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ANEXO
SURFE E GLOBALIZAÇÃO
Para os adeptos do surfe (surfistas ou não) este esporte representa um "estilo de vida", estilo que é compartilhado por todos e que a todos une formando uma grande "tribo", cujo "território" extrapola os limites dos países e dos continentes. O Editorial que segue é bem elucidativo quanto a isso.
"Nos últimos 10 ou 15 anos, através das viagens e troca de experiências e tecnologia ligada ao surf, o esporte tornou-se realmente internacional. Os surfistas de todo mundo chegaram a conclusão de que temos muito em comum uns com os outros, apesar das diferenças culturais de nossos respectivos países. Por sinal, os surfistas muito viajados tornam-se cidadãos do mundo, todos falando a mesma linguagem ... O amor pelo surf e seu estilo de vida. Essa linguagem especial costuma vencer todas as barreiras. (Editorial, Surfe Magazine, s/nº, 1987: 5).
Esta dimensão global também pode ser vislumbrada a partir da linguagem que esta "tribo" utiliza, pois este "universo social" é mediatizado por um língua bastante específica. A frase abaixo, lida numa revista de surfe, mostra quanto complexa ela é:
"A onda entrou em inside, e ele com um cut-back radical conseguiu atrasar. Aquele spot era tão intenso que o lip caiu sobre o reef com força de swell do north shore. Aí ele virou sua swallow e..." (Fedoca. O pequeno glossário do surf brasileiro In Surfer Magazine, s/n, 1987, p. 31)
Para aqueles que não estão envolvidos com o esporte fica muito difícil entender esta frase. Em outra revista temos a seguinte explicação:
"o surf, por ter sua origem em países de língua inglesa traz consigo uma série de nomenclaturas que, aqui no Brasil, foram mantidas em sua forma original " (Fluir, n. 28, p. 20)
Assim, a utilização de uma linguagem específica - a do "universo do surfe" - permite aos seus praticantes situarem-se de modo diferenciado no universo de nossa sociedade.
Nesse sentido, Preti (1984), ao definir uma comunidade lingüística afirma
"que ela compreende certos comportamentos constantes eleitos pelos que falam como ideais para comunicar-se e transmitir as informações necessárias à vida em comum. Esses hábitos lingüísticos, com a força de uma convenção tácita, liga-se de maneira indissolúvel ao modo de viver e encarar a vida numa sociedade, formam o que se convenciona chamar de uso." (Preti, 1984:1)
Este autor ainda aponta uma tendência humana a repudiar os condicionamentos lingüísticos (tendo em vista que implicam em um condicionamento comportamental) porque relega o homem - lingüísticamente - ao anonimato da grande massa falante. Assim, sempre que possível determinados grupos se isolam, adotam uma "linguagem especial" opondo-se ao uso comum. Este comportamento lingüístico é decorrente do próprio comportamento social (e inclusive é parte dele) o que pode ser denominado de uso restrito de certos grupos sociais.
Nesse sentido, entendemos que a linguagem do surfe atende não só ao desejo de originalidade deste grupo social, mas também a finalidades diversas, como por exemplo, ao desejo de se fazer entender apenas por indivíduos que participam deste universo, servindo como um elemento de auto-afirmação, de realização pessoal, de marca original, transformando-se em signo do grupo.
Assim, a linguagem do surfe caracteriza-se por um vocabulário especial como um signo de grupo, a princípio secreto, de domínio exclusivo de uma comunidade social e o seu
"... uso restrito ... evoca hábitos, atitudes, atividades pouco correntes e, muitas vezes, contraditórias ao status quo social." (Preti, 1984:3)
Quanto maior for o sentimento de união que liga os surfistas, mais sua linguagem servirá como um elemento identificador, diferenciando o falante na sociedade e servindo como meio ideal de comunicação que, pelo que pudemos observar, envolve "cidadãos do mundo inteiro".
Uma outra característica do surfe que concorre para assegurar sua especificidade e a partir da qual podemos afirmar seu aspecto global refere-se à maneira como se pratica o surfe. Ao perguntar para um leigo o que ele entendia, o que ele via no surfe, ele me respondeu: "é um esporte onde o indivíduo desliza sobre as ondas do mar utilizando uma prancha." No entanto, o surfe não é só isso. Sérgio Ribeiro, descreve assim o que vem a ser "o surfar uma onda":
"A entrada da onda é chamada de drope, a descida da crista para a base que deve ser o mais vertical possível. A seguir vem o botton turn, ou cavada, que é a curva na base da onda. A partir daí o surfista começa as manobras, que sendo feitas de costas para a onda são chamadas de back side e de frente para a onda de front side. (...) Depois o atleta volta para a parede da onda, executando a batida junto ao lip (crista), buscando velocidade. Aproveitando o impulso, o surfista utiliza o cut back para virar a prancha em direção a espuma que deixou para trás. A onda começa a fechar e o atleta diminui a velocidade para tentar o inside ou tubo. Quando a onda quebra totalmente é a hora da finalização, que pode ser feita com uma batida na junção das duas sessões de espuma. Outra forma é com o reentrie, que consiste de um redirecionamento da prancha para a praia na hora da fechada da onda. Há ainda o floater, onde o surfista flutua sobre a sessão de espuma, ficando praticamente sem sustentação." (Ribeiro, R. Da entrada da onda até sua finalização. Diário Catarinense 11.09.88, p.41)
O que podemos depreender desta explicação é que o surfista não tem como objetivo surfar "a favor da onda", cuja direção é a areia da praia - ele busca o alto mar, e para tanto, aproveita a própria energia do mar - o repuxo dágua que produz as ondas. Este "jeito de entrar na onda" (ver Abbot & Baker, 1981 para mais detalhes sobre as manobras do surfe) caracteriza uma técnica corporal no sentido estabelecido por Mauss (1974b), pois nos permite diferenciar o esporte tanto aqui como em qualquer lugar do mundo, de outros, cujas características são semelhantes às do surfe, como por exemplo, o "bodyboard" (surfe de peito), o "knessboard" (surfe de joelhos), o "wind-surf", etc...
Além disso, o "ato de surfar" também é considerado, pelos praticantes, como um ato de "comunicação". Os surfistas que ficam na praia olhando seus companheiros no mar, geralmente emitem opiniões sobre tal "performance": "que radicalidade", "que domínio", "ele amarelou" (ficou com medo), ou seja, as manobras comunicam - expressam -um "estilo", uma "maneira de surfar". Enfim, os atos que são executados, dentro e fora da água, constituem um sistema simbólico que é decodificado somente por aqueles que conhecem o esporte.
Uma outra característica que concorre para que o surfe se insira no sistema global é o "discurso" que elabora em defesa da ecologia. A problemática da ecologia (poluição, urbanização, desenvolvimento, etc...) é concebida pelos adeptos ao surfe como um problema que diz respeito ao mundo como um todo, pois acreditam que sua magnitude pode determinar o destino da humanidade.
Tal ideário fica muito clara nos artigos publicados nas revistas especializadas. Encontramos com freqüência nas páginas das revistas denúncias sobre os pontos de poluição do litoral brasileiro, destruição da Mata Atlântica, etc... Ele também está presente nas narrativas das "surf-trips" - viagens para surfar, nas reportagens ssobre países exóticos e distantes que se configuram como um bom "point" para a prática do surfe, etc...
Este discurso "ecológico" também vai abarcar aspectos relacionados com a saúde e comportamento do surfista. Através de artigos publicados em revistas e jornais especializados no esporte, médicos, nutricionistas, professores de educação física, surfistas, oferecem "dicas" sobre alimentação, exercícios físicos: aquecimento, alongamentos, musculação, etc... "recheados" com conselhos para não se ingerirem bebidas alcoólicas, drogas, para se dormir relativamente cedo, etc... o que possibilitaria ao atleta ter uma boa saúde e, conseqüentemente, um bom desempenho na prática do surfe (vale ressaltar que estas revistas pensam o surfe enquanto esporte profissional).
Cabe assinalar ainda que os eventos promovidos pelas associações de surfe - campeonatos, triagens, seletivas, etc... - desempenham um papel fundamental na diivulgação, manutenção e recriação destas características o que assegura ao surfe uma dimensão global - pois as regras que avaliam os praticantes - profissionais e amadores - são definidas internacionalmente.
Tendo em vista as considerações acima, entendemos os surfistas como um grupo específico, cuja "territorialidade" (Guattari & Rolnik, 1986) envolve todo o planeta, pois o sistema simbólico nele operacionalizado é compartilhado por todos aqueles que estão inseridos no universo surfístico .
Como nos aponta o Editorial transcrito, apesar de identificarmos alguns aspectos do surfe que o inscrevem na dimensão da globalidade, ele toma conotações diferentes na medida em que é apropriado pelos diversos grupos de surfistas espalhados pelo mundo.
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