocados. Sua fala deixa de ser inteiramente
objetiva, mas é escutada através dessa posição especial que ocupa no inconsciente do
sujeito.
A
idéia de transferência – no âmbito da relação entre professor e aluno
–indica-nos que o professor pode ser depositário do desejo do aluno, e
será a partir desse vínculo que a palavra do professor ganha poder. Esse
processo se dá no plano do inconsciente e o aluno não quer que o professor
saiba do desejo que o move (nem mesmo pode saber dele, já que se está
falando do desejo inconsciente). O que esse aluno quer é que seu professor
suporte este lugar em que ele o colocou. Para o professor, tal posição é
incômoda pois aí seu sentido como pessoa, é esvaziado, desconsiderado,
para dar lugar a um outro sentido que ele desconhece.
Encontramos-nos,
enfim, diante do paradoxo do professor discutido anteriormente. Para superá-lo
bastaria dizer que cabe a ele – professor – renunciar ao modelo por ele
determinado; aceitar o modelo que lhe confere o aluno; suportar a importância
daí emanada e conduzir seu aluno em direção à superação dessa importância;
eclipsar-se para permitir que esse aluno siga seu curso: ele deverá
“morrer” (simbolicamente) para que o aluno “viva”.
No
entanto, devemos reconhecer que o professor é também um sujeito marcado
por seu próprio desejo inconsciente. Aliás, é exatamente esse desejo que
o impulsiona para a função que exerce. Por isso, o jogo que se institui na
relação entre professor e aluno traz em si mesmo uma grande complexidade:
só o desejo do professor justifica que ele esteja ali, mas, estando ali,
ele precisa suspender seu desejo, em proveito do desejo do outro.
Esclareçamos um pouco mais nossas últimas considerações. Quando apontamos que o “professor deve morrer para que seu aluno viva”, queremos dizer que ele, num determinado momento da sua relação de professor com o aluno, deixa de ser. A sua função de professor, sujeito que, em princípio, deseja ensinar passa a ser desnecessária para o aluno. Ele é desnecessário na medida em que o aprendiz adquire uma autonomia, autoriza-se, toma decisões por si mesmo.
Na realidade, o que se dá é uma mudança na relação. O aluno ao autonomizar-se, não necessita mais de seu “mestre”; este “morre”, propiciando um outro tipo de vínculo com aquele que foi seu aprendiz. A relação que inicialmente significava a assumpção do lugar de professor e de aluno, pode transformar-se, por exemplo, numa relação de amigo, de companheiro de trabalho (muito freqüente no âmbito da diversidade), onde novos papéis são assumidos, e novos desejos podem emergir.
No âmbiro da relação entre professor e aluno, no entanto, o professor, ao ter clareza sobre as demandas são depositadas na relação, por parte do aluno, e sobre suas próprias demandas que, muitas vezes, são reeditadas devido às transferências dos alunos, terá oportunidade de posicionar-se na relação sob uma perspectiva da “escuta clínica”, evitando que sua ação se efetive através de uma contra-transferência[18].
Tal postura – a da escuta – possibilita ao professor, além do desenvolvimento de uma disponibilidade para com as manifestações inconscientes de seus alunos, uma disponibilidade para consigo mesmo, permitindo-lhe, concomitantemente, um reconhecimento do outro – o aluno, reconhecendo-se.
O aspecto pedagógico implícito na relação educativa, sob a perspectiva aqui desenvolvida, diz respeito à convivência com as diferenças, ao processo de alteração e suas vicissitudes, à heterogeneidade em suas variadas dimensões (sociais, econômicas, psíquicas etc.), o que coloca no centro de nossa atenção a própria interatividade e o conjunto de sentidos (instituídos e instituintes) que são operacionalizados nas relações.
Partindo do pressuposto de que o que está em jogo no processo educacional é a inserção social de indivíduos mais jovens, processo esse mediado por indivíduos mais velhos, ARDOINO (1995b) coloca no centro da discussão sobre educação, questões que dizem respeito à autorização e à autonomia dos envolvidos no processo. Isto é, a questão que está em pauta vincula-se ao assumir um lugar, seja na relação em si mesma, seja no meio social em que ela se dá.
É sob essa perspectiva que podemos entender as finalidades da relação educativa – entre pai e filho, entre professor e aluno, entre mestre e educando etc.: elas dizem respeito ao processo de autorização. ARDOINO (1995b), fazendo uma digressão etimológica da palavra autorização, diz:
Autorização,
em sua etimologia, está relacionada com autoridade e autor (do latim auctor,
is; auctoritas, atis, que provem de augere,
auctum: aumenta) A autorização é,
em seu sentido trivial, a ação pela qual se autoriza alguém a fazer algo,
ou a existência de algo.(...) O adjetivo autorizado (a) designa
indiferentemente aquele que tem recebido autoridade ou autorização (no
sentido de permissão). No âmbito dos espaços educativos reservados à infância
(família, escola), é evidentemente a acepção de conceder uma permissão
a que predomina. No entanto, este uso limitado esconde uma problemática
muito mais essencial da educação: a da autoridade. ( p. 4)
A autoridade é tradicionalmente o poder de fazer-se respeitar, obedecer, de dirigir, de decidir. Em certos aspectos, a autoridade aparece quase como sinônimo de poder, mas sempre se agrega a ela uma referência a valores morais como fundamento de sua legitimidade. Para Ardoino, é sob esta dimensão que se coloca a questão da autoridade dos pais, do professor, do educador na relação propriamente educativa.
Os professores, os pais, os educadores cumprem funções instituídas no âmbito de sistemas sociais mais amplos e mais estreitamente definidos. A estas funções correspondem determinadas competências, responsabilidades, poderes, que devem usar. Mas, concomitantemente, estes indivíduos são objeto de desejos, de manifestações transferenciais, de “projeções” e de inversões afetivas, mais ou menos inconscientes, através das “demandas” de seus companheiros. A elucidação de tais processos, dos jogos simbólicos, das implicações, do imaginário, dos fantasmas, dos fenômenos de dependência, é de suma importância para a compreensão da dinâmica interna da relação educativa.[19]
A palavra autorização assim como a palavra autoridade têm o mesmo radical – auctoritas – que significa autoridade e derivam, por sua vez, de auctor, que significa autor. Nesse sentido, o processo de autorização deve ser entendido como um tornar-se, o que implica certa independência daqueles que ensinam: é um assumir-se, autorizar-se.
Cabe
aqui estabelecer uma distinção. Segundo Ardoino, a Sociologia das Organizações
francesa, em primeiro lugar com Michel Crozier e em seguida com Alain
Touraine, desenvolveu uma teoria em que aponta, através da idéia de ator
social, um retorno ao sujeito na Sociologia. A partir de então pensa-se que
o ator é uma personalização, uma subjetivação na Sociologia (ARDOINO,
1998d).
Tal movimento, segundo Ardoino, se estabelece por uma oposição entre o agente e o ator.
O
agente na organização é como uma parte de uma engrenagem; ele se define
pelas suas funções por suas competências e por suas tarefas, ele não tem
iniciativa, ele não interpreta. É uma peça de um conjunto, e o modelo
subjacente, é o modelo mecânico. A sociologia das organizações diz que o
ator é uma melhor representação porque é um pouco mais complexa. Um ator
interpreta seu papel, ele tem iniciativa, ele tem estratégias e
contra-estratégias, ele tem acesso a uma negatricidade. Então há um
progresso na passagem do agente ao ator. (ARDOINO, 1998d)
No entanto, ao discutir sobre a questão da autorização no âmbito das relações, Ardoino afirma a necessidade de acrescentar ao díptico agente-ator uma terceira representação, uma terceira maneira de ver, que seria o autor. O autor é aquele, por exemplo, que cria uma peça teatral e o ator é um outro que representa tal peça. O que faz a diferença entre os dois é que o autor reconhece a si mesmo e é ao mesmo tempo reconhecido pelos outros como estando na origem de alguma coisa, esse não é o lugar do ator. O lugar do autor – na medida em que se reconhece e é reconhecido – é o lugar da responsabilidade - a responsabilidade por sua criação, por sua palavra.
Então
o problema importante aqui é como, nas situações sociais, o indivíduo se
torna autor no sentido etimológico
[da palavra], se torna ele mesmo, autor daquilo que ele faz, criador daquilo
que ele faz, governante daquilo que ele faz. (ARDOINO, 1998d)
Cabe salientar, no entanto, que ninguém é somente autor de si mesmo; somos, na maioria dos casos, co-autores porque há autores anteriores que são os nossos pais, e também há outros autores laterais que são os outros, ou seja, nós nos autorizamos a partir da relação, sob a influência dos outros – a autorização implica alteração.
Em outras palavras, tomar a autorização como finalidade da educação significa possibilitar ao indivíduo o exercício da capacidade de fazer de si mesmo o seu próprio autor, de tornar-se o autor de si mesmo, de sua vida, e é nisso que a educação pode contribuir para o desenvolvimento dos indivíduos.
A perspectiva desenvolvida por Ardoino, quando ele insere a autorização como uma questão central nas discussões educacionais, aproxima-se do conceito de autonomia desenvolvido por Castoriadis.
Para Castoriadis quase todas as sociedades sempre viveram na heteronomia na medida em que há uma certa denegação de sua dimensão instituinte. Isto
...condiz
com a criação de indivíduos absolutamente conformes, que vivem e se
pensam na repetição (aliás ainda que possam fazer, fazem muito pouco),
cuja imaginação radical é reprimida o mais possível; indivíduos que
quase não são verdadeiramente indivíduos...” (CASTORIADIS,1992, p. 139)
A autonomia, para esse autor, surge assim que uma interrogação explícita e ilimitada se manifesta, incidindo sobre as significações imaginárias sociais e seus fundamentos. Nas palavras de Castoriadis, esse é um
...
momento de criação que inaugura não só outro tipo de sociedade, mas também
outro tipo de indivíduos. Eu falo de germe,
pois a autonomia, tanto social como individual, é um projeto. O surgimento da interrogação ilimitada cria um eidos
histórico novo, - a reflexibilidade no sentido pleno ou
auto-reflexibilidade, como o indivíduo que a encarna e as instituições
onde ela se instrumenta. (CASTORIADIS, 1992, p. 139)
Cabe salientar que autonomia (auto – próprio/nomos – lei quer dizer dar-se a si mesmo suas leis, um nome, ser independente) significa reconhecer o surgimento de um novo eidos na história do ser: um tipo de ser que se dá, a si mesmo, reflexivamente, suas leis de ser.
Se a autonomia se inscreve na ordem da educação, como pressupõe Ardoino com suas proposições sobre autorização, e se consideramos que a educação é um conjunto de alvos, de finalidades, o que a inscreve na ordem do político, podemos dizer com Castoriadis que “o objeto da verdadeira política é transformar as instituições, mas transformá-las de maneira que estas eduquem indivíduos para autonomia” (CASTORIADIS apud ARDOINO, BARBIER e GIUST-DESPRAIRIES, 1998, p. 61).
No entanto, Castoriadis assevera:
Somente uma coletividade autônoma pode formar
indivíduos autônomos – e vice-versa, daí o paradoxo para a lógica
corrente. Veja um dos aspectos desse paradoxo: a autonomia é a capacidade
de questionar uma instituição dada da sociedade – e é esta instituição
que, através sobretudo da educação, deve nos tornar capazes de questioná-la.
(CASTORIADIS apud ARDOINO, BARBIER e GIUST-DESPRAIRIES, 1998, p. 61)
Ou seja, segundo Castoriadis, o paradoxo de um projeto educativo voltado para a autonomia, para a autorização consiste no fato de que ela deve ajudar os seres humanos a aceder à autonomia ao mesmo tempo em que interiorizam as instituições existentes.
Tal paradoxo, principalmente no que tange aos aspectos relacionados com os fins da educação, é aprofundado na medida em que não há um consenso na determinação destas finalidades, pois, de um lado, as finalidades da educação são ditadas pela sociedade, refletindo suas necessidades. Por outro lado, os aprendizes, professores, pais etc. exercem uma influência, consciente ou inconscientemente, sobre as determinações institucionais destas finalidades. Além disso, a Pedagogia, a Filosofia, as Ciências da Educação intervêm também com seu peso específico na determinação das finalidades. Tais circunstâncias nos permitem dizer que não existe uma correspondência necessária entre estas esferas no entendimento do que vem a ser as finalidades da educação, e que, por determinado momento, elas podem ser até contraditórias[20].
Ao longo das sua conferências bem como em seus textos, Ardoino utiliza-se de um termo - negatricidade - para marcar uma característica da relação educativa. Ele define negatricidade “como a capacidade que cada um pode ter de desjogar, pelas suas próprias contra-estratégias, as estratégias do outro que pesam sobre ele, das quais ele se tornou um objeto.” (ARDOINO, 1995f).
Tal definição remete-nos para a idéia de que, nas relações que se estabelecem entre as pessoas, há uma certa necessidade de que cada um reconheça o outro como tal. Além disso, ela vislumbra o fato de que as relações são permeadas por desejos, por afetos, por sentimentos etc., muitas vezes desconhecidos pelas pessoas nelas envolvidas.
Na discussão acima sobre alguns aspectos da teoria lacaniana assinalamos que o sujeito se estrutura como sujeito quando se insere no universo da linguagem, ou seja, quando opera no registro do simbólico. Este – o simbólico - estrutura-se a partir de uma dupla vertente: a da palavra e a da linguagem.
A palavra é o que vai permitir ao indivíduo superar a disputa que caracteriza a relação dual imaginária que se estabelece durante o estádio do espelho (conforme discussão anterior). É a palavra, como mediadora, que vai possibilitar o reconhecimento do outro.
A linguagem, como a outra vertente do simbólico, é o que vai se colocar numa relação de exterioridade em relação ao sujeito, isto é, como um conjunto estrutural independente do indivíduo que fala. Essa exterioridade da estrutura em relação ao sujeito foi o que Lacan chamou de o Outro. Ela é constituinte da ordem do inconsciente.(LACAN, 1977).
Se em termos do desenvolvimento infantil podemos traçar uma gênese da fala, o mesmo não acontece com a ordem simbólica. Ela não tem origem, a criança está, desde o seu nascimento, imersa na linguagem e submetida à estrutura do simbólico. É esse grande Outro, concebido como um sistema de elementos significantes, que permite ao indivíduo falar ao outro (seu semelhante).
Nesse sentido, pensar a presença de negatricidade nas relações nos remete para a necessidade de um reconhecimento do outro como um lugar da palavra, diferenciado.
GARCIA-ROZA (1984), estudando as formulações sobre o desejo na teoria lacaniana, nos assinala que esse autor freqüentou, no início de suas formulações psicanalíticas, um curso ministrado por Kojève. Nesse curso, Kojève apresentou algumas interpretações da obra de Hegel, especialmente sobre a Fenomenologia do espírito.
Garcia-Roza, trilhando algumas proposições de Kojève, nos esclarece que para esse autor:
O
sujeito surge somente a partir do Desejo (Begierde) É pela ação de
assimilar o objeto que o homem se vê como oposto ao mundo exterior. O
primeiro desejo é um desejo sensual: o desejo de comer, por exemplo, através
do qual o homem procura suprimir ou transformar o objeto assimilando-o.
Nessa medida, toda ação surgida do Desejo é uma ação ‘negatriz’,
pois tem por objetivo a destruição ou transformação do objeto para que o
desejo possa ser satisfeito. No lugar da realidade objetiva (destruída ou
transformada), surge uma realidade subjetiva pela assimilação ou
interiorização do objeto (GARCIA-ROZA, 1984,
p. 141)
Mais adiante ele acrescenta:
Para
que a ação produzida pelo Desejo tenha um caráter antropógeno, ela tem
de se voltar para algo que supere o real enquanto coisa, enquanto dado
natural. Ora, a única realidade que apresenta essa característica é o próprio
Desejo. Assim sendo, para que o Desejo se torne humano e para que constitua
um Eu humano, ele só pode ter por objeto um outro Desejo. Dois desejos
animais tornam-se desejos humanos quando abandonam os objetos naturais para
os quais estavam voltados e se dirigem um para o outro. Desejar o Desejo do
outro, eis o que caracteriza o Eu como Eu humano. (GARCIA-ROZA, 1984, p.
142)
Lacan, em uma de suas conferências, nos diz algo que se aproxima muito da formulação acima: “O que o sujeito visa como objeto é a demanda do Outro; o que o sujeito demanda quando tenta apreender o objeto inacessível de seu desejo, é o objeto do Outro” (LACAN apud MANONI, 1988, p. 100, n. 13)
Isso significa dizer que a ação “negatriz” do desejo tem por objetivo transformar e assimilar o desejo do outro. A ação negatriz do desejo humano vai-se fazer no sentido de um desejo de tentar fazer com que o desejo do outro ‘reconheça’ o valor representado pelo primeiro.
O
que o Desejo humano deseja é ser reconhecido como Desejo e para que o outro
reconheça o meu Desejo ele tem de se submeter aos valores que meu Desejo
representa. Em outras palavras, só posso afirmar o meu Desejo na medida em
que nego o Desejo do outro e tento impor a esse outro meu próprio Desejo[21].
Ocorre, porém, que esse outro, enquanto Desejo humano, também procura
fazer o mesmo comigo. O encontro de dois Desejos é o confronto de duas
afirmações que procuram através da negação (transformação/assimilação)
do outro, o reconhecimento. Trata-se de uma luta na qual um dos dois Desejos
terá de ser destruído, pois reconhecer o Desejo do outro é fazer seu o
valor que o Desejo do outro representa. Nessa luta cada um dos indivíduos
arrisca a própria vida pelo reconhecimento. (GARCIA-ROZA, 1984, p. 142-143)
Garcia-Roza, por sua vez, nos mostra como a concepção psicanalítica - especialmente a lacaniana - do desejo obedece ao modelo hegeliano, distinguindo-se deste apenas num ponto: no que diz respeito à natureza inconsciente do Desejo.
Podemos depreender das considerações anteriores sobre o desejo que, no plano da relação imaginária, o desejo alienado só pode libertar-se na medida em que desaparece o outro como suporte do desejo do sujeito. Se essa relação fosse mantida, não somente seria impossível a constituição do sujeito como sujeito autônomo, como também não seria possível falarmos de subjetividade individual. A coexistência de duas subjetividades autônomas seria impossível.
Na relação imaginária, portanto, o desejo também permanece marcado pela sua função “negatriz”. Nesse tipo de relação - pensando-a em termos hegelianos - só há lugar “para o Senhor ou para o Escravo”, isto é, o desejo de um necessariamente se aliena no desejo do outro. Será exatamente através do simbólico, da linguagem, que o desejo vai entrar numa relação de reconhecimento recíproco.
Numa
das sessões anteriores, quando discutimos a relação entre professor e
aluno sob a perspectiva da transferência, nós assinalamos que o professor
pode ser investido pelo desejo do aluno, e a partir desse investimento a
palavra do professor ganha poder. Mas, assevera KUPFER (19889):
O problema é que, com esse poder em mãos, não é fácil usá-lo para
libertar um “escravo” que se escravizou por livre e espontânea
“vontade”. A História mostra que a tentação de abusar do poder é
muito grande. No caso do professor, abusar do poder seria equivalente a usá-lo
para subjugar o aluno, impor-lhe seus próprios valores e idéias. Em outras
palavras, impor seu próprio desejo, fazendo-o sobrepor àquele que movia
seu aluno a colocá-lo em destaque. (p. 93)
Cedendo
a essa tentação, cessa o poder desejante do aluno. O professor entenderá
sua tarefa como uma contribuição para a formação de um ideal que tem uma
função reguladora, normatizante e, fundará aí, sua autoridade. Sua missão
será submeter seus alunos à sua figura de mestre. Aqui o aluno poderá
aprender conteúdos, gravar informações, espelhar fielmente o conhecimento
do professor, mas provavelmente não sairá dessa relação como sujeito autônomo
e pensante.
Esta posição do professor nos leva a um outro aspecto da autoridade docente, qual seja, a relação entre a prática pedagógica e o vínculo de dependência. É necessário aqui diferenciar a autoridade decorrente do papel, ou outorgada pela hierarquia existente na instituição, daquela conquistada e assumida pela ausência do impulso de controlar e dominar o outro. Infelizmente, é a primeira que predomina na instituição escolar (conforme DIAS DA SILVA, 1992).
O vínculo de dependência do aluno em relação ao professor é, por sua vez, inerente à relação pedagógica autoritária. Segundo a descrição de BOHOSLAVSKY (1989), ele se funda nos seguintes pressupostos: “saber mais”; proteger o aluno para que não cometa erros; julgar o aluno e determinar a legitimidade dos seus interesses; definir a comunicação com o aluno, na qual são estabelecidos o contexto e a identidade dos participantes. Assim, “o professor é quem regula o tempo, o espaço e os papéis desta relação ... quem institui um código e um repertório possível.” (BOHOSLAVSKY, 1989, p. 321).
Outras suposições podem ser levantadas. Por exemplo, a de que a relação autoritária e o vínculo de dependência são necessários porque o professor, na condição de adulto e sábio, fornece um modelo ideal de conduta que o aluno deve imitar se quiser ser um “adulto sábio”. E é preciso dobrar resistências, impulsos e tendências indesejáveis desde a infância, já que, como diz o ditado popular, “é de pequenino que se torce o pepino”.
Nossas observações sobre a relação entre professor e aluno no âmbito de nossas atividades, indicam-nos que a própria figura do professor já suscita na criança as reações desejadas: obediência, imitação, passividade, conformismo etc. São as reações naturais da fase de heteronomia anterior à adolescência (conforme proposição de PIAGET, 1989), mas que podem ser (e são) reforçadas pela conduta autoritária do professor. Tal conduta pode, em conseqüência, prolongar as atitudes heterônomas da criança, além do tempo necessário.
Além disso, a relação autoritária mantém o aprendiz em situação de isolamento, pois, como assinalamos anteriormente, a única comunicação possível (ou permitida) se faz com o professor e, mesmo assim, com dificuldade. A situação do “cada um por si” é ideal para o aparecimento e/ou manutenção do egocentrismo (intelectual ou afetivo, conforme PIAGET, 1989) e das condutas individualistas.
Entretanto, à medida que a relação se pautar num reconhecimento mútuo do outro – enquanto seres desejantes, singulares, inscritos em temporalidades próprias – a heterogeneidade implicada nas relações é considerada como um dos pontos de partida para o processo educacional.. Isso significa dizer que o exercício da diferença no âmbito das relações – e especialmente naquelas que se estruturam com fins educativos – possibilitará aos indivíduos um processo voltado para a superação das dificuldades de convivência com o outro, cujo desdobramento pode propiciar o autorizar-se, a autonomia, a independência, a superação do egocentrismo e o exercício da cooperação.
Um dos pontos de partida operacionalizado por Ardoino para analisar as relações humanas (especialmente as relações de cunho educativo) é a teoria da comunicação. Sob essa perspectiva ele estabelece uma distinção entre informação e comunicação. Para ele a informação é uma noção muito ampla, quer dizer, polissêmica.
A
informação está na luz do sol, nas trocas de calor, caloríficas, térmicas,
nas transmissões de fluxos nervosos através das sinapses. O código genético,
o DNA, não são outra coisa senão informação. Trata-se de uma noção
extremamente ampla. (ARDOINO, 1998d)
No âmbito da teoria da comunicação, a informação pode ser considerada como a transformação de um conteúdo através de redes apropriadas, ou seja, a transmissão da informação e a eficácia dessa transmissão dependem da forma das redes, independente das pessoas e da sua psicologia. Nesse sentido, a modelização da informação, através de sua esquematização, é um modelo mecânico. Podemos dizer que o modelo teórico da transmissão da informação pressupõe
...uma
fonte de informação - um emissor - uma linha para a transmissão da
informação, isso são as redes. Os relés como ponto de apoio, como a TV,
tem como função reativar, regenerar a mensagem para que as mensagens não
empobreçam. (ARDOINO, 1998d)
Este modelo da informação é um modelo antes de tudo mecânico. Com o emissor-linha-relé-receptor, a metáfora é a metáfora da máquina, a idéia de conservação e transmissão da mensagem é marcada pela fidelidade: a conservação da identidade da mensagem. Os barulhos, as distorções, os ruídos... são perturbações, e isso é mal. A lógica da informação é centrada na identidade: a mensagem deve ser a mesma no input e no output, donde podemos depreender os pressupostos de uma certa cientificidade de base positivista (conforme vimos no primeiro capítulo).
Tal idéia expressa o modelo de um
determinismo linear: um conjunto de condições A que determina um fenômeno
B. Essa formação do determinismo é a expressão do princípio da
causalidade “todo fenômeno tem uma causa”, no qual, mais ou menos
explicitamente, o efeito resulta da causa e a causa gera o efeito.
Tal representação, principalmente no que tange aos processos de ensino e aprendizagem sociais, “corresponde a uma transfusão de excesso de saber, que o mestre teria em si, no espírito virgem, ou ao menos mais vazio do aluno.” (ARDOINO, 1971, p. 26). A metáfora da educação como “nutrição” aqui é muito bem explicitada. O “mestre”, à medida que detém conhecimento - representado como uma forma de alimento, como um maná - e, com determinada metodologia, transmite-o ao aluno, produz o efeito desejado: a fixação do conhecimento.
...
a maior parte do ensino e da escola é vivido sob o modo da informação.
Acrescentemos a isso que a informação é pensada essencialmente em termos
do procedimento ... entendido procedimento como uma maneira sistematizada,
racionalizada de fazer. (ARDOINO,
1998d)
Tal perspectiva nos fica mais clara ao observarmos que a ênfase que se imprime na experiência escolar - e até na universidade e nos cursos de formação oferecidos para professores – reduz-se a questões vinculadas à instrução, à aprendizagem, às metodologias, marcadas por um certo “intelectualismo” (ARDOINO, 1971, p. 73).
A comunicação, por sua vez, apresenta outras características. Ela é temporal, é entendida como processo, ao passo que o ideal dos procedimentos – da informação – é estar situado fora do tempo. Dito de outra forma, os procedimentos técnicos se estruturam com a perspectiva de possibilitar o controle e o domínio, no sentido de retroalimentação do modelo cibernético. Essa capacidade de procedimento de ser abstrato e fora do tempo, no plano da eficácia, tem outra vantagem política, pois se os procedimentos e os controles forem os mesmos para todos, não há o risco do arbitrário. A maior parte do sistema educativo é pensado sob este modelo (ARDOINO, 1998d).
Para Ardoino, enquanto o modelo da informação pressupõe a fidelidade, o modelo da comunicação pressupõe a traição. Ou seja, a intencionalidade, a finalidade da comunicação é uma apropriação pelo outro de determinado conteúdo da mensagem e, para que exista essa apropriação, haverá forçosamente alteração, transformação...
a
apropriação de determinado conteúdo passa pelos meus próprios filtros,
minhas resistências, minhas experiências adquiridas, minha formação
anterior, minha memória. E por conseqüência, eu traio! (ARDOINO, 1998d)
Sob a perspectiva da teoria da comunicação, podemos dizer que a educação –principalmente quando consideramos a relação entre professor e aluno – é muito mais que um processo informativo. Sabemos que todos sentem a necessidade de deter certas informações, uma vez que elas nos possibilitam a interação com a sociedade, com a cultura, com o trabalho etc. (saber, saber-fazer). Mas, mesmo que a adaptação seja algo inevitável no processo de educar, ela não expressa o objetivo da educação, visto que na relação educativa, está em jogo a produção de sentidos, a produção de uma relação com o saber, o que diz mais respeito a um saber-ser, a um saber-tornar-se.
Cabe salientar que, no âmbito da teoria da informação, quando veiculamos uma mensagem, sua aprendizagem torna-se passível de ser avaliada. A metodologia educacional, especialmente a didática, tem dedicado inúmeros esforços na tentativa de alcançar o controle sobre esse tipo de situação, e fazer com que a mensagem emitida pelo professor possa ser recebida pelo aluno com a menor perda possível, sem ruídos... Durante todo esse processo, o que é levado em consideração é a condição de que o saber é sempre algo consciente, de que é pertinente ao “eu” e passível de controle e avaliação. Tal forma de abordar a questão nutre-se das considerações cartesianas sobre a noção de consciência e seu lugar na constituição do sujeito epistêmico, como salientamos anteriormente.
A educação, no entanto, é um universo que engendra uma série de possibilidades que vai desde a discussão sobre qual é sua definição - o que é a educação? - até a tentativa de definir qual é o saber que um sujeito necessita possuir - o que a educação deve ensinar? De um ponto ao outro (da forma ao conteúdo) existe uma dispersão intrínseca no campo educacional que assume dimensões que necessitam de uma referência.
Do ponto de vista do conteúdo - o que se deve ensinar? - a referência de se que servem os educadores provém do domínio do conhecimento científico. Essa vinculação, iniciada a partir do Séc. XVII, foi cristalizada de tal forma que chega a ficar estranho o fato de a educação poder ensinar algo que não seja científico. Tal fato acaba por produzir na relação entre educação e ciência uma relação de pertencimento, criando uma idéia de que o propósito da educação seria o de ensinar apenas o que fosse científico.
É possível ainda observar que a ciência tem se constituído cada vez mais a garantia de que o conteúdo ensinado pelo discurso pedagógico é verdadeiro: a ciência se transformou no “regulador” do discurso pedagógico.
Às preocupações com o conteúdo e com a metodologia - assim como com os aspectos burocráticos e organizativos que dão suporte ao sistema educacional - vincula-se uma perspectiva de avaliação dos estudantes enfatizando muito mais o seu desenvolvimento intelectual e cognitivo do que o seu desenvolvimento afetivo e social.
Cabe ressaltar que a tendência do educador em querer pautar sua ação e suas reflexões por uma única verdade, acaba por segregar do discurso pedagógico outros dizeres... A própria didática, por exemplo, é uma extensão da formalização científica no âmbito da educação, isto é, a didática migrou nitidamente do universo da arte - como o propõe Comenius em sua Didática Magna – para o campo da técnica, para o método.
Estabelecer este retorno ao termo “arte”, para referenciar o exercício do educador, não significa um retrocesso – uma “pitada” de nostalgia – mas sim entender que tal processo não deve ser pensado exclusivamente sob a perspectiva estabelecida pelos modelos científicos, pois, entendemos que os métodos de transmissão dos conhecimentos importam pouco diante do desejo de aprender da criança (MANONI, 1988).
As concepções que subsidiam a prática dos profissionais da educação - pedagogos, professores etc. - estão estruturadas em pressupostos da racionalidade técnica que, fiéis aos princípios científicos, tentam defender certa padronização no exercício de diferentes profissionais. Isso nos leva a crer na suposição de que, a partir de uma metodologia, uma didática - embasada nos pressupostos científicos - todos os alunos aprenderão a mesma coisa ao mesmo tempo. Em outras palavras, na busca de uma eficácia científica e de uma otimização da prática profissional do educador, identificamos nos docentes uma tendência de eleger os aspectos mais racionais da prática docente, a saber: os aspectos didático-metodológicos em detrimento dos aspectos relacionais, estes reveladores de um avesso que é mais constitucional do que causal. Por outro lado, a perspectiva racionalista tratou de defender a aplicação de conhecimento e do método científico à análise e à construção de regras que regulem tanto a aprendizagem dos estudantes como a intervenção do professor – tentando estabelecer uma relação de causa-efeito entre estes dois pontos.
Nesse sentido, MANONI (1988) nos esclarece:
A
educação está subordinada à imagem de um ideal estabelecido logo de
entrada pelo pedagogo que,
simultaneamente, proíbe toda e qualquer contestação desse ideal, ou seja,
do desejo que serve de suporte à sua opção pedagógica; pede à criança
que venha ilustrar o fundamento de uma doutrina. (p.44)
O desejo de um reconhecimento social e institucional por parte da educação conduziu por vezes a concepções redutoras e a uma interpretação acrítica dos modelos científicos dominantes
Toda
a investigação em educação ... está impregnada da ilusão de encontrar
o bom método racional, da certeza de que a modernidade é a aplicação ao
conjunto da Natureza (e também à Natureza humana) de processos racionais
de controlo. (...) Ora, o que melhor define esta imensa esperança é a
decepção permanente. A razão racionalizadora em Pedagogia anda sempre nos
tropeções. De Helvétius a Compayré, de Spencer a Skinner, mas também de
Rousseau a Ferrière, é a eterna lamentação contra o mundo que recusa os
benefícios da razão pedagógica, preferindo atolar-se no errôneo, no quimérico,
no absurdo. (CHARBONNEL apud NÓVOA, 1996, p. 79)
Devemos reconhecer que o esforço de racionalização do ensino teve ganhos muito significativos. Mas, pelo caminho, caiu na tentação de reduzir as dimensões da ação pedagógica, expurgando-a das dinâmicas difíceis de controlar objetivamente. Como se o ato educativo se inscrevesse necessariamente no prolongamento de um raciocínio científico. Como se fosse possível e desejável instaurar uma qualquer razão educativa, limitando ao mínimo os fatores aleatórios do cotidiano escolar.
A procura por parte das Ciências da Educação de uma cientificidade subsidiada numa lógica de racionalidade decalcada das Ciências Naturais – e especialmente por parte da Pedagogia – é insustentável, uma vez que esta racionalidade científica é também um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que não se pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas. Para Nóvoa, “a tentativa de impor uma explicação una dos fenómenos educativos encerra uma normatividade inaceitável nos dias de hoje” (NÓVOA, 1996, p.79).
Ao partirmos do princípio de que a educação não expressa apenas um projeto científico ou racional, acentuamos o caráter plural da ação educativa, pois esta realiza-se a partir de uma variedade de valores e de crenças, de ideais e de situações, que é ilusório tentar controlar a priori. Como diz Nóvoa, “a educação não encontra a sua razão de ser apenas no razoável, mas também no trágico; não é apenas um acto racional, mas também dramático.” (NÓVOA, 1996, p. 80).
Na realidade, a idéia de que possa existir um saber não sujeito ao controle, isto é, um saber que se inscreve na ordem do inconsciente, do qual o “eu” nada sabe, ainda é estranha ao campo da educação. Nesse campo, o inconsciente só é considerado como qualidade, e não como uma instância psíquica, como propõe a psicanálise.
Tal exclusão, no entanto, resulta na ausência de uma posição da educação diante da ocorrência de um saber que não sabe de si, um saber que, mesmo sendo estranho ao eu, sustenta o verdadeiro desejo (geralmente inconsciente) tanto de aprender como de ensinar. Assim, mesmo que a educação consiga alcançar o êxito sobre a aquisição do conhecimento - o saber e o saber-fazer - pelo viés da informação, escapa-lhe de pensar a educação como comunicação, pela via de um saber que não se sabe - o que diz respeito a um vir-a-ser, ao imponderável, a um saber-ser-sendo.
Cabe ressaltar que tais considerações nos remetem para um sujeito cindido - conforme apontamos anteriormente - um sujeito que não corresponde ao que é estabelecido pelo cogito cartesiano.
A constatação dessa cisão conduz à compreensão de que o acúmulo de conhecimento por si só não torna ninguém menos ou mais apto para ensinar, já que a transmissão de conhecimentos pode ocorrer por uma via que escapa a própria consciência. Tal consideração nos remete ao pensamento de Freud, exposto em O interesse científico da psicanálise (1913 [1975a]), onde ele afirma que só pode ensinar aquele que está capacitado para entrar na alma de seu aluno. Ou seja, ensinar significa reconhecer a presença do inconsciente.
Se fosse possível “desconectar” o inconsciente, poderíamos conceber a existência de um processo de ensino que agisse exclusivamente nos moldes da teoria da informação. Assim, todo ruído causado pelo “subjetivo” seria atenuado, ou mesmo excluído, desde que o emissor e o receptor se adequassem ao método proposto. Entretanto, essa premissa não será verdadeira se considerarmos a existência do inconsciente, tal como a psicanálise o propõe.
No entanto, o inconsciente está sob controle de uma censura. Para os psicanalistas, especialmente os lacanianos, é através dela que o inconsciente se transforma em algo inassimilável ao “Eu”. Ou seja, o inconsciente é o que o “Eu” censura para torná-lo apreensível a si, em uma tentativa de buscar alcançar uma significação sobre esse Outro que a ele se manifesta, de modo incessante, como enigma.
A censura é o rastro da impossibilidade do “Eu” em realizar a assimilação do que é inconsciente, e não é por acaso que, ao seguir essas pegadas, Freud estabeleceu as formas por meio das quais o inconsciente se manifesta: os sonhos, os sintomas, os chistes, os atos falhos, e os lapsos da língua. Tais manifestações apontam, com insistência, a ocorrência de lacunas em nossa vida mental consciente, vazios que denotam a existência de um outro texto do qual o “Eu” nada sabe, porque não lhe é possível lê-lo. Esse outro texto, entretanto, não cessa de se manifestar como um saber que, não sabendo de si, exige que se produza um sentido para ele.
Tal perspectiva nos remete para uma compreensão do processo educativo onde o que se enfatiza não é simplesmente acumular/repetir conhecimentos, mas um lugar de criação de sentido - mais ainda, de disputa de sentido - onde o reconhecimento do lugar do outro e de si mesmo passa a ter mais relevância.
Na Introdução à psicanálise, (1917 [1975b], Freud aponta para esta questão com a seguinte proposta: se existe o inconsciente, se existe o desejo, quando se fala de determinado assunto, este pode vincular-se a algum aspecto resistido do sujeito, ligar-se a conteúdos inconscientes, e ele pode não entender o exposto. Isto significa dizer que as pessoas não entendem tudo o que se quer ensinar, elas entendem o que podem entender, o que faz um sentido para elas dentro das possibilidades de seu próprio inconsciente, uma vez que ninguém escapa ao próprio desejo.
A relação entre professor e aluno, por ocorrer na tangência de dois arcos – o que enuncia o desejo de ensinar e o que enuncia o desejo de saber – implica um inesperado, um jogo do qual só temos as regras e o local e, nunca, a certeza prévia de seu resultado.
Assim, ao invés de o ensino ocorrer por meio de uma apropriação que o professor possa fazer do aluno, do tipo ‘eu sei o que você deve saber’, ele se dará em um espaço vazio, em que impera o acaso, pois o professor não sabe o que o aluno deseja saber, mas o aluno supõe que o saber que ele busca está no professor. O enunciado do saber produzido pela enunciação do desejo de ensinar criará uma oferta que estabelecerá um porto onde ocasionalmente o desejo de saber do aluno poderá atracar.
Tal consideração nos leva a afirmar que as relações que se produzem na cena pedagógica dizem-nos de um fenômeno de transferência[22].
Sob tal perspectiva, MAUCO (1967), nos esclarece:
O diálogo do educador e da criança é duplo. Ele se expressa sobre dois planos: inconsciente e consciente, que se ignoram mutuamente. É portanto de fato um diálogo a quatro vozes. A energia psíquica dos desejos que permanecem inconscientes entre os adultos e a criança determina a natureza de sua relação mais profundamente o que não pode tornar o diálogo verbalizado. (p. 249 – destaques no original)
Isso nos leva a afirmar que existe implicitamente na relação entre professor e aluno a enunciação de dois desejos - o de ensinar e o de saber -, e como a ação desses dois sujeitos é também mediada por conteúdos inconscientes, ela se dá no âmbito da imprevisibilidade e do desencontro, e não numa perspectiva de um planejamento didático: o lugar do previsível.
Afirmamos anteriormente que a relação pedagógica pressupõe o reconhecimento do outro num determinado lugar - tanto o do aluno no que tange ao professor, como o deste com relação ao aluno. A posição de aluno a que nos referimos é uma posição de ignorância, a ignorância de quem verdadeiramente interroga e não aquela de quem pergunta apenas para ser confirmada a sua resposta. A ignorância radical sustenta a situação de ensino à medida que faz faltar no professor o saber.
A posição que o professor ocupa na relação com o estudante é a daquele que sabe e isso o aluno atribui a ele. Entretanto, tal fato não livra o professor da ambivalência própria da relação humana, que é circunscrita por afetos contraditórios (conforme vimos quando discutimos o paradoxo do educador).
Entender a relação educativa, a relação entre professor e aluno, entre pai e filhos etc., como relacional significa reconhecê-la como a expressão que traz à tona o seu próprio avesso, ou seja, o que é da ordem de uma descontinuidade, de rupturas, de confrontos etc.
No campo da educação formal, professores e alunos são sujeitos falantes e falados, portanto, condicionados à linguagem, que possui sempre um caráter restaurador de uma imagem de completude jamais alcançável. O “relacional”, no entanto, diz respeito também à dispersão dos sujeitos confrontados uns com os outros. Lá onde o social fenece. Lá onde há o irredutível do desejo.
Tal fato nos remete novamente à Freud que, em uma passagem de suas Novas Conferências (1932 [1975]), afirma que o educador jamais deixará de se defrontar com a constituição pulsional da criança - que por si só já é rebelde. Logo, para que o professor possa dar conta de seu trabalho, ele deve ser capaz de
...
reconhecer a particularidade constitucional do educando, de inferir, a
partir de pequenos indícios, o que está se passando na mente imatura
desta, de dar-lhe a quantidade exata de amor e, ao mesmo tempo, manter um
grau eficaz de autoridade. (FREUD, 1932[1975], p. 183)
Tal citação pressupõe, portanto, a impossibilidade de que método educativo possa ser uniformemente bom para todas as crianças, em vista das particularidades de cada uma delas, assim como, das dos professores.
O não-reconhecimento da presença da afetividade, das manifestações inconscientes etc. que estão intrinsecamente presentes na relação educacional, leva Georges Mauco a afirmar:
Enquanto
pais, pedagogos, médicos, reeducadores e, generalizando todos aqueles que
tem uma tarefa educativa não tenham esta compreensão psicanalítica dos
comportamentos humanos, sua ação será limitada e as vezes nefasta. (MAUCO
apud ARDOINO, 1980, p. 76)
Tal compreensão significa reconhecer que os sujeitos implicados na relação educativa são sujeitos constitutivamente heterogêneos, de uma incompletude fundante que mobiliza neles o desejo de completude, aproximando-os um do outro, com a esperança de encontrarem a fonte da totalidade nunca alcançada. Nesse sentido, as relações sociais e, especialmente as de cunho educativo, caracterizar-se-ão como um espaço de imposições, confrontos, desejos, paixões, retornos, imaginação etc.
Vale lembrar que o sujeito, esse proposto por Freud, é o sujeito do inconsciente que se manifesta antes da certeza, que está lá onde não se pensa. Sujeito que desenvolve um discurso marcado pelo seu avesso - o inconsciente. Dividido, quebrado, descentrado... o sujeito se definiria por um inevitável embate com o outro que o habita – estamos, enfim, nas palavras de Ardoino, no âmbito da alteração...
A busca ilusória de tornar-se um, por sua vez, se expressaria através da linguagem, recurso em que o homem imagina construir e expor sua unidade. Nesse sentido, Garcia-Roza nos escarece que, no âmbito da psicanálise, a linguagem, antes de ser o lugar transparente da verdade, é o do ocultamento.
O
sentido que se apreende oculta um outro sentido mais importante, e essa
importância será tanto maior quanto maior for a articulação entre a
linguagem e o desejo. Enquanto o discurso chamado racionalista procurava
afastar o desejo para que a verdade pudesse aparecer na sua pureza
essencial, a psicanálise vai procurar exatamente a verdade do desejo. Sua
função é fazer aparecer o desejo que o discurso oculta...
(GARCIA-ROZA, 1984, p. 66)
Sob tal perspectiva - a da clínica[23] - pensar o relacional, no âmbito da relação pedagógica, significa considerar os conflitos, as diversidades, a heterogeneidade como fatores constitutivos do processo de ensino e aprendizagem. Assim, dizer do conflito, da incerteza, da diferença... é anunciar uma falta constitutiva, uma não-completude que marca a ação do educador em toda sua prática. Ou seja, educar significa confrontar-se com o insucesso – o insucesso que é portador de uma outra ordem que não é a da certeza da ordem – e que é denominada por Freud de ordem pulsional. Dito de outra forma, pensar o relacional sob o prisma da psicanálise é reconhecer que a pulsão está no coração da relação educacional, é reconhecer que, para além da técnica, da metodologia, da didática..., a relação é circunscrita por fenômenos irredutíveis, que se inscrevem na ordem do inconsciente.
A partir das considerações anteriores podemos dizer que a atuação do educador se dá no âmbito do impossível. É uma profissão cujo fracasso é constitutivo. Isso significa dizer que a formação técnica (aquela que diz respeito aos métodos etc.) não garante o desempenho elevado e regular dos gestos profissionais, pois, ao se trabalhar com sujeitos em suas particularidades, o sucesso nunca está assegurado.
Além disso, nós, seres humanos, percebemos a realidade de acordo com um filtro desejante, que nos faz privilegiar e conectar aspectos ligados à nossa estrutura psíquica e não necessariamente à lógica desenvolvida por um professor.
Nesse sentido, entender a educação sob o prisma das considerações desenvolvidas até aqui, pressupõe localizá-la no âmbito da traição, traição necessária e legítima, uma vez que ela é igualmente uma conseqüência da autonomia buscada e a maneira como cada um pode vivenciar seu processo de autorização.
Isso já é verdadeiro no âmbito da família:
...
se os meus filhos não me traem eles não serão jamais eles mesmos porque
eles permanecerão prisioneiros do meu desejo, para que eles possam ser eles
mesmos é preciso que eles se protejam dos meus desejos. Mas não existe
somente o desejo dos pais, há os desejos dos professores de ter discípulos
fiéis que o compreendam bem, que repetem o que ele diz, sem acrescentar
nada, sem traições. E isso não é possível, felizmente isso não é possível.
(ARDOINO, 1998d)
Tal afirmação nos leva a pensar sobre a importância do conflito no processo educacional. Cabe assinalar que conflito aqui não está sendo entendido como uma representação da lógica aristotélica, o princípio da não-contradição, que leva a crer que a contradição seria uma espécie de patologia, como o barulho é uma distorção, como os barulhos são uma patologia para a comunicação. Mas, como uma relação – entre pais e filhos, entre professores e alunos etc. - através da qual os mais jovens aprenderão a ser... Isso significa dizer que, no âmbito da escola, a partir da relação pedagógica, o que se ensina está muito mais vinculado aos aspectos do vivido, do experienciado das pessoas ali envolvidas, do que aos programas, aos currículos etc.
NOTAS DO CAPÍTULO 4
[1] No Brasil tal manifestação pode ser encontrada no movimento conhecido como Escola Nova, na década de 20.
[2] Podemos dizer que, no Brasil, na década de 60, a emergência da metodologia para a educação de adultos elaborada por Paulo Freire também causou um profundo impacto nas concepções educacionais vigentes até então.
[3] Esta perspectiva - a da recuperação - pode ser encontrada no ideário que subsidia o que se denominou, na década de 60, de educação compensatória. A diferença é que enquanto na educação contínua a intervenção objetiva recuperar uma falta específica referente ao processo de escolarização; a educação compensatória objetivava “corrigir as deficiências das crianças praticando os códigos, treinando habilidades, ensinando a obedecer, discriminando a cultura de origem, culpando a criança, a família e o meio, pelas faltas existentes.” (KRAMER, 1982, p. 62).
[4] As maneiras de Freire e de Ardoino abordarem a questão da dinâmica educacional são muito parecidas. No entanto, cabe ressaltar, que o segundo inclui, como referencial teórico para compor os elementos de sua análise, conceitos oriundos da psicanálise; sob essa perspectiva ele leva em consideração mecanismos que implicam o inconsciente, tais como, a transferência, o desejo, a contra-transferência etc., ao passo que Freire não caminha por aí.
[5] Ardoino refere-se ao caráter do experiencial, do vivido da prática educativa.
[6] ABERASTURY (1980) e ABERASTURY e KNOBEL (1981) esclarecem esta questão sob uma perspectiva psicanalítica.
[7] O sentido que atribuímos a esse termo é o mesmo do de DELEUZE (1974), qual seja, o paradoxo é uma afirmação que comporta, ao mesmo tempo, dois sentidos opostos.
[8] GARCIA-ROZA (1984), ao analisar as discussões filosóficas referentes a esse tema, chama-nos a atenção para o fato de que, desde Descartes, passando por Leibniz, Kant, Hegel, Husserl etc., a razão continua soberana.
[9] Implicação é considerada aqui conforme o sentido que lhe demos anteriormente.
[10] Podemos dizer que este é também o objeto da cura psicanalítica em função das carências ou das impropriedades decorrentes das próprias vivências educacionais.
[11] Segundo LAPLANCHE e PONTALIS (Ó1967) identificação é o "processo psicológico pelo qual o indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações." (p.295).
[12] A definição de lugar nos remete para um série de conceitos: ele pode ser pensado como um lugar geográfico, como contexto histórico etc. mas lugar também designa um elemento relacional, pressupõe uma relação.
[13] Ver dialética instituído-instituinte discutida no capítulo anterior.
[14] Ver página 107 e seguintes.
[15] Discutiremos esta questão mais adiante, quando tratarmos da questão da transferência na relação pedagógica.
[16] Queremos referir-nos com este termo ao processo de “acting out” descrito no âmbito da psicanálise para designar “um carácter impulsivo,rompendo relativamente com os sistemas de motivações habituais do indivíduo ... e que toma muitas vezes uma forma auto- ou hetero-agressiva. No aparecimento do acting-out vê o psicanalista a marca da emergência do recalcado”. (LAPLANCHE e PONTALIS, Ó1967, p. 27 – destaque no original).
[17] Ver adiante discussão sobre negatricidade.
[18] No âmbito da psicanálise, este termo designa o “conjunto das reações inconscientes do analista à pessoa do analisando e mais particularmente à transferência deste.” ((LAPLANCHE e PONTALIS, ©1967, p. 146). O mesmo pode ser aplicado à relação entre professor e aluno.
[19] Estamos aqui no âmbito da perspectiva de análise institucional das relações, conforme discutimos anteriormente.
[20] MARTINS (1996), analisando o contexto escolar como espaço sociocultural e sociopsicológico, sugere que ele seja compreendido como um “palco de contradições”, tendo em vista a diversidade cultural em que o sistema educacional está inserido.
[21] Este é o mecanismo do processo de transferência, conforme discutimos anteriormente.
[22] Conforme discussão anterior.
[23] Conforme discussão no capítulo dois.
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