Comentários sobre o filme "Central do Brasil"
Jornal "Folha de São Paulo"
Arthur Omar mostra o lado oposto a "Central do Brasil"
MARCELO COELHO
(Folha de São Paulo, 08 de abril de 1998)
Não vou fazer aqui o papel de crítico chato, apontando as falhas (vi algumas, mas posso estar errado) de "Central do Brasil''. O filme de Walter Salles Jr. deixou de ser um simples filme, é um fenômeno social. Multidões aplaudem e choram, choram copiosamente, a cada sessão. O "Titanic'' é um naufrágio em copo d'água perto das inundações emocionais de "Central do Brasil''.
Chora-se pelo menino, chora-se por Fernanda Montenegro, chora-se pelo pai, pela mãe, pelo irmão do menino, chora-se pelo povo, chora-se pelo sertão, chora-se pelo Brasil, chora-se pelo urso de Berlim, choramos todos por todos nós.
É um choro feliz. "Central do Brasil'' investe numa descoberta horizontal, a de um país que, pelo próprio abandono, encontra forças em si mesmo, no próprio coração. Há um quê de acrítico em tudo isso; o filme é feito para emocionar apenas e o faz soberbamente, com imagens que parecem rasgar a tela, riscos de luz, traços de manhã, sulcos de chão, ferrovias, estradas, livre curso de lágrimas.
A tensão dramática do filme não reproduz a tensão social brasileira, tal como a entendemos de um ponto de vista clássico. Ou seja, não há ricos contra pobres; não há um eixo "vertical'' orientando a história. O foco da narrativa está na possibilidade _ou não _de pessoas da classe baixa se reconhecerem enquanto iguais. A utopia do filme se projeta não mais de acordo com idéias como "revolução'' e "justiça'', mas sim segundo um evangelho da brasilidade e da comoção.
Tanto que a única cena de real conflito do filme _quando Fernanda Montenegro resgata o menino de uma quadrilha de exportadores de crianças _soa artificial, inverossímil. Mas aqui está o crítico a se mostrar implicante e ranheta. Viremos a página.
Antes disso, uma última observação. Conversando com uma antropóloga, que realizava pesquisas na periferia de São Paulo, fui informado do seguinte: as organizações locais, as sociedades de amigos de bairro etc., estavam deixando de tomar o Estado como referência e alvo de suas reivindicações, preferindo organizar-se por si mesmas.
Não é esse o sentido básico de "Central do Brasil''? A meu ver, consiste no fato de que, em tempos de Fernando Henrique, o exato simétrico do "enrichissez-vous'' de Luís Felipe, em plena ascensão capitalista na França de 1830, é o "virem-se'' que a classe dominante tucana dedica a seus eleitores comovidos.
Esse "virem-se'' ganha condições de epopéia no filme de Walter Salles Jr. É como se fosse aceita a irresponsabilidade absoluta do governo na salvação do país. Choramos pelo desvalimento dos pobres, pela capacidade desses mesmos pobres de se virarem por si mesmos, criando suas pequenas marcenarias, suas modestas redes de auxílio mútuo, suas religiões comunitárias.
O choro nos irmana, então, graças a recursos ficcionais meio capengas. O filme nos faz esquecer do Estado. Por um lado, isso é uma qualidade _autogoverno, pós-populismo etc. _e por outro lado é defeito: acriticismo, conformismo diante do "trololó" democrático de FHC, que confia no abandono dos desvalidos como se fosse um apoio à criatividade da sociedade civil.
Mas, ao contrário do prometido, estou sendo um crítico ranheta. Passemos a outro assunto. Em que momento chorei no filme?
Chorei quando aparecem os rostos das pessoas pobres, em três por quatro, declinando o endereço do remetente para as cartas que Fernanda Montenegro punha (ou não punha) no correio. Há um orgulho imenso, uma veracidade, uma força afirmativa, uma realidade ingênua e _com perdão da palavra _racial naqueles rostos. Há um sorriso de dentes tortos, uma confiança brutalizada, uma frontalidade de documento lambe-lambe, um... enfim, há um tal Brasil naquilo tudo, que é tão raro, tão precioso, tão ameaçado, tão próximo e tão distante, que... bem, tudo foi muito "tão'', foi "tanta coisa'', que não resisti.
Mas ao mesmo tempo eu tinha comprado o livro "Antropologia da Face Gloriosa'' (Cosac e Naify editores), de Arthur Omar. São umas duzentas páginas de fotos tiradas durante o Carnaval, focalizando rostos de gente do povo.
Esse livro é genial, é uma obra de arte densa, misteriosa, abissal. Vemos aí o "povo brasileiro'' a partir de uma ótica extrema, apavorante e demoníaca. Não é mais o povo de "Central do Brasil'', capaz de bons momentos, de solidariedade espontânea e construtiva.
A deformidade, o travestismo, a sedução canalha, a maquiagem carregada, o monstruoso: tudo aparece num registro incompreensível para nós, ameaçador, completo e radical. O "povo'', aqui, é aquilo que é realmente: não o compreendemos, não somos iguais a ele, tem em si tanto de ameaça quanto de pacificação.
No excelente ensaio que acompanha o livro, Ivana Bentes fala da força mitológica, obscura, desses rostos. A "face gloriosa'' de Arthur Omar corresponde à teoria católica do "corpo glorioso'': aqueles cadáveres que, no paraíso, esperam o dia do Juízo Final para ressuscitarem plenamente. Captando "faces gloriosas'' no êxtase demoníaco do Carnaval, Arthur Omar fixou misticamente os rostos predestinados à salvação.
A utopia, aqui, é uma coisa estranha, feia, à qual os frequentadores do Espaço Unibanco e os que choram no filme de Walter Salles Jr. não têm acesso. As fotos de "Antropologia da Face Gloriosa'' são o negativo de "Central do Brasil''. Projetam uma revolução; algo de negro, de turvo, de irracional, de xamânico e de justo, de incompreensível e aterrorizante para nós.
Arthur Omar mexe mais fundo, imerge num território sem lágrimas, só de suor, esgar, estranheza, frenesi sem correspondência com nosso coração doméstico. São duas versões, afinal, do "povo'' brasileiro. A de "Central do Brasil'' é conciliadora e emotiva; a outra é áspera, feia, transida de futuro, de misticismo, de um sangue que se coagula em fotos que nos fazem recuar.
Todo crítico terá algo de primeira-dama histérica se preferir, por princípio, o "mais radical'', o "mais avançado'', o que houver de "mais vanguarda'', em detrimento da humanidade simpaticíssima de Walter Salles Jr. Politicamente, até, me inclino mais em favor de "Central do Brasil'' e simpatizo com a choradeira que provoca e da qual participei. Mas Arthur Omar, e sua "Antropologia da Face Gloriosa'', é outra coisa. Aqui temos algo de genial; de tão desagradável, que nos livra de chorar e nos perturba; de tão bonito, que nem ficamos contentes de ver; de tão estranho, que dói em alguma parte do corpo que não conhecíamos. Aqui, não há descoberta do Brasil: há o mistério do Brasil, o estranho do Brasil. Eu prefiro.
VIAGEM AO PAÍS REAL
JOSÉ GERALDO COUTO
(Folha de São Paulo, 08 de abril de 1998)
"Central do Brasil" é uma viagem. Uma não, muitas.
No sentido geográfico, é a viagem de uma velha escrevinhadora de cartas, Dora (Fernanda Montenegro), e de um menino de 10 anos, Josué (Vinícius de Oliveira), ao sertão do Nordeste, em busca do pai do garoto.
No sentido social, é uma viagem a um Brasil pobre e arcaico, distante dos bairros chiques do Rio e de São Paulo.
Mas há também um itinerário moral nessa jornada: a viagem de Dora em direção à afetividade.
No início do filme, em sua banquinha na estação Central do Brasil, no Rio, Dora está pouco se lixando para o drama dos analfabetos que recorrem a ela para escrever suas cartas a parentes e amigos.
Aliás, arvorando-se em juíza dos destinos de seus clientes, ela escolhe as cartas que vai colocar no correio e as que vai jogar no lixo.
Depois de encontrar Josué cuja mãe morre atropelada em frente à estação, Dora acaba se envolvendo emocionalmente com o garoto, a ponto de partir com ele em busca do pai.
Como nas melhores comédias e nos melhores melodramas, em princípio os dois não se bicam. É só aos poucos, depois de enfrentarem todo tipo de barra na estrada, que o afeto entre os dois vem à tona.
Esse é, em linhas gerais, o enredo do filme, com direito a muitas surpresas pelo caminho.
O importante, entretanto, é o modo como a história é contada em imagens. O diretor Walter Salles mostra-se seguro e amadurecido na construção de seu filme.
Contando com um elenco impecável com destaque para Fernanda Montenegro e Marília Pera, ele mistura em doses exatas a ficção e o registro documental.
Muitas das pessoas que aparecem no filme a começar pelo garoto Vinícius de Oliveira, descoberto por Salles quando engraxava sapatos no aeroporto Santos Dumont, no Rio não são atores profissionais. E várias das histórias contadas nas cartas ditadas a Dora também são verdadeiras.
O que chama a atenção nessa mistura de atores tarimbados e não-atores é a harmonia de tom, além da naturalidade das interpretações.
O garoto Vinícius de Oliveira foi treinado especialmente pela preparadora de atores Fátima Toledo, a mesma que havia preparado os atores-mirins de "Pixote".
Com uma história forte e tanto capricho na realização, "Central do Brasil" fez por merecer os prêmios que ganhou no Festival de Berlim: Urso de Ouro de melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro.
E já está sendo considerado forte candidato ao Oscar de filme estrangeiro no ano que vem.
Há quem considere o filme um pouco melodramático demais. Pode ser. Mas os durões que se cuidem: é difícil sair do cinema com os olhos enxutos.
VIAGEM AO PAÍS INDIFERENTE
JURANDIR FREIRE COSTA
Entrevista com Walter Salles - Folha de São Paulo, 29/03/98
Na entrevista a seguir, Walter Salles fala de seu filme "Central do Brasil", premiado em Berlim com o Urso de Ouro de melhor filme e com o Urso de Prata de melhor atriz. Com serenidade e entusiasmo, ele defende o compromisso do cinema com valores morais, mas sem querer fazer de seu estilo de pensar paradigma do fazer do outro. Em sua opinião, a maior qualidade da cinematografia brasileira é a pluralidade das tendências movida pela mesma fome de cinema. Esta é a linguagem comum, e o menos aqui é mais.
"Central do Brasil" retoma o projeto que fascinou o Cinema Novo: mostrar o Brasil escondido ao Brasil oficial. Os personagens que partem em busca do país, do pai ou das emoções perdidas vão revelando, no mesmo movimento, o mais íntimo de si e o mais íntimo de uma terra que amedronta e seduz. Depois da viagem, não serão mais os mesmos. A apatia converte-se em ação, a indiferença em solidariedade e o desprezo em confiança. Como em toda bela fábula moral, "Central do Brasil" não se preocupa em doutrinar. Contenta-se em mostrar, sugerir e convidar a quem quiser para que vá e veja. Em seguida, a cada um segundo sua vontade e de cada um segundo sua possibilidade.
Hannah Arendt disse, certa vez, que a modernidade ocidental abandonou a grandeza pública da Antiguidade pelo encantamento das emoções privadas. Num momento em que o público e privado parecem ter perdido o sentido, Walter Salles consegue fundir grandeza e encantamento num filme terno, lírico e humanamente aberto ao mundo. Poucos são capazes disto; poucos conhecem o valor disto.
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Folha - A dupla premiação de "Central do Brasil" fez com que você fosse solicitado a dar muitas entrevistas sobre o filme. Em algumas você referiu-se ao tema das cartas. Em "Socorro Nobre", a correspondência é o eixo do seu documentário e em "Central" volta a ser o elemento chave do enredo. Você poderia falar um pouco mais sobre isto?
Walter Salles - Fiquei muito impressionado com a maneira pela qual uma troca de cartas, uma coisa tão prosaica, pode ser decisiva na vida das pessoas. Comecei, assim, a pensar no que aconteceria se alguém insensibilizado pelo mundo, como a personagem Dora, de Fernanda Montenegro, impedisse as cartas de circularem. Isto significaria simplesmente impedir que estas pessoas tivessem voz.
Folha - Que relação você percebeu entre as cartas e o trajeto social e emocional dos personagens?
Salles - A importância das cartas na vida de Socorro Nobre confirmou-se no caso de outras pessoas em "Central do Brasil". No primeiro dia de filmagem, a mesinha da Dora foi posta na estação. No roteiro havia uma série de cartas já escritas, e os atores, na maioria estreantes, tinham sido preparados para ditá-las. O conteúdo da correspondência falava dos laços com regiões ou familiares distantes e tentavam mostrar possíveis razões da migração interna brasileira. Só que, ao ver a mesinha, os próprios usuários da Central começaram a se sentar, a ditar as cartas e a pedir que fossem enviadas. Pouco a pouco fomos substituindo os depoimentos do roteiro pelos depoimentos espontâneos, que tinham uma carga afetiva, uma transparência de sentimentos sem dúvida responsáveis pela voltagem emocional do filme.
Folha - De que tratavam as cartas? Que afetos eram esses?
Salles - É impressionante como você diz tudo numa carta. As pessoas que sentaram ali e, mais tarde, fizeram o mesmo em Cruzeiro do Nordeste, no interior de Pernambuco, onde a cena das cartas se repete, tinham um enorme desejo de contarem histórias e, sobretudo, de serem ouvidas. Estas pessoas não têm voz pública e jamais aparecem na televisão, pois seus rostos e modos de vida não fazem parte da iconografia televisiva. Entretanto, quando falavam, diziam coisas de uma beleza inegável. Lembro, agora, do que dizia Pabst, o cineasta alemão: o realismo nada mais é do que uma ponte para o poético. Em Berlim disseram que o filme tinha uma carga documental interessante. É verdade. Mas os depoimentos espontâneos acrescentaram ao filme uma força poética que ultrapassa o puramente documental. Muitas coisas só podem ser ditas por carta. A comunicação por carta tem um tempo próprio, uma extensão particular e uma reflexividade incompatíveis com meios de comunicação frios como o e-mail. Nas cartas enviadas, muitas vezes nada havia de pragmaticamente utilitário. Falava-se constantemente de sentimentos, da vontade de torná-los vivos para o outro. Em certa medida já havíamos intuído isto nas cartas de "Socorro Nobre", que eram dilacerantes de emoção e de verdade.
Folha - Você poderia falar um pouco mais sobre a questão dos ícones televisivos? Os personagens de "Socorro Nobre", "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil" são todos fascinantes, mas nada têm a ver com o padrão de imagens humanas criado pelo consumo. Você busca mostrar expressões do humano que escapem aos clichês da propaganda de mercadorias?
Salles - Na verdade, isto tem a ver com a riquíssima tradição do cinema brasileiro. Veja o Cinema Novo! Um dos grandes méritos de Nelson Pereira dos Santos foi o de ter mostrado o rosto do Brasil na tela.
Antes do Cinema Novo, o cinema brasileiro era um cinema de estúdio ou um cinema paródico. O que as chanchadas, por exemplo, faziam, às vezes de maneira muito divertida, era desconstruir o cinema americano, caricaturando-o.
Já o Cinema Novo e, surpreendentemente antes dele, Orson Welles, em "Nem Tudo É Verdade", sobretudo na parte filmada no Ceará, mostraram brasileiros quase nunca vistos no cinema nacional.
Quando se vê hoje "Vidas Secas", fica-se impactado não só pela modernidade do filme, mas pelo fato de que cada gesto dos personagens tem um significado que transcende o próprio gesto. Há uma qualidade emblemática e insubstituível em cada plano. Se você retira um deles, a arquitetura desmorona. Como numa ordem sinfônica, cada plano é grávido do próximo plano, assim como cada nota anuncia a nota seguinte.
Folha - Qual a relação entre isto que você diz e os personagens dos filmes cinemanovistas ou dos seus filmes?
Salles - É que os personagens e suas atuações só ganham plena significação quando estão articulados a situações emocionais e sociais que eles próprios sublinham. Isto é visível em "Vidas Secas" ou em "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro". O que havia neste cinema é aquilo que o Hélio Pellegrino, com o brilho que era só seu, me disse certa vez, saindo de um filme do Glauber: "Esse filme pega na jugular da brasilidade". Foi isso que o Cinema Novo realmente fez, criar a possibilidade de se pensar num cinema que fosse um espelho da brasilidade.
Folha - Então, o objetivo de suas histórias e personagens é o de devolver aos brasileiros cenários esquecidos do Brasil?
Salles - Bem, é nesta tradição que pretendo me inserir, dentro dos meus limites. Vendo "Vidas Secas" você entende melhor o que aconteceu naquela época do que vendo toda a produção televisiva que se iniciava no Brasil. O mesmo acontece com "São Paulo S/A", de Luiz Sérgio Person. Assistindo a este filme você vê como se deu o início da corrupção urbana brasileira e o processo de mimetização do modelo industrial dos países grandes. Pois bem, tento achar uma forma de expressão no jogo dos atores que melhor traduza os dilemas e saídas de minha época.
Folha - Dentro do tema da brasilidade, qual a diferença entre "Terra Estrangeira" e "Central do Brasil"?
Salles - Em "Terra Estrangeira", o desespero do personagem de Laura Cardoso, com grande inteligência interpretativa, transforma-se na desesperança do filho que migra para Portugal. O exílio do garoto exprime o que Contardo Calligaris, em "Hello Brasil", descreveu como sendo o impasse de nossa identidade, a constituição da auto-estima.
No período Collor sofremos, talvez, a mais séria crise de auto-estima nacional. O filme tenta retratar aquele estado de coisas. Em "Central" o problema é outro. Dora carrega com ela a brutal indiferença de seu tempo. Não enviando as cartas, como prometera aos clientes, ela age com o cinismo dos que sabem que não vão ser punidos. Seu gesto é o espelho do que vem acontecendo aqui desde os anos 70 e 80. Nesta época, a indiferença secular dos poderosos para com quem não tinha poder parece ter crescido e ampliado seu círculo de influência. Isto veio junto com a idéia de que este será o país do futuro neoliberal, futuro que nem chegamos verdadeiramente a discutir, mas que já assumimos apressadamente.
Dora representa tudo isto. Ela tem uma relação totalmente aética com as pessoas que a cercam. Na verdade este é um filme sobre a importância de você perceber o outro. Procurei passar essa idéia, mostrando como alguém que nem sequer enviava as cartas que prometia enviar finalmente torna-se capaz de descobrir ela mesma a importância do que havia desprezado. Foi esta minha intenção. Não sei se fui bem-sucedido (risos).
Folha - Você toca em assuntos éticos e políticos, mas seu cinema não é nem um cinema de militância, nem tampouco um cinema de tese. Me dá a impressão de ser uma espécie de "cinema-compromisso". Enquanto na cultura em geral nota-se uma tendência para diluir os ideais morais no relativismo, na aparência, no simulacro, você fala de solidariedade, fraternidade, descoberta do outro e assim por diante. Isto é importante em sua vida de cineasta?
Salles - Quando o projeto de "Central do Brasil" tomou corpo, sabíamos que o filme ia à contracorrente da tendência majoritária do cinema e poderia ter fraca receptividade por parte do público.
"Central" é sobre a necessidade de descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação com a vida
A qualidade fundamental do cinema brasileiro é a de que nenhum filme pretende servir de paradigma para outros filmes; o interessante no nosso cinema atual é a pluralidade
Folha - O filme, no entanto, tem sido bem recebido.
Salles - Na verdade, o filme parece ter sido bem aceito pelos que o assistiram até agora. Raciocinando a posteriori _o que é sempre mais confortável_, poderia pensar que percebi corretamente as aspirações ou preocupações do público. Isso não corresponderia à verdade. De fato, num filme, o fundamental é o desejo premente de contar uma história e a integridade de propósitos com que se pensa contá-la. Se isto mais tarde encontra um canal de comunicação com o público, tanto melhor. Quando o filme foi pensado há alguns anos, como resultado da experiência com "Socorro Nobre", havia apenas a intuição de que a história poderia ter um significado importante. Mas era impossível prever se o filme ia ou não encontrar eco junto ao público.
Folha - Mas, independente da reação do público, o personagem de Dora é um exemplo da moralidade que você critica.
Salles - Claro! Como disse, Dora representa a cultura da indiferença que vem de mãos dadas com a impunidade. Sua perda de visão moral, no entanto, tem um preço que é a solidão, a incapacidade de se relacionar com o outro. O cinismo de suas condutas faz com que viva uma vida mesquinha, apequenada. A descoberta do menino e a culpabilidade que pouco a pouco começa a experimentar quebram sua couraça emocional e a levam a olhar o mundo de maneira diferente. "Central", como mencionei, é um filme sobre o olhar, o que, aliás, fica evidente em seu final. É um filme sobre a necessidade de vermos o outro e descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação com a vida.
Folha - É isto que você dizia não estar em sincronia com a tendência majoritária do cinema?
Salles - É isto. Esses valores pareciam totalmente ausentes dos personagens do cinema independente, sobretudo americano, dos anos 90. Veja "Pulp Fiction", do Tarantino. Há um momento no filme em que a arma do personagem feito pelo Travolta dispara acidentalmente, matando um garoto inocente. A reação dos outros personagens em cena é, primeiro, de rirem com o que acabara de acontecer e, em seguida, de se preocuparem com a questão cosmética da limpeza do sangue que se espalhara pelo automóvel.
"Central" ia na direção contrária dessa série de "filhotes tarantinescos" dos anos 90, e era realmente possível que a receptividade ao filme fosse nula. Entretanto, ao chegar ao Sundance Festival e depois em Berlim, notamos que de vários lugares do mundo chegavam filmes com a mesma preocupação, ou seja, a questão da fraternidade, da descoberta do afeto, da redenção trazida pela presença significativa do outro. Isto talvez aponte para o ressurgimento de um cinema neo-humanista, como reação ao cinema cínico de Tarantino, de Roberto Rodriguez e de todos os que, nos anos 90, fizeram uma utilização acrítica da violência.
Folha - Sem querer legendar academicamente seu trabalho, "Central do Brasil" parece fazer um contraponto às idéias de Ulrich Beck e Jacques Derrida sobre novas formas de sociabilidade baseadas na amizade, na hospitalidade, na cortesia; ou de Maria Rita Kehl, sobre o papel da "fratria" na reinvenção de formas de vida menos violentas; ou de Renato Janine Ribeiro sobre a exclusão dos afetos na prática da democracia; ou, enfim, de Robert Kurz, quando mostra que o nível extremo da abstração econômica dos seres humanos é a perda da consciência do valor das emoções. Você parece dizer isto quando mostra Dora como um clichê humano exclusivamente voltado para o cálculo utilitário de "fechar a conta no fim do mês", para usar sua expressão.
Salles - Na verdade, penso que o conceito de "nadificação" do outro é o que melhor explica esse estado de coisa. Valores como fraternidade, compaixão, partilha não são vendáveis nem controláveis pelas noções de eficiência ou de resultados imediatos.
Contudo, não têm cotação na Bolsa e são vistos muitas vezes como desnecessários. No entanto, sem a possibilidade de troca e reciprocidade, sem a percepção do valor das diferenças e da idéia de justiça, não construiremos uma sociedade plenamente democrática. Penso que o que acontece no Brasil de hoje, e talvez também fora do Brasil, é o surgimento de um desejo de mudança, um conflito entre as aspirações da sociedade civil e a incapacidade do Estado em responder a estas aspirações.
Folha - Gostaria de fazer outra observação e ouvir sua opinião. Fernanda Montenegro, numa dada entrevista, disse que você contou uma história sem os ingredientes da sexualidade amorosa abastardada, seja na vertente sensual, seja na vertente lacrimejante. Isto me chamou a atenção. Você fala de emoções sem comercialização garantida. É como se houvesse uma vontade de alargar nossa gramática emotiva, presa a dois ou três verbetes já gastos.
O episódio do desmaio de Dora na Casa dos Milagres pareceu-me ilustrativo desta redescoberta emocional de si. O que você pensou quando imaginou a cena?
Salles - Pensei no poder que o desconhecido que tem de alterar nossas vidas. No momento em que Dora se defronta com uma geografia e com personagens sobre os quais não tem o menor poder, ela é obrigada a agir de forma diferente. Suas certezas são abaladas de alto a baixo.
Ela vivia num mundo pequeno, previsível, controlável. Diante do novo, no caso o sertão do Nordeste, começa a se ressensibilizar, a descobrir a alteridade, e tudo se cristaliza no momento da procissão. Naquele instante ela descobre a gravidade de não ter enviado as cartas.
Quando entra no interior da Casa dos Milagres e vê a fé, a importância do que estava em jogo em cada um daqueles pedidos, confronta-se com a culpa e é tomada por ela. Em suma, procurei mostrar como a abertura para a alteridade, representada pela estrada que leva ao desconhecido, provoca em Dora uma mudança afetiva em todos os sentidos.
É também na estrada que, pela primeira vez, ela mostra desejo sexual e amoroso por alguém. Ela só consegue perceber a existência de um homem a partir do momento em que transforma e alarga sua visão de mundo.
Folha - Existe outro elemento em "Central do Brasil" que me pareceu muito importante: o relevo dado à vontade. No fundo, Dora poderia ter dito "sim" ao poder da delinquência. Mas disse "não" e assumiu os custos de seu ato ético. O que você pensa disso?
Salles - Isso me leva a falar do personagem de Marília Pêra, a Irene. Ele é de certa forma o suporte ético do filme. No momento em que as duas se encontram, Dora é surpreendida pela reação de Irene. Ela queria entrar na era do controle remoto, no templo imaginário do consumo, e não esperava defrontar-se com alguém capaz de reprovar seu gesto leviano. Irene aparece como um divisor de águas, quando diz: "Tudo tem limite".
Folha - Essa valorização da vontade de agir separa tematicamente "Terra Estrangeira" de "Central do Brasil"?
Salles - Com certeza. Em "Terra Estrangeira", a tônica era a desorientação e a apatia. Foi um período caótico na vida brasileira. As pessoas viram-se privadas de decidir sobre coisas mínimas, como no caso do confisco da poupança dos aposentados. Você era objeto da ação dos outros e sequer dominava o presente imediato, quanto mais projetos futuros.
Em "Central do Brasil", oito anos depois da época de "Terra Estrangeira", há o desejo de mostrar que a segunda chance é possível e que a ação é necessária. Uma vez tomada a iniciativa da ação, começa a liberdade. Dora liberta-se do domínio dos poderosos e pega a estrada, rumo a uma vida nova.
Folha - Sempre que fala sobre seus filmes você insiste na idéia do trabalho em equipe, na importância do Cinema Novo em sua formação e na idéia de que seu cinema só pode ser entendido à luz da história e da atualidade do cinema brasileiro. Isso é fundamental para a compreensão do que você faz?
Salles - Penso que sim. Penso que nenhum filme existe por si só. Todo filme é herdeiro de uma cinematografia e, no caso do Brasil, esta cinematografia tem importância artística até hoje.
É uma honra pertencer à cinematografia que deu vida à "Limite", de Mário Peixoto, revolucionário em sua estrutura poética não-narrativa e em sua temática existencialista avant la lettre. É uma honra ter como legado o Cinema Novo e ser parceiro de tantos outros filmes recentemente exibidos ou que estarão em breve nas telas.
Vejo-me fazendo parte deste novo cinema que tem a energia dos garotos do "Baile Perfumado" ou dos integrantes da produtora Conspiração, que fizeram "Traição", ainda não exibido e baseado em Nelson Rodrigues.
Portanto, não acredito que se possa isolar um filme do contexto cinematográfico em que ele nasce. É preciso entender que a dupla premiação de "Central" no Festival de Berlim e a maneira como foi recebido no Sundance são, de certa forma, a afirmação da cinematografia brasileira.
Folha - Você fala da cinematografia brasileira. Essa cinematografia, particularmente a de hoje, possui alguma qualidade que lhe seja própria?
Salles - Acho que a qualidade fundamental do cinema brasileiro é a de que nenhum filme pretende servir de paradigma para outros filmes. O interessante no nosso cinema atual é a pluralidade. Há um mundo de jovens diretores interessantes surgindo em diversos Estados do Brasil.
Já falei dos componentes da Conspiração, aqui no Rio, e dos que fizeram o "Baile Perfumado", em Pernambuco. Poderia citar ainda, correndo o risco de esquecer nomes importantes, José Araripe e Sérgio Machado, na Bahia, ou o Karim Ainouz, no Ceará, que fez um roteiro sobre Madame Satã, quase premiado em Sundance, ficando classificado entre os três finalistas.
Estes jovens cineastas vêm fazendo filmes muito diferentes. O denominador comum entre eles é a mesma fome de cinema e a vontade de falar de um país chamado Brasil de tantas formas quantas o cinema permita. Isto nos aproxima da quinta geração de cineastas chineses ou do cinema iraniano, que também não fazem cinema de gênero; fazem filmes pelo desejo de fazer filmes.
O que nos une são interrogações que acompanham o cinema desde o nascimento: quem somos, de onde viemos, para onde vamos? E, se o cinema brasileiro readquiriu rapidamente, desde o início da recente retomada, uma expressiva representatividade internacional, isto se deve à maneira visceral que temos de fazer filmes. Outros filmes com o mesmo desejo de cinema vão surgir e, pouco a pouco, nossa presença em festivais internacionais vai se estabilizar. Estamos voltando a ser uma cinematografia que conta.
Folha - A geração cinemanovista ainda marca o cinema brasileiro?
Salles - Existe uma feliz coincidência entre a retomada do cinema brasileiro e a permanente vontade de nossos mestres de continuarem fazendo filmes. Nelson Pereira dos Santos prepara, agora, um dos mais belos projetos de sua carreira, "Guerra e Liberdade", sobre a vida de Castro Alves em São Paulo, durante a Guerra do Paraguai e em meio à luta pela libertação dos escravos.
Folha - E essa "retomada"? Você tem alguma opinião sobre o que produziu este novo interesse pelo cinema brasileiro?
Salles - Não saberia dizer quais as razões deste renascimento, se é que elas podem ser descritas de maneira linear, como numa cadeia de causas e efeitos. Comparo o fenômeno do crescente interesse pelo cinema no Brasil à ruptura com a proibição de se falar uma língua. É como se tivéssemos sido impedidos por longos anos de contar histórias numa linguagem que nos permitiria dizer o que queríamos da melhor forma que sabíamos e, de repente, o impedimento tivesse desaparecido.
Folha - A imagem é forte e muito bonita. Mas gostaria de mudar ligeiramente de assunto. Por que você escolheu o sertão como metáfora de um novo horizonte de relações humanas?
Salles - Bem, nosso intuito era o de criar uma oposição entre o urbano e o rural, mas sem cair numa visão maniqueísta ou romântica na qual o bem morasse no rural e o mal fosse o inquilino do urbano (risos). Alguns acharam que isto era romantização ou idealização do sertão. Não penso assim. Apenas observei que, à medida que entrávamos no sertão, uma certa delicadeza e fraternidade humana tornavam-se mais visíveis.
Folha - Pode dar um exemplo?
Salles - Poderia dar vários. Muitas vezes, nas viagens de locação, fomos convidados a dormir na casa das pessoas ou a dividir um prato com quem já não tinha muito o que comer. Isto, a meu ver, já é muitíssimo e fala por si. Mas, além disso, a solidariedade da população conosco foi comovente. Vou citar um único episódio.
Em Cruzeiro do Nordeste, no último dia de filmagem, aconteceu algo especialmente tocante.
Terminados os trabalhos, despedimo-nos das pessoas. Era o cair da tarde. A equipe estava reduzida a 20 e poucos integrantes. Entramos nos carros e caminhões e, quando estávamos prontos para partir, algumas pessoas começaram a deixar suas casas e a se aproximarem de nós.
De repente, uma voz à capela começou a cantar uma música em homenagem a Nossa Senhora das Candeias, que protege os romeiros que pegam a estrada. A partir daquele momento, nós éramos os romeiros.
Em pouco tempo, outras pessoas também começaram a cantar e, em breve, dentro de alguns minutos, 700 pessoas, na praça, em volta dos carros, estavam cantando. Saímos todos e, num processo catártico, começamos a chorar. Puseram o Vinícios nos ombros de outras crianças e a confraternização seguiu durante um longo tempo. Talvez tenha sido o mais belo dia de toda filmagem e acho difícil que isto tivesse acontecido em Copacabana (risos).
É provável que exista algum grau de idealização nisto. Talvez tenha feito daquela região um espelho da minha esperança, do meu desejo de que seja assim. Mas depois de um certo momento ficamos cansados de viver em meio à indiferença, à impunidade e desejamos que em algum lugar ou em algumas pessoas continue existindo o desejo de mudança, de resistência a este estado de coisa que nos ofende.
Folha - De fato, a cena dispensa comentários. Para finalizar, o que alguém que "pensa em imagens" sente quando é solicitado a "pensar em palavras"?
Salles - Outro dia, respondendo a uma pergunta de Pedro Butcher sobre "Gosto de Cereja", Kiarostami citou Cioran: "Se não houvesse a possibilidade do suicídio, já teria me suicidado". Kiarostami e Cioran falam sobre a morte, o desencanto e o sem-sentido, mas falam de tal maneira que o possível tom desesperançado transforma-se em celebração da vida. Quero dizer que o contraste entre aquilo que é dito e a maneira como é dito é o que torna aquele paradoxo interessantíssimo.
Fazemos coisas que, ao serem ditas, e dependendo da maneira como são ditas, podem ganhar um sentido totalmente novo. Comentar o que faço quando filmo é uma experiência próxima da qual acabei de citar. Procuro fazer da dificuldade alento, mas sabendo que muito do que fazemos é da ordem do inexplicável, para citar novamente Kiarostami.
Em certos momentos, você aborda áreas da experiência humana de forma intuitiva, sem saber exatamente como chegou até lá e por que chegou. É possível que aquilo que pensamos tenha a ver com algo que lemos, escutamos ou observamos em outros momentos. Mas isto não faz parte de um raciocínio apriorístico, do contrário o filme não seria o que é e sim a ilustração de uma tese de caráter acadêmico. Falar retrospectivamente de um filme é ordenar o que de início foi apenas uma soma de acasos e necessidades.
Desde o simples texto inicial até a maneira aleatória pela qual o garoto Vinícius de Oliveira foi encontrado, tudo isto faz parte do trabalho da memória que procura reunir a pluralidade que deu forma a um todo não completamente previsível em seu começo e em seu resultado final.
Sobretudo em se tratando de um "filme de estrada", que é uma matéria viva, pronta a renovar-se e a remodelar-se, em função das surpresas que encontramos e da inventividade de todos os que colaboram em sua realização.
- Jurandir Freire Costa é psicanalista e professor de medicina social na Universidade Estadual do Rio de Janeiro; é autor de "Inocência e Vício - Estudos sobre o Homoerotismo" e "A Ética e o Espelho da Cultura". -