O bug e a TV em 99
Fernando de Barros e Silva
(Jornal "Folha de São Paulo", 26/12/1999)
Há intensa falação em torno do bug do ano
2000. Não vai aqui nenhuma intenção de azedar
o final de ano de ninguém, mas há um paradoxo sintomático no interesse pelo assunto: nos
temores e expectativas que cercam a passagem para o ano
2000, parece haver um desejo inconsciente e mal-disfarçado de que o mundo, afinal, se acabe num barranco. A
fantasia da catástrofe virtual representada pelo bug é uma
válvula de escape, o negativo do tédio e do medo, talvez
ainda maior, de que nada mude depois da festa.
O impacto simbólico do ano 2000, com
tudo que possa representar, parece à véspera da data mitológica ter sido assimilado, ou abafado, pela falta de perspectivas
de transformações. Falta-nos hoje um
fiapo de utopia, qualquer que seja. Sob a
Grande Restauração dos nossos dias, a
vida entrou no curso estúpido da reprodução de si mesma. As pessoas, conectadas como nunca por redes eletrônicas,
estão não obstante mais do que nunca
isoladas e solitárias, absortas em suas tarefas cotidianas e comezinhas.
Simbolicamente, o bug seria uma espécie de "catástrofe natural" do mundo tecnologizado, ou a interrupção do curso de
uma história que parece naturalizada pela tecnologia. É evidente que, de fato,
ninguém anseia pelo bug -talvez uma
ou outra alma com espírito de Unabomber. Ninguém quer passar por apagões,
ficar sem água ou perder as economias
no banco. Mas é disso que se trata: teremos que continuar
trabalhando, pagando contas. Nada, enfim, vai mudar. O
bug (cuja sonoridade lembra o big-bang que originou a
vida na Terra) encarna essa sabotagem involuntária contra o curso cego das coisas, contra uma vida que se tornou
ao mesmo tempo intranscendente e atroz.
Não perderíamos muito se um "bug televisivo" apagasse
o ano de 99 da memória. Sim, balanços costumam ser enfadonhos; o que segue, no entanto, pretende ser menos
uma radiografia dos "melhores" e "piores" do ano do que
uma intervenção parcial (porque toma partido e não se
pretende exaustiva) sobre a TV neste 1999:
* Pegadinhas, pegadinhas, pegadinhas, muitas, em quase todos os canais, explodiram este ano. Todas de gosto
muito duvidoso, quase sempre humilhantes, várias inconsequentes, algumas delinquentes e criminosas. Um
quadro que está associado à figura de Sergio Mallandro se
autodesqualifica sozinho. Retrato da nossa sarjeta moral.
* Marcelo Rossi foi a grande personalidade televisiva do
ano. Transformou a fé em entretenimento de auditório e
colocou a religião no circuito da indústria cultural. Carismático, ultraconservador e infantilizante, é o maior símbolo e o porta-voz da regressão brasileira, o guru da desmodernização em curso. Com ele, a fé foi incorporada de
vez à esfera das trocas -a religião dos nossos dias.
* 99 também foi marcado pela reação e descaracterização da Globo, que respondeu à concorrência aproximando-se dela. A despeito do investimento da emissora para
levantar o horário nobre com a teledramaturgia, que ninguém mais tem dinheiro e "know how" para imitar, a sua
supremacia técnica e financeira foi
posta a serviço de apelações populistas. "Linha Direta" é o exemplo mais
assustador. Sensacionalismo policialesco e sentimentalismo de fotonovela
reúnem-se num só programa interativo que incita à delação de criminosos e
se diz um instrumento da cidadania.
Sua lógica, no entanto, é a dos justiceiros, não a da Justiça. Mistura perversamente ficção e realidade, de uma
maneira que evoca o assassino psicopata do shopping. Seu universo é o
mesmo dos filmes de Charles Bronson. Não serei menos enfático: a sua
inspiração é francamente fascistóide.
* Ainda sobre a Globo, aguardam-se
os resultados do arrastão que promoveu nas demais emissoras. Jô Soares,
Luciano Huck e Serginho Groisman
devem estrear, não se sabe como nem
quando. Ana Maria Braga, que já estreou, vai naufragando com seu "Mais Você", supra-sumo do kitsch, versão televisiva da "musak" (música para
elevadores e salas de espera), cuja função é apenas fazer
companhia ao espectador disperso sem lhe dizer nada.
* A TV Cultura chegou aos 30 anos em crise, financeira
e de identidade. Está num buraco negro, emparedada entre a popularização da TV aberta e as opções de elite da
TV por assinatura. Seu presidente, Jorge Cunha Lima,
forjou uma das frases do ano quando disse, no Maximídia, o maior evento de negócios da mídia, que a emissora
estava aberta à "sociedade publicitária". A Cultura vive de
seu passado. O presente é sofrível, e o futuro, bem...
* Também se desmoralizou este ano o secretário do Direitos Humanos, José Gregori -e com ele um extenso
coro de vozes moralistas, algumas oportunistas, outras
bem-intencionadas-, cuja cruzada pela qualidade na
TV não passou de diversionismo para agradar à classe
média insatisfeita com a baixaria. Sobrou disposição para
o factóide, faltaram seriedade e inteligência ao debate. No
ano 2000, quando o bug passar, veremos o filme de novo.