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POST SCRIPTUM
I
Como vimos no Capítulo I, a perspectiva econômica atualmente que se coloca para os Estados-Nações caracteriza-se pela estruturação de projetos que permitam uma integração de suas economias - por exemplo, o MERCOSUL. Com efeito, a concretização deste projeto - o de "internacionalizar as economias" coloca em relação esferas culturais bastantes heterogêneas - tradições indígenas e a cultura de massas, as religiões e a produção científica, etc. - criando circuitos mundiais de circulação de idéias e de quadros que aproximam lógicas diferenciadas (o estudo de Canclini, 1983, sobre o artesanato mexicano, é muito esclarecedor quanto a esse aspecto).
Em razão destas tendências, aumenta a dificuldade individual de situar e definir uma identidade e uma subjetividade pessoais. Somos universalistas ou particularistas? Guiados por um espírito global ou fiéis a uma crença identitária de interconhecimentos? podemos dizer que vivemos num mundo em que o particular se universaliza e o universal se particulariza? O nosso local pode ser universal e o universal pode ser local, na certeza de que nem um nem o outro vivem sem o seu oposto?
Foi através do turismo que pude, no decorrer deste texto, aproximar-me destas questões, pois ele possibilita a consecução do projeto de internacionalização da economia sob os dois aspectos assinalados: em primeiro lugar assegura o desenvolvimento dos lugares que promovem o turismo, e em segundo, aproxima as culturas.
Como foi assinalado no Capítulo III, a atividade turística pode ser caracterizada como um processo de integração cultural muito significativo para as sociedades que se vêm envolvidas neste intercâmbio. Os signos de identidade social são exibidos dentro dos produtos turísticos, expressando as diferenças e as singularidades nacionais, regionais e locais. Estas podem recuperar tanto as produções culturais mais profundas dentro da memória coletiva como as expressões mais vivas das culturas contemporâneas, o que possibilita a restauração de patrimônios culturais em decomposição e a reanimar as culturas em vias de extinção.
Sob a perspectiva de uma política para o turismo em nível internacional, tais ações, na medida em que se referem à cultura, permitem as sociedades investirem em sua identidade cultural, vindo a se reapropriarem de sua singularidade, tendo como pano de fundo comum a cultura universal.
No entanto, ao observarmos a consecução das propostas para o turismo em Florianópolis, observamos que ele segue em outra direção. Como assinala Franzoni (1993), o turismo não é pensado no bem estar da comunidade florianopolitana, mas na comodidade dos turistas...
É sob esta ótica que compreendemos o processo de implementação do turismo na Praia do Santinho - comunidade de pescadores que fica ao norte da Ilha de Santa Catarina. Ao aproximar o "olhar" Santinho, observei que a implementação do turismo no lugar vem se caracterizando através da construção de alguns empreendimentos arquitetônicos - como é o caso do Costão do Santinho - e que os "nativos" - em sua grande maioria - ficam à margem das benesses econômicas e culturais que projetos desta natureza propiciam.
Quando se inserem neste mercado de trabalho emergente, geralmente se envolvem em atividades profissionais subalternas - na construção civil, na jardinagem... o que não lhes assegura uma melhor qualificação profissional nem salários condizentes com as novas necessidades que o encontro com a "modernidade" produz.
Em termos culturais, a proposta "primeiro mundista" inerente ao diálogo turismo x cultura nativa, no Santinho, tem se pautado na contradição "velho x novo", "tradicional x moderno", o que desqualifica os nativos em sua inserção no universo simbólico que caracteriza a "modernidade", "pois eles não têm estudo, informação, nem escola e precisam trabalhar". Além disso, a chegada dos "novos moradores" (geralmente oriundos da classe média), assim como a sazonalizadade dos turistas, na medida em que diversificam os espaços sociais de relacionamento, aprofundam e generalizam as diferenças sociais, culturais e econômicas, implícitas nas novas relações sociais.
Tal situação, ao mesmo tempo em que desestabiliza os processos de socialização característicos do lugar - agora marcado pela diversidade - implementa algumas situações sociais coletivas que permitem aos nativos assegurarem alguns elementos identitários de sua cultura.
Os rituais que descrevemos: a fuga, o terno de reis, a farra do boi, o lance da tainha e os campeonatos de surfe, no plano social e, principalmente, o corpo no plano individual, apresentam-se, sob as perspectivas assinaladas acima, como estratégias utilizadas pelos moradores do lugar no sentido de marcar as fronteiras simbólicas entre turistas e "os de fora" x nativos (Maluf, 1989 e Silva, 1994) e de restituir alguns aspectos da vida coletiva do bairro. Isto nos sugere que a relevância de tais rituais está no caráter pedagógico ali implicado.
Além disso, tais rituais também permitem aos moradores do lugar internalizarem as mudanças que o processo de desenvolvimento lhes apresenta. É sob esta visão que entendemos o fato de alguns adultos nativos, pais de surfistas também nativos, interpretarem esta prática de seus filhos como algo passageiro, permitindo-lhes se manterem no esporte - e conseqüentemente, fora do mercado de trabalho, por um longo período.
Pelo fato de que o processo de desenvolvimento desenhado para o Santinho ser irreversível, em janeiro/95 já havia propagandas de um outro grande empreendimento localizado no lugar; assim como com relação ao de Florianópolis, cabe perguntar também aqui, para que, para quem, para onde ele se dirige? Acho que esta é uma questão que deve ser colocada para o coletivo, ou seja, ela deve ser respondida pelos os moradores da Ilha.
As estratégias - rituais - utilizadas pelos moradores do Santinho nos sugerem que a idéia de que a cultura do lugar acabará é falsa! Pelo contrário tal processo - o encontro turista e "os de fora" x nativo - cria cultura, na medida em que os rituais "reinventam" uma "ordem" que está sob constante ameaça e em constante mutação.
No entanto, apesar de os nativos fazerem uma leitura própria do que está acontecendo, superando (pelo menos em termos simbólicos) as contradições impostas pelo movimento turístico e de urbanização, não podemos deixar de considerar que o sistema capitalista implícito a esse processo de desenvolvimento, não propicia aos mesmos superarem sua condição, pois eles não detêm os meios nem as oportunidades para tanto.
II
No Capítulo I, apresentamos algumas idéias sobre adolescência, e afirmamos que este é um período do desenvolvimento humano em que o indivíduo geralmente se posiciona na realidade social de modo a confrontar os valores nela implícitos - principalmente os defendidos por seus familiares. Além disso, o comportamento do adolescente reflete uma tentativa em equacionar os problemas emergentes às mudanças biofisiológicas - o que se expressa por um estranhamento de sua própria identidade, na medida em que se altera seu esquema corporal - com as expectativas que o mundo adulto lhe impõe.
Tal momento, foi caracterizado como uma "síndrome"- a "síndrome da adolescência normal" (Knobel, 1981). Este momento requer dos diferentes indivíduos, e em diferentes sociedades, grandes variações na duração, intensidade e ritualização da adolescência, possibilitando períodos intermediários, mais ou menos sancionados entre a infância e a idade adulta. Tais períodos foram designados por Erikson (1976a) de moratória psicossocial, onde não se requer do adolescente papéis específicos e se lhe permitem experimentar o que a sociedade tem para oferecer com a finalidade de definir sua personalidade
Enquanto o problema chave da identidade adolescente consiste na capacidade de o ego manter a semelhança e continuidade da experiência frente a um destino mutável e desconhecido (Erikson, 1976a), os grupos de que os jovens participam adquirem uma importância fundamental, pois será nestes espaços que buscarão a uniformidade para suas experiências e consolidação de suas identidades.
Foi sob esta perspectiva que entendemos o grupo de surfistas referido neste estudo. Os adolescentes/jovens, ao mesmo tempo que sentem outras necessidades em razão das mudanças que se estabelecem em Santinho, buscam uma outra alternativa para superarem os conflitos inerentes a este período de idade, procurando os pares, e para superarem os problemas inerentes ao processo de inserção no mundo do adulto, idealizam o universo do surfe como perspectiva profissional.
De certa forma, o grupo assegurava a uniformidade da experiência para os que dele participavam na medida e por compartilharem um mesmo universo simbólico, o do surfe. Tal fato permitia-lhes a construção de suas identidades, diferenciando-se radicalmente do universo simbólico do Santinho. Assim, podemos dizer que, neste espaço social, os jovens podiam exercitar - a nível micro - a diversidade que circunscrevia a realidade social em que estavam envolvidos (lembro que se trata de um grupo formado por nativos e não nativos) pois eles operacionalizavam, em suas relações sociais, um conjunto de idéias, cuja lógica era diferente da do lugar.
Como nos fala Fau (1968), o grupo de adolescente geralmente é passageiro - e assim o foi a "Galera". À medida que o tempo passava, ele perdia a sua função - a de ser continente de novas experiências e novas idéias, para as angústias, as ansiedades, etc... No entanto, cabe assinalar que ele possibilitou aos jovens integrarem melhor as experiências decorrentes da diversidade que vivenciavam em seu contexto social.
Tal perspectiva pode ser hipotetizada na medida em que, apesar de os nativos que participaram da "Galera" não surfarem mais, ou terem diminuído o tempo dedicado a esta prática, a leitura por eles realizada assegura o sentimento de ser "surfista". Ou seja, eles conseguem integrar em sua história de vida as experiências passadas, enquanto uma continuidade.
Nesse sentido, o fato de estes jovens terem novas necessidades (trabalho, dinheiro, etc..), e novas perspectivas (casa, casamento) nos indica que eles estão começando a projetar-se para a vida adulta, isto é, estão assumindo novas posições sociais sem fragmentação de sua estrutura egóica (como é característico no adolescente). Tal perspectiva lhes possibilitam integrar a experiência com o surfe, como mais um aspecto de sua identidade.
A partir das considerações anteriores, podemos dizer que os grupos definidos por classes de idade, principalmente aqueles que se organizam durante a adolescência, caracterizam-se como espaços sociais importantíssimos onde se estabelecem as condições para que o jovem construa sua identidade. Tais grupos, na medida em que são continentes para as mais diversas experiências permitem ao jovem "trabalhar" coletivamente seus conflitos, tantos os inerentes ao processo de desenvolvimento biofisiológico, como os colocados pela sociedade em que vivem
III
Em janeiro de 1995, antes de eu ir para Florianópolis para terminar este texto, mexendo em meus papéis - cadernos de campo, anotações esparsas - encontrei um escrito que gostaria de retomar, pois ele me parece bastante interessante para esclarecer algumas questões referentes a este trabalho - a questão da mudança e da identidade.
"Era meio engraçado explicar para as pessoas o porquê do meu interesse por esse esporte - pois não tenho "pinta de surfista", "não surfo", então porque?
No terceiro passo para pegar meu remédio para o estômago tive um insight - e eu acho que a coisa vai por aí - talvez o surfe represente a "solução" superação de meu "trauma infantil" com o mar. Eu sempre fui fascinado pelo mar, até o dia em que meu pai quase morreu no mar de Soarão (SP). Neste dia, uma menina passava o canal em direção do alto mar e quando ela vinha em direção à praia caiu no "buraco" e acabou morrendo. Eu me senti uma formiga, impotente. Meu pai me havia dito para ficar na praia, e eu fique, olhando a coitada berrar, sem poder fazer nada. Voltei à praia depois de 10 anos - aos 19 anos - e, desde então, vejo o mar como um fim ou começo, sei lá?
Tenho a impressão de que a prancha do surfista vem a ser um tipo de tábua de salvação, na qual eu depositaria meus medos e andaria sobre a água dominando-a. Nadar, mar aberto, vem com essa conotação em minhas fantasias - o suspense da volta, a vontade de me perder no mar e conseguir vencê-lo no braço." (Escrito - setembro/1989)
Durante nosso aprendizado na carreira de antropólogo nós aprendemos várias técnicas, várias estratégias para podermos nos segurar durante nosso trabalho de campo: são os gravadores, as entrevistas roteirizadas, os diários de campo, a pergunta certa na hora certa, o que devemos observar e o que devemos deixar de lado. Enfim, nos preparamos tecnicamente para não nos confundirmos com nosso objeto de estudo, pois devemos "estranhar" a realidade em que estamos interessados, principalmente se estamos pesquisando nossa própria sociedade (Velho, 1980).
O contato, que posteriormente será objeto de nossas análises, implica uma série de variáveis que, por mais que seja possível explicár sociologicamente, articulam e atuam sobre biografias que interatuam no campo de relações. Assim, há sempre algo irredutível devido a uma combinação única de fatores psicológicos, sociais, históricos, culturais, etc... impossível de ser capturada pelos nossos olhos tão bem treinados.
Sob tal perspectiva, aceitamos o desafio de interpretar esta realidade social que é muito complexa e, para explicitá-la, devemos tentar levar em consideração, em nossa aproximação com o objeto, tanto os aspectos relacionados com a condição objetiva da relação sujeito x objeto como com os aspectos subjetivos que acompanham esta relação.
Vontando à anotação acima, penso que uma das variáveis que enfatizei na confecção deste trabalho foi a posição do antropólogo como um "vir a ser". Tal perspectiva, sem dúvida, esteve relacionada com dificuldades inerentes à construção de minha identidade social, o que me fez considerá-la num determinado momento deste escrito como um sintoma - o que interpreto, em termos psicológiccos, como uma neurose.
Mas a idéia que gostaria de enfatizar - e é isso que o texto acima me faz pensar - é a seguinte: é a partir do encontro com o universo social no campo que se constrói a identidade do antropólogo, e que tal encontro implica o reconhecimento dos aspectos psicológicos envolvidos nesta relação - tendo em vista que ela é um encontro intersubjetivo.
Durante a elaboração deste texto fiz a seguinte pergunta: teria o "encontro antropológico", enquanto um "encontro intersubjetivo", características terapêuticas? Acho que em parte é, pois ele permitiu - pelo menos na minha experiência - trabalhar com questões relativas à minha identidade social - e foi, a partir deste encontro comigo mesmo, que "olhei" para a realidade que me dispus estudar. Sem dúvida, foi uma confusão! Mas uma confusão necessária para o meu processo do vir a ser antropólogo e para a construção de minha identidade como tal.
Como assinala Grossi (1992), devemos considerar na construção do conhecimento antropológico as vicissitudes do encontro intersubjetivo que ele supõe, ou seja, nesta construção devemos levar em consideração também nossas motivações, nossos desejos, nossas "pirações" - os aspectos psicológicos que nele emergem. Tal fato significa, portanto, reconhecer que o encontro que se estabelece no campo - e o que se estabelece com os dados quando da escritura do texto etnográfico - circunscreve uma situação que implica elementos outros - não relacionados com a técnica (observação participante ou de redação) nem com os processos cognitivos emergentes do aprendizado em antropologia. Tais elementos circunscrevem-se na ordem do psíquico, do desejo, da vontade, que implicam afetos nem sempre "dizíveis", em nosso cotidiano.
A emergência desta experiência - a do conhecer-se - no trabalho do antropólogo, portanto, só se torna possível quando inserido num campo de relações - ali estamos colocando em jogo nossa identidade e as formas pelas quais ela se expressa, conseqüentemente, estamos sujeitos às mudanças que porventura estas relações exigem.
Tal questão me faz pensar no processo de construção de identidade. É consenso, que a identidade é construída a partir das relações sociais que os indivíduos estabelecem em sua sociedade. No entanto, vale ressaltar que, nesta construção o indivíduo também se percebe, pois o processo implica uma auto-percepção de si em relação - e tal perspectiva também esteve presentes na minha trajetória dentro da Antropologia, o que me faz sentir meu trabalho como uma interpretação, como supõe Geertz (1978).
Como disse em minha apresentação, este trabalho vem sendo construído há quatro anos. E este processo - o da construção - tem se caracterizado como um "vaii-e-vem" interminável, pois a cada momento em que me dispunha a terminá-lo sentia que ainda não estava pronto para isso.
O que pude observar foi que, à medida que pude assumir novos papéis sociais, resolvendo alguns problemas deixados ao longo do tempo, como filhos, casamento, trabalho, psicologia, pude também "olhar" a dissertação , o universo que trabalhei, os jovens, de maneira diferente. Nesse sentido, me vi numa marola: descobrindo (e me descobrindo) as (nas) novas possibilidades de se olhar o mundo.
No ônibus, aquele que nos leva da Universidade para o centro de Florianópolis tive a sensação de que terminei este escrito. Parecia um alívio. Por outro lado, também tive a sensação de que - nesta marola que vai e vem - eu tenho e faço a história, acho que este trabalho é um pouquinho dela...
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