|
Assinalamos, ao longo deste trabalho, que os fenômenos educativos estão relacionados aos processos sociais próprios de cada sociedade e implicam questões relativas aos valores, aos devires, às finalidades das sociedades. Nesse sentido, pensamos a educação inscrita numa temporalidade, seja no plano da história de cada sociedade, seja no plano da vida de cada indivíduo.
Afirmamos ainda que nossa sociedade se constitui como sociedade a partir de um emaranhado de instituições (linguagem, normas, regras etc.) e estas, por sua vez, concorrem para assegurar sua manutenção – regulam a vida social – bem como o processo de socialização daqueles que vivem neste universo social. Para cumprir tal tarefa criaram-se algumas estruturas, mecanismos, a partir dos quais se estabelece a transmissão de valores, dos conhecimentos, das normas, das regras. Tais estruturas sociais caracterizam-se como organizações: as igrejas, as escolas, os clubes de serviços etc. No entanto, o exercício da transmissão traz, em si mesmo, um conjunto de idéias, de valores etc., que não são expressos, que não são claros: é o que é conhecido no âmbito da escola, por exemplo, por “currículo oculto” (APPLE, 1994); é o que corresponde à idéia de CIFALI (1998) sobre os rumores e os silêncios no âmbito dos estabelecimentos escolares; é o que apontamos como não-dito¸ quando discutimos as relações intra-institucionais. Enfim, são fenômenos que nem sempre são reconhecidos por aqueles que ocupam os lugares de poder (professores, diretores, orientadores, supervisores, psicólogos etc. [1]) dentro da relação educativa.
O não-dito, por sua vez, nos remete às implicações, aos processos mais ou menos inconscientes, que perpassam nossas relações... e ele diz respeito tanto a aspectos relativos ao universo social (o que nos remete à idéia de trasversalidade) como aos relativos as experiências e vivências das pessoas que estão envolvidas nas relações (o que é relativo à idéia de transversalidade), aspectos esses sempre presentes nas instituições que constituem nosso universo social. Assim, o educador, ao assumir um lugar instituído/instituinte (seja ele o de pai, seja o de professor etc.), põe em movimento um projeto que diz respeito tanto ao meio social em que está inserido como aos processos individuais relativos aos seus desejos – geralmente inconscientes e imprevisíveis.
Entender o ato de educar como projeto significa inserir a ação do educador num vir-a-ser histórico, numa relação entre um passado, um presente e um futuro – dimensões temporais que também são circunscritas tanto pelo universo social como pelos indivíduos (pelas suas experiências). Nesse sentido, RIOS (1997) esclarece:
Ao
organizarmos projetos, planejamos o trabalho que temos intenção de
realizar, lançamo-nos para diante, olhamos para frente. Projetar é
relacionar-se com o futuro, é começar a fazê-lo. E só há um momento de
fazer o futuro – no presente. O futuro é o que viveremos como presente,
quando ele chegar... trata-se de algo que se constata na nossa vivência do
cotidiano. O presente ... traz no seu bojo o passado, enquanto vida
incorporada e memória, e o futuro enquanto vida projetada... É isso que
garante a significação do processo histórico. (p. 73)
O projeto se estrutura através dos ideais que as pessoas constróem para si mesmas ao longo de suas vidas, o que está diretamente relacionado com os sentidos que elas atribuem a suas experiências. Entretanto, o projeto que se inscreve no âmbito da educação tem uma característica muito específica: implica necessariamente um outro.
Tal afirmação nos permite olhar o processo educacional sob um outro ângulo, a partir do qual o termo projetar assume um outro sentio. Trata-se da noção de projetar desenvolvido no contexto psicanalítico. Aqui, projetar indica a “operação pela qual o indivíduo expulsa de si e localiza no outro, pessoa ou coisa, qualidades, sentimentos, desejos, e mesmo ‘objectos’, que ele desdenha ou recusa em si.” (LAPLANCHE e PONTALIS, ã1967, p. 477).
Esta noção vincula-se à idéia de que a relação entre educador e educando estrutura-se a partir de um jogo de transferências (no sentido psicanalítico do termo) e reafirma-a. Nesse jogo de traansferências ambos projetam para a relação, para o trabalho, para a aprendizagem, para os conteúdos programáticos etc., ideais, qualidades, sentimentos que lhes dizem respeito, porém inconscientes.
Como notamos, através da noção de negatricidade, os alunos, os filhos, nem sempre correspondem às expectativas dos educadores – pais, professores.... Os primeiros, na medida em que também têm desejos, expectativas, vontades etc., confrontam os segundos, deixando-os a “ver navios”, “sem tapete”... O inverso também é possível, às vezes os educadores deixam os educandos perplexos, “sem rumos”. Aqui cabe retomar a consideração de Mauco onde afirma que o diálogo do educador e da criança é duplo. Ele se expressa sobre dois planos: inconsciente e consciente, que se ignoram mutuamente. É portanto de fato um diálogo a quatro vozes. A energia psíquica dos desejos que permanecem inconscientes entre o adulto e a criança determina a natureza de sua relação.
A indisponibilidade para a escuta (aqui entendida sob a perspectiva da escuta clínica, conforme discutimos anteriormente) das manifestações inconscientes – sejam as suas, sejam as do outro – deixam muitos professores, educadores, pais... sem entender o que acontece em seu quefazer pedagógico, principalmente quando se defrontam com situações em que se sentem confrontados, seja em sua autoridade, seja em seu poder (advindo do lugar institucional que lhe é atribuído), seja em seus valores etc.
AQUINO (1996), num estudo sobre a relação entre professor e aluno, nos revela que ela se caracteriza como um “violento jogo de forças (ativas e reativas) com vistas à normatização da conduta alheia.” (p. 156). Ou seja, na relação pedagógica – e, aqui, mais especifiamente na relação entre professor e aluno – não há, nas palavras de Aquino, “placidez ou completude”, mas um constante redimensionamento dos “lugares” que os envolvidos na relação atribuem entre si, o que resulta num “ininterrupto campo de luta, sujeito a perdas e danos – o que significa um constante estado de tensão e embates imaginários, quer em relação ao lugar do outro, quer em relação ao próprio lugar.” (AQUINO, 1996, p. 156 – destaques no original).
Aquino chega a essa conclusão analisando os discursos construídos a partir dos “lugares” que são ocupados – pela força da instituição – pelos envolvidos na relação, discursos esses que são operacionalizados de tal forma que normatizam os comportamentos, as atitudes etc.
De certa forma nos aproximamos muito da formulação de Aquino. No entanto, apesar de apontarmos a importância e a necessidade do conflito na relação pedagógica – considerando que será a partir dele que os indivíduos poderão exercer e construir sua autonomia – vemos a possibilidade de superação[2] de tal situação, à medida que consideramos tal relação como processo intersubjetivo – o que implica alteração, implicação e o reconhecimento do lugar do outro.
Além disso, em tal relação – à medida que nos envia para questões relativas à autonomia, ao processo de autorização dos indivíduos – emergem demandas (de ambas as partes) que são da ordem do inconsciente e que devem ser “escutadas”, “reconhecidas” – principalmente pelos professores.
Percebemos entretanto que a perspectiva desenvolvida por Aquino, nos leva a entender a relação entre professor e aluno como um “círculo vicioso”, que expressa uma redundância entre “ação e reação”, onde, pela impossibilidade de superação dos conflitos, não há espaço para uma atitude reflexiva acerca das relações que se estabelecem no cotidiano escolar.
Nossa compreensão da relação, quanto ao aspecto assinalado, é bastante diferente, à medida que entendemos que a relação educativa, por ser inscrita na dinâmica da dialética instituído – instituinte, permitindo aos educadores e educandos uma atitude mais relfexiva, atitude que pode revelar os mecanismos – individuais, coletivos e institucionais – que produzem e reproduzem o cotidiano escolar.
Em nossos encontros com educadores, no entanto, uma questão sempre fica no ar: como se posicionar diante de situações conflitivas no âmbito da escola ou da sala de aula? O que fazer com os estudantes (ou grupo de estudantes) que comprometem – com sua “indisciplina” – o desenvolvimento das aulas, ou o processo de aprendizagem da turma?
Para este tipo de questionamento nunca tivemos respostas, pois entendemos que, em primeiro lugar, não há receitas prontas para a solução dos problemas escolares e que esta última deve ser buscada numa práxis pedagógica reflexiva. Em segundo lugar, buscar tais soluções pressupõe o reconhecimento das especificidades do contexto em que tais comportamentos emergem, bem como os sentidos que estão sendo “colocados em jogo” através deles.
Esta última consideração nos leva a pensar que toda prática pedagógica se inscreve num campo social, que é determinado por vários fatores: econômicos, sociais, políticos, antropológicos, etc. (BARBOSA, 1998) e, também, por fatores de ordem psicológica, que dizem respeito aos mecanismos inconscientes implícitos nas relações. Nesse sentido, apoiados em Freud, apontamos anteriormente que o educador sempre se confrontará com a constituição pulsional de seus estudantes, ou seja, com manifestações inconscientes, e, sendo assim, ele deve ser capaz “... de inferir, a partir de pequenos indícios, o que está se passando na mente imatura desta [criança], de dar-lhe a quantidade exata de amor e, ao mesmo tempo, manter um grau eficaz de autoridade.” (FREUD, 1932[1975], p. 183).
Isso não significa que o professor
deva assumir o papel de “analista” de seus alunos, aplicando-lhes o método
psicanalítico para esclarecer o papel do inconsciente em suas vidas acadêmicas.
O que podemos depreender da formulação de Freud, é que este profissional
deve ter uma postura de “escuta clínica” (conforme discutimos neste trabalho) para as
demandas que seus alunos depositam na relação, postura esta que pressupõe
uma implicação-distanciamento,
o que lhe possibilitará estar efetivamente co-presente na situação, sem
perder sua especificidade e sua competência.
Tal perspectiva possibilitará ao professor reconhecer elementos até então desconsiderados em sua prática pedagógica, bem como reapropriar-se da experiência, abrindo-se para o desconhecido e disponibilizando-se para a alteração (e por conseqüência para a heterogeneidade), para a escuta do inefável.
Para Ardoino há nessa escuta, como na interpretação que a acompanha, uma primeira forma de multirreferencialidade “é a língua do outro, sua indexicabilidade que é necessário apreender e falar, para encontrar os fios de sua pré-história e os avatares de seu desejo: [na relação educativa] o discurso não tem necessidade de ser explícito pois ele joga essencialmente ao nível do sub-entendido”. (ARDOINO, 1990, p. 40).
Esta posição de Ardoino remete o professor para as questões que estão subjacentes aos comportamentos de seus alunos, para o jogo dos sentidos que sustentam as posições de cada um na situação pedagógica, jogo esse permeado de conflitos, contradições, exasperações, agressões..., conflitos inevitáveis e necessários para que os alunos possam exercer sua autonomia.
Em um outro lugar (MARTINS, 1998a), discutindo questões relativas à relação pedagógica, escolhemos uma metáfora para a ela nos referir. Nós a denominamos de “pescaria da traíra”. A traíra é um peixe que, quando morde um anzol, nada rapidamente, puxando a linha com certa força, tentando se desvencilhar daquilo que a prendeu. Se o pescador não tiver paciência de trazer o peixe, soltar a linha, trazer o peixe, soltar a linha, trazer o peixe... quantas vezes for necessário, corre o risco de perdê-lo.
Podemos pensar a relação entre professor e aluno a partir dessa imagem, visto que o professor, ao “fisgar”, ou melhor, ao estabelecer um vínculo com o aluno, estará sujeito a testes, contestações, agressões, projeções etc.; e se ele não tiver paciência, não assegurar o espaço de expressão para as demandas que ali são depositadas, corre o risco de perdê-lo.
O exercício de tal posição, no entanto, traz em si mesmo uma série de dificuldades para o professor, e caso ele não tiver clareza do que se passa, dificilmente estará disponível para as vicissitudes próprias inerentes à relação, ou mesmo terá “paciência” aguardando seus alunos “atracarem em seu porto do conhecimento”.
A disponibilidade do professor poderá ser alcançada supondo-se várias situações: pelo reconhecimento de suas implicações em seu quefazer profissional – o que lhe possibilitará reconhecer os limites e as possibilidades que o circunscrevem; pelo estabelecimento de uma relação que privilegie a heterogeneidade, e a negatricidade a ela inerente; o reconhecimento de que tal relação – em função das implicações, da heterogeneidade e da negatricidade, se inscreve na ordem do imponderável, do imprevisto, naquilo que escapa.
Assumir a heterogeneidade, a diferença, no contexto escolar, significa assumir que nem toda técnica, nem toda estratégia, são boas para todos; que nem todo mundo aprende da mesma forma e no mesmo ritmo. A diferença e a alteração – ou seja, o jogo das influências mútuas – dispõem a relação numa temporalidade que lhe é própria, e que muitas vezes contradiz a trajetória que a organização escolar estipula para os estudantes. Ardoino, utilizando-se das metáforas de trajetória e do caminhante, assim explicita essa questão
Pode-se
dizer, de uma certa maneira, que os alunos, supostamente normais, que entram
em tal idade... na mesma escola ou em escolas equivalentes, ao mesmo tempo,
vão conhecer um trajeto análogo, um trajeto modelizado da mesma maneira. A
trajetória é um trajeto, um itinerário organizado. Ao mesmo tempo, o
ministro da educação, o reitor dessa universidade, o chefe do
estabelecimento escolar, pensam absolutamente de forma natural a massa de
alunos que eles devem administrar em termos de fluxo, de input, de output,
de trajetória. Se essa trajetória modelizada é interrompida, temos o
fracasso, não há outra saída[3].
(...) Mas, ao mesmo tempo, cada um dos alunos, deve ainda ser considerado em
termos de caminhante[4].
Enquanto a trajetória é uma imagem emprestada da astrofísica... a idéia
de caminho está ordenada em função da intencionalidade, da afetividade,
mas também das resistências, também do ritmo biológico próprio de cada
um[5].
(ARDOINO, 1998b)
Apesar
de a Modernidade nos apontar, em razão das exigências econômicas, para
uma abordagem do fenômeno educativo em termos de “trajetória”, faz-se
necessário que, ao mesmo tempo, “cada
professor, cada formador... seja capaz de pensar a relação com o parceiro
em termos de caminho, postura essa que traz em si mesma uma grande contradição[6].”
(ARDOINO, 1998b).
Pensar o processo educativo sob o signo do “caminhante” significa inseri-lo na ordem do inacabamento, algo que não acaba ou que, na realidade, só termina com a morte. Tal idéia nos leva a entender a educação como uma noção complexa, na qual não se leva em consideração apenas a aquisição de conhecimentos - a transmissão dos saberes e do saber-fazer – mas, também, uma formação da afetividade, da responsabilidade: o que indicamos ao longo deste trabalho como saber-ser, saber tornar-se.
Ao assumir a heterogeneidade como fundamento do processo educativo, as implicações, a negatricidade etc., podemos estabelecer uma nova ética, um novo modo de ver, de viver e de entender as práticas educativas.
Tomar os fenômenos educativos, como objeto de estudo, em sua complexidade, nos remete para a necessidade de uma leitura multirreferencial dos mesmos, dito em outras palavras, tal complexidade não nos permite uma análise a partir de uma única disciplina, pelo contrário, devemos reconhecer a contribuição das diversas abordagens que a tomam como objeto, abordagens essas que, colocadas sob uma perspectiva interativa, nos permitirão uma visão mais abrangente deste fenômenos.
No que diz respeito aos fenômenos que se inscrevem no espaço escolar, entendemos que o modelo de inteligibilidade proposto por Ardoino atinge plenamente os objetivos que a abordagem multirreferencial/plural pressupõe. Cabe ressaltar que, apesar das várias disciplinas, das várias perspectivas teóricas, das várias abordagens, que Ardoino tece para a construção de seu modelo, ele não perde de vista o caráter eminentemente histórico e dialético que caracteriza tanto a pesquisa em si, como as organizações educativas.
Apesar de a escola desempenhar um papel social importante na inserção dos indivíduos no universo cultural da sociedade – à medida que disponibiliza várias informações acerca da realidade; apesar de a escola reproduzir valores, instituir formas de compreender a realidade, de fazer a função de um aparelho ideológico do estado (nos termos de Althusser); apesar de ela ser um produto histórico cultural que age e interage numa trama de complexos processos socioculturais; apesar de a escola estar vinculada a um poder estatal, que a regulamenta, a institui enquanto existência homogênea;
...coexiste
...com esta história e existência ... outra história e existência, não
documentada, através da qual a escola toma forma material, ganha vida.
Nesta história, a determinação e presença estatal se entrecruza com as
determinações e presença civis de variadas características. A
homogeneidade documentada decompõe-se em múltiplas realidades cotidianas.
Nesta história não documentada, nesta dimensão cotidiana, os
trabalhadores, os alunos e os pais se apropriam dos subsídios e das prescrições
estatais e constroem a escola. (EZPELETA e ROCKWELL, 1986, p.12-3 –
destaques no original)
Isso significa dizer que os processos educativos se realizam num universo profundamente diverso e diferenciado e que a escola é sempre uma versão local e particular. Dessa expressão local tomam forma internamente as correlações de forças, as formas de relação predominantes, as prioridades administrativas, as tradições docentes e discentes, as transversalidades, as trasversalidades, o inconsciente... que constituem a trama real em que se realiza a educação.
É
uma trama em permanente construção que articula histórias locais -
pessoais e coletivas -, diante das quais a vontade estatal abstrata pode ser
assumida ou ignorada, mascarada ou recriada, em particular abrindo espaços
variáveis a uma maior ou menor possibilidade hegemônica. Uma trama,
finalmente, que é preciso conhecer, porque constitui, simultaneamente, o
ponto de partida e o conteúdo do real em nossas alternativas tanto pedagógicas
quanto políticas. (EZPELETA e ROCKWELL, 1986, p.11)
Tal perspectiva nos leva a olhar para os processos que ali se estabelecem como história acumulada; o que nos permite desvelar os significados e os sentidos a partir dos quais a escola se constrói. Ou seja, em nossa construção da escola, a partir da abordagem multirreferencial, podemos observar o que pode ser convergente, o que pode ser divergente ou contraditório, o que está explícito, o que está nas entrelinhas, nos interstícios, nas diversas formas do existir da escola.
Cabe ressaltar, ainda, que a abordagem multirreferencial pressupõe o abandono dos pressupostos implícitos no modelo proposto pelas analíticas cartesiana e positivista, principalmente pelo fato de considerar a construção de conhecimento como decorrente de um processo de implicação – o do pesquisador. Além disso, o caráter analítico da postura multirreferencial não se pauta na decomposição de seus objetos, mas sim na aproximação de diversos pontos de vista, o que possibilita uma construção científica mais adequada à complexidade dos fenômenos educativos. Tal postura nos permite aproximar a atividade do pesquisador da atividade do bricoleur (como pressupõe LAPASSADE, 1998).
Cabe assinalar, finalmente, que a abordagem multirreferencial nos coloca ali onde sempre desejamos estar: no universo do complexo – seja como professores, seja como pesquisadores, mas ela exige a renúncia das certezas, e nos insere na dialética das relações, dos desejos, das ansiedades, enfim, do vir-a-ser humano.
Apontamos até esse momento algumas contribuições da abordagem multirreferencial para a compreensão dos fenômenos educativos. Gostaríamos, agora, de localizar estas contribuições no âmbito da formação de professores. Partimos do pressuposto de que um sistema educacional otimizado prima, principalmente, pela formação dos responsáveis por tal processo. No contexto escolar, tal formação envolveria todos aqueles profissionais que estão presentes no processo de aprendizagem (aqui entendida em seu sentido mais amplo, não especificamente acadêmico) do aluno.
Sob a perspectiva de trabalho, aqui desenvolvida, entende-se que o processo de formação se localiza na ordem do incabamento, ou seja, se situa num tempo histórico, muitideterminado por fatores de várias ordens: política, econômica, social, psicológica, antropológica etc. Ele se inicia quando um indivíduo nasce e termina com sua morte. Tal perspectiva pressupõe que a formação inicial não é um fim em si mesma – que possibilita aos indivíduos se inserirem num determinado campo social – mas o início de um caminho que será percorrido ao longo de suas vidas.
O processo de formação dos professores, por sua vez, não se dá num vácuo social. Ele se insere no âmbito do conjunto de demandas instituídas pela própria sociedade, já que são esses os profissionais que contribuirão para a formação acadêmica dos indivíduos; possibilitando-lhes o universo do conhecimento sistematizado.
Considerando a busca da construção da qualidade de ensino e de uma escola comprometida com a formação para a cidadania, torna-se imprescindível repensar as bases epistemológicas e metodológicas que subsidiam o processo de formação de professores, no que se refere tanto à formação inicial como à contínua. Tal necessidade, por sua vez, se torna mais presente à medida que reconhecemos e sentimos as constantes transformações decorrentes da sociedade multimídia, da globalização, da multiculturalidade, das transformações nos mercados produtivos etc.
Apontamos ao longo do trabalho que as práticas pedagógicas que se estabelecem nas escolas, decorrentes do próprio processo de formação de professores, têm se servido dos parâmetros de uma pedagogia científica cuja tendência é legitimar a razão instrumental, isto é, o processo de formação destes profissionais se pauta na lógica de uma racionalidade técnica, opondo-se constantemente ao desenvolvimento de uma práxis reflexiva (NÓVOA, 1998).
Nesse sentido, o professor é considerado como um mero “transmissor” de determinados conteúdos. Seu processo de formação se limita a um saber – que diz respeito ao conteúdo da ou das disciplinas que ministrará quanto estiver trabalhando – e a um saber-fazer – relativo às metodologias que utilizará para transmitir os conteúdos referidos anteriormente. Como ele se posiciona como “transmissor”, espera-se que o aluno seja um “receptor” e que responda às demandas do processo de conhecimento com fidelidade – “repetindo o que aprendeu” quando soliticitado.
Ora, vimos que a relação pedagógica traz em si mesma certa negatricidade, certa traição, certa autonomia e, sendo assim, outras dimensões devem ser contempladas na formação deste profissional. Essas questões dizem respeito ao saber-ser, às experiências, às vivências de cada um que está implicado no processo.
A idéia de “vivido” nos remete para uma discussão acerca das temporalidades que estão implicadas no processo educativo. Como assinalamos anteriormente, as pessoas inserem-se na relação educativa a partir de suas próprias experiências, de seus próprios prismas, de sua própria temporalidade. Isso significa dizer que nem todos aprendem da mesma forma, ao mesmo tempo e sob uma mesma metodologia.
Trazer essa questão para o âmbito da formação significa reconhecer que os alunos em formação também têm uma temporalidade, um “caminho” percorrido, trazem para o processo um conjunto de significados etc.
No que diz respeito aos alunos em formação inicial, apesar da não-experiência acumulada acerca do “como dar aulas”, eles trazem um conjunto de experiências com o processo educativo a partir de uma situação de estudantes, de aprendizes. Estas experiências deixam-lhes “marcas” muito importantes – quem não teve uma admiração secreta por professores ou professoras? Uma paixãozinha por esse(a) ou aquele(e) professor(a)? – e com elas um conjunto de significados – muitas vezes inconscientes – que interferem, até mesmo, na própria escolha profissional – no caso na de professor.
BOHOSLAVSKY (1991), trabalhando com os aspectos que circunscrevem a escolha vocacional, nos assinala que a opção profissional expressa uma relação direta ou indireta com o passado, presente e futuro dos indivíduos, que devido à situação de escolha são redimensionados. Nesse momento muitas experiências infantis são reeditadas e reelaboradas. O futuro, por sua vez, passa a representar um grande problema, pois é, ao mesmo tempo, desejado – à medida que inspira autonomia – e rejeitado – à medida que representa o desconhecido. Além disso, para Bohoslavsky, a opção profissional também emerge de um contexto mais amplo, que diz respeito às ordens institucionais familiar, escolar e da produção, com as quais os indivíduos estabelecem relações. Tal posição possibilita a emergência de uma série de conteúdos desconhecidos e que estão vinculados a processos psicológicos, tais como fantasias, ansiedades, identificações, os quais, muitas vezes, são inconscientes.
Nesse sentido, a formação inicial, na medida em que aqueles que estão em formação não têm nenhuma experiência prática, poderia proporcionar oportunidades de reflexão para que estes alunos possam perceber os processos que circunscreveram suas escolhas, de tal forma que possam ter clareza quanto aos motivos que os levaram a escolher a profissão de professor[7].
Ao serem promovidas, durante o processo de formação inicial, situações que focalizem estes aspectos – que podem ser caracterizadas por estágios, dinâmicas de grupo, estudo de casos, role playing, estudo sobre as histórias de professores etc. – estar-se-á, também, promovendo o desenvolvimento social e pessoal[8] do futuro profissional. Ou seja, ao mesmo tempo que os alunos em formação constroem ativamente um conhecimento acerca do mundo, eles também constroem um conhecimento acerca de si próprio. Estas experiências, por sua vez, possibilitarão aos futuros professores, desenvolverem uma postura de “escuta” (conforme discutimos anteriormente) para com seus alunos e para consigo próprios.
Queremos dizer com isso que, se de um lado, as escolhas (sejam elas profissionais, atitudinais, comportamentais, metodológicas, epistemológicas etc.) trazem algo de opaco: sentidos que não são percebidos pelos indivíduos que estão na situação de escolha; por outro, o esclarecimento destes sentidos, principalmente quando as pessoas estão num encontro intersubjetivo – como é o caso da relação educativa – possibilitará uma ação mais refletida, mais madura.
Segundo CANDAU (1992), a formação de professores deve ser considerada sob um enfoque multidimensional.
Nela
o científico, o político e o afetivo devem estar intimamente articulados
entre si e com o pedagógico. O domínio consistente de uma área específica
supõe uma adequada compreensão da construção de seu objeto, dos
diferentes enfoques metodológicos possíveis e suas respectivas bases
epistemológicas, de sua lógica e de sua “linguagem”. A dimensão política,
em intima relação com a científica, supõe uma perspectiva clara do papel
social do conhecimento em questão, do tipo de sociedade e de homem que se
quer ajudar a construir, da realidade que se quer comprender, desvelar e
transformar. Supõe também uma consciência crítica sobre o papel da ciência,
da educação do professor na
sociedade em que vivemos. Quanto à dimensão afetiva, afirma que ensinar
supõe interação humana, envolvimento emocional, prazer, compromisso.
Saber, prazer e compromisso transformador são dimensões que têm de ser
trabalhadas em articulação contínua com a postura e o tratamento pedagógico
indispensáveis a todo profesor. (CANDAU, 1992, p. 47)
Podemos aproximar esta proposição de Candau à noção de implicação que discutimos anteriormente, já que a autora afirma a necessidade do reconhecimento da dimensão afetiva durante o processo de formação. Isto significa dizer que neste deve ser proporcionadas situações onde os indivíduos possam vivenciar, refletir sobre seus engajamentos pessoal e coletivo, em e por sua práxis educacional, entendendo que tal engajamento é circunscrito pela sua história familiar e libidinal[9], por suas posições passadas e atuais nas relações de produção e de classe, e por seu projeto pessoal.
Tal aproximação nos permite afirmar a importância do reconhecimento das manifestações inconscientes. Entendemos que esta dimensão – apesar de ser desconsiderada completamente nos processos de formação – nos remete para o conjunto de significados, de sentidos, que circunscrevem as escolhas, as atitudes, as decisões etc., ou seja, nos remete para o vivido, para as experiências.
Afirmar a necessidade de resgatar a experiência, a temporalidade de cada um fica-nos mais evidente quando nós pensamos na educação contínua. Segundo CANDAU (1992a), existem três afirmações que subsidiam os processos de formação contínua e que buscam novas perspectivas de atuação e intervenção.
A primeira afirmação ressalta a necessidade de reconhecermos que o locus da formação a ser privilegiado é a própria escola. Trata-se de trabalhar com o corpo docente de uma instituição favorecendo processos coletivos de reflexão e intervenção na prática pedagógica concreta. O processo de formação terá como ponto de partida as necessidades reais dos professores, os problemas de seu dia-a-dia.
A segunda afirmação assinalada por Candau, reconhece o saber docente como referência fundamental para o processo de formação contínua. Queremos dizer com saberes docentes aqueles conhecimentos relativos aos conteúdos, a metodologias de ensino e, de modo especial, os saberes da experiência. Para Candau, devemos valorizar esses saberes uma vez que eles são
...
o núcleo vital do saber docente, e a partir do qual o professor dialoga com
as disciplinas e os saberes curriculares. Os saberes da experiência se
juntam no trabalho cotidiano e no conhecimento do meio. São saberes que
brotam da experiência e são por ela validados. Incorporam-se à vivência
individual e coletiva sob forma de habitus
e de habilidades de saber fazer e de saber ser. (CANDAU, 1992a, p. 59)
Tal noção – saberes da experiência – está muito próxima do que temos chamado aqui de “vivido”, de “experienciado”.
A última afirmação sobre formação contínua apontada por Candau, indica que os processos de formação contínua devem-se caracterizar pela heterogeneidade de tal forma que contemple as diferenças do conjunto dos professores. Ou seja, devemos tomar consciência de que as necessidades, os problemas, as buscas dos professores não são as mesmas nos diferentes momentos do seu exercício profissional. Tal perspectiva rompe com modelos padronizados de formação contínua e a criação de sistemas diferenciados que permitam aos professores explorar e trabalhar diferentes momentos de seu desenvolvimento profissional, conforme suas necessidades específicas.
Cabe ainda registrar que tanto a formação inicial como a formação contínua não podem ser concebidas como um meio de acumulação de conhecimentos, mas sim como uma perspectiva de trabalho que implique reflexibilidade crítica sobre as práticas e que possibilite a construção e a re-construção permanente de uma identidade pessoal e profissional.
Nesse sentido, D’Ambrosio nos alerta:
É
indiscutível que é condição necessária para seu bom desempenho que o
professor tenha um salário digno. Mas isso só não é suficiente para que
o professor seja um indivíduo em paz consigo mesmo, emocionalmente sadio e
tranqüilo. Sem dúvida, mesmo em condições de trabalho adversas, análise
(auto-análise e várias outras formas de análise, obviamente não se
excluindo a psicoanálise) é esencial para a preparação e na vida
profissional o professor. (D’AMBROSIO, 1998, p. 244)
Esta perspectiva apontada por D’Ambrosio vem acompanhada da idéia da necessidade de o professor conhecer-se profundamente, pois, na relação estabelecida com seus alunos, não estão em jogo somente os conteúdos referentes a um programa escolar, mas sim os valores, as emoções, fantasias, afetos etc. Isto quer dizer que os professores ensinam não só aquilo que sabem, mas aquilo que são (ver também BARBOSA, 1997).
A formação de professores na perspectiva ora assinalada se configura, portanto, numa política de valorização do desenvolvimento pessoal-profissional dos professores e das instituições escolares, uma vez que supõe condições de trabalho propiciadoras da formação contínua dos professores, no local de trabalho, em redes de autoformação, e em parceria com outras instituições de formação. Trata-se
...
de pensar um educador voltado para a compreensão de um modo de ser voltado
para a compreensão de seus educandos, de como eles se apresentam na
profundeza de seus valores; na complexidade de seus perfis e na leveza de
sua criação enquanto sujeitos que se encontram no mundo cotidiano, contínua
e bravamente se criando e se remodelando. É escutar e apreender o caráter
original da ação do sujeito onde se encontra a criação
e não a reprodução. (BARBOSA,
1998b, p. 83-84- destaques nossos)
A abordagem multirreferencial, à medida que considera a complexidade dos fenômenos educativos, se apresenta para nós como uma ruptura, pois traz em si mesma o exercício da heterogeneidade, o que possibilitará àqueles que estão em formação pautarem suas práticas numa ética que tem, com princípio básico, o respeito e a convivência, o múltiplo e o pluri – seja em termos individuais ou seja em termos culturais – assegurando uma com-vivência no espírito da democracia.
NOTAS
[1] Cabe salientar que, geralmente, estes profissionais entendem sua prática como “apolítica”, fundamentada cientificamente, desprovida de implicação pessoal...
[2] Quanto a esse aspecto, Aquino nos revela a sua impossibilidade pois, para ele, “trata-se de uma instabilidade imanente aos interjogos imaginários da institucionalização escolar e impossível de ser atenuada ou superada, uma vez que, desde a sua gênese, as práticas escolares contemporâneas desdobram-se em torno de objetivos demasiadamente ostensivos e/ou redentores: a construção do homem, da sociedade, do futuro etc.” (Aquino, 1996, p. 156 – destaques no original).
[3] Aqui estamos sob a perspectiva da organização.
[4] Ardoino se inspira nos versos de A. Machado para desenvolver suas idéias. Os versos são os seguintes: “Caminante so tus huellas/el camino y nada más./ Caminante no hay caminos/se hace caminho al andar.” (In BOHOSLAVSKY, 1991, p. 27 - epígrafe)
[5] Aqui estamos sob a perspectiva institucional.
[6] Aqui temos um princípio da abordagem multirreferencial.
[7] Enquanto escrevo estas linhas, uma pergunta me ocorre. Sabe-se que nós nos defrontarmos, paulatinamente, com uma descaracterização e desvalorização social da educação em geral e do magistério, principalmente do 1º e 2º graus, na sociedade em que vivemos. Tal desvalorização expressa-se sob diversas dimensões: baixos salários, falta de condições adequadas de trabalho etc. No entanto, ainda existem pessoas que procuram essa profissão, assim como há professores que não abandonam sua profissão, por mais desfavoráveis que sejam as suas condições de trabalho e de sobrevivência. Assim fica a questão: o que leva as pessoas a escolherem tal carreira profissional, o que leva as pessoas a se manterem nesta profissão? A resposta que encontro para essa pergunta passa por vários caminhos (uma opção política, uma opção social, uma posição ideológica etc.) que convergem para uma posição implicada (nos termos referidos acima) em seu processo de inserção social.
[8] Vale a pena lembrar que aquele que está em formação inicial também encontra-se num processo de autorizar-se, construindo sua autorização. Isto significa dizer que sua autonomia está relacionada com a clareza sobre as implicações que circunscrevem tal processo.
[9] Lembro que quando falamos de história libidinal estamos nos referindo a uma dimensão inconsciente.
Ir para