Do homem cordial ao homem vulgar
Graças às elites, vulgaridade pode virar conceito sociológico
CONTARDO CALLIGARIS
(Jornal "Folha de São Paulo", 12 de dezembro de 1999)
A
vulgaridade é uma propriedade do mundo moderno. Mas há uma vulgaridade que hoje é reserva
especial das elites nacionais.
Os brasileiros já se definiram como homens (e mulheres) cordiais. O país inteiro, aliás, era cordial: um sistema social de favores, de protegidos e de amigos do peito. Modernizou-se e segue nessa direção -o que significa, em princípio, que evolui para um sistema no qual
os direitos de cada um não dependem de ele estar ou
não no coração dos amigos.
Não sei se esse é ou não um progresso. De qualquer
forma, algo (talvez muito) vai ser perdido na troca.
Mas
esse não é o tema, agora.
Essa modernização aos trancos e barrancos deixa
nossas elites (como se costuma dizer) divididas entre
resquícios da antiga cordialidade e erupções de modernidade. Com isso, elas ficaram feias como nunca: vulgares, em um sentido bem além de um vago juízo estético.
Graças a elas, talvez a vulgaridade passe a ser um conceito sociológico. Mas, para começar, é necessário se
perguntar o que pode ser a sensação de vulgaridade.
À espera dos aviões
Quando eu era criança, em
Milão, estação de trem era lugar pouco recomendável e
vagamente perigoso: a melhor aproximação dos bas-fonds da cidade. Por necessidade, os exponentes das
classe privilegiadas se aventuravam até os vagões em
que viajariam. Às vezes, menos ricos ou mais avaros do
que gostariam, viajavam até de segunda classe, mas não
sem lamentar os tempos em que havia três classes e
uma pessoa podia até viajar de segunda -pois a ralé ficava na terceira. Mas enfim, como diria minha avó,
houve "essa mania" de abolir diferenças, e a terceira
classe se foi.
Os aeroportos, ao contrário, nos anos 50, eram reservados a poucos eleitos. Em domingos de verão, era um
programa popular olhar os aviões. Os clientes naturais
da ferrovia (não dos aeroportos) chegavam de bonde, a
pé ou a bordo de carros velhos e repletos de gente, montavam piqueniques na grama suja e passavam o dia de
camiseta, à espera de que os aviões passassem urrando
por cima deles, como rolos compressores sancionando
sua inferioridade social. Parecia haver, nessa contemplação, um misto de veneração tecnológica, de admiração pelo privilégio de voar e talvez de esperança de que
os filhos, ao contemplarem aqueles engenhos tão próximos e intocáveis, pudessem um dia chegar lá.
Eu via essa estranha reunião perto das pistas do aeroporto Forlanini, quando, em alguma excursão, saíamos
da cidade pelo oeste. Com o nariz espichado no vidro
do carro, perguntei um dia por que não parávamos ali
para passar nosso domingo, apenas contemplando os
aviões. Uma voz me respondeu que eu já subira em um
avião e em muitos ainda subiria (previsão que se revelou infaustamente verdadeira).
Esqueci as palavras que vieram depois, mas aprendi
que ficar ao lado da pista e olhar aviões em um domingo
de verão era uma atitude vulgar. Foi minha primeira experiência da vulgaridade.
Mas por que era vulgar, afinal?
Para nossos antepassados próximos, até o século 17,
"vulgar" significava comum, banal, próprio à massa do
povo -sem a conotação de torpe ou abjeto. Para eles,
dizer que o povo era vulgar significava apenas um pleonasmo, algo como afirmar que o povo é popular.
Acontece que até então o povo era povo e se presumia
que continuasse povo. Ele não precisava ser contido em
seus quintais pelos estigmas da cafonice. Não havia,
portanto, grande necessidade de recorrer a considerações estéticas para separar o povo das elites. Pertencer
ao povo talvez não fosse o melhor destino, mas era um
fato, não um insulto.
Frear e humilhar
A coisa muda drasticamente no
fim do século 18: de repente "vulgar" se torna uma injúria social. Ser vulgar não é só pertencer ao povo: significa ser grosso e inferior. "Ordinário" segue o mesmo
destino semântico. Começa assim a experiência moderna da vulgaridade.
Mas como isso se instaura? Desde sua aurora, a modernidade decreta que somos todos iguais em princípio
e direito. Não há mais obstáculos essenciais à mobilidade social. Qualquer barata -comenta-se nos salões-
pode subir pelos canos do esgoto e abrir espaço na sociedade. Torna-se útil, portanto, frear e humilhar um
pouquinho as pretensões da barata e, eventualmente, se
ela chegar até os aposentos, achar nela um cheiro de esgoto, resquício de suas origens.
Foi o que me apresentaram no aeroporto Forlanini: o
povo enquanto tal é apenas banal. Agora, quando ele
manifesta suas aspirações e sonha um dia viajar em um
avião, já se torna vulgar. Se por acaso conseguir se infiltrar, obviamente ele não vai caber em nossa sociedade.
A vulgaridade, no começo, é uma experiência conservadora, uma resistência à mobilidade social moderna. É
o desprezo para o recém-chegado ou mesmo para
quem confessa seus sonhos de crescer.
De qualquer forma, no fim do século 18, mesmo deixando de lado o problema das baratas (que não representavam ainda uma grande ameaça, pois a subida do
esgoto é longa e escorregadia), as elites já não sabiam
mais como se diferenciar.
Até então era simples: por nascença, você era duque,
ele era conde e eu era burguês. As pessoas se dividiam
segundo critérios objetivos: pertenciam a classes diferentes. Havia até regras (ditas suntuárias) pelas quais
você podia usar colarinho de vison, ele só de cordeiro e
eu, burguês, simplesmente de lã.
De repente, isso acaba e torna-se necessário encontrar
critérios subjetivos para estabelecer o grupo. Com
quem quero estar? Quem quer estar comigo? Passamos
a nos escolher mutuamente. Portanto (é o sentido do
trabalho de Norbert Elias sobre as boas maneiras) é importante ser admirado.
A apreciação dos outros decide quem somos socialmente. Destacar-se para ser notado, amado, invejado se
torna, por exemplo, mola básica do mecanismo de um
poder cujo fundamento é agora subjetivo. Como não
pertencemos mais a classes definidas por propriedades
objetivas (sangue azul e outros atributos), é necessário
então ter classe, ser "classudo" (mais uma palavra que
desliza).
Poderíamos ter substituído a hierarquia objetiva da
nobre nascença pela hierarquia dos bens móveis e imóveis. A diferença social seria facilmente entendida e praticável. Os mais ricos primeiro, depois os outros, em ordem facilmente calculável. Mas tudo se complicou: resistimos a simplesmente passar da qualidade do sangue
ao capital líquido na conta. Inventamos assim uma outra qualidade: a das maneiras, do estilo, da elegância. De
novo, naquele famigerado fim do século 18, com o dandismo, nossa cultura inventou um critério de distinção
social que continua nos divertindo e atrapalhando até
hoje.
À diferença da nobreza, a elegância é acessível a todos,
não é privilégio de berço. Revolucionária, ela vai permitir que um burguês dite a moda e que um judeu, como
Disraeli, por sua elegância, chegue a ser ministro da rainha Vitória.
Além disso, a elegância não coincide com a riqueza,
ela é esquiva: não se deixa comprar. Ao contrário, instaura-se desde esta época uma espécie de ameaça permanente de divórcio entre estilo e elegância de um lado
e riqueza do outro. Não só é possível ser pobre com estilo, mas também é fácil ser rico sem qualquer elegância.
A elegância e o estilo se tornam então um operador de
inclusão social da mesma forma que a riqueza. Inversamente, os juízos de vulgaridade são em geral procedimentos de exclusão: em primeiro lugar, medidas de
proteção contra a mobilidade social.
Os miseráveis, os pobres e os proletários só são vulgares quando pressionam. Aquém e além de qualquer justificação estética, o pagode, o Ratinho, o Leão etc. são
vulgares pelo espaço que ocupam. Se atuassem na selva,
seriam apenas pitorescos.
O juízo de vulgaridade é o recurso da nostalgia aristocrática. Por isso, o novo rico é condenado ao sarcasmo
quando deveria ser o protótipo do homem moderno, o
herói da mobilidade social.
A vulgaridade assim entendida tem suas épocas e seus
lugares preferidos. Ela floresce nos momentos de aceleração da mobilidade social, por exemplo nos ditos milagres econômicos, nas reconstruções etc., ou seja, cada
vez que um grupo de pessoas enriquece rapidamente.
A vulgaridade é apontada, por exemplo, na prepotência de uma riqueza que quer se impor sem concessões à
elegância (as elites da Alemanha entre as duas guerras,
nos quadros de Grosz). Ou, então, na corrupção da própria elegância, vendida como uma receita de bolo. Nesse caso (por exemplo, na Itália do milagre ou no Brasil
de hoje), assiste-se a uma acelerada codificação da elegância. As listas detalhadas dos objetos, das marcas e
dos apetrechos necessários facilitam a tarefa de compor
um estilo.
No que concerne aos lugares, os europeus (mestres
em cegueiras sobre si mesmos e nostálgicos de antigos
regimes) diriam facilmente que a vulgaridade tem um
lugar de residência onde ela é endêmica: as Américas.
De fato, os americanos (Norte e Sul), na condição de filhos da modernidade, parecem ter aceito sem muitas
nostalgias e remorsos as formas modernas de divisão
social: riqueza e elegância.
Como observou Thornstein Veblen, a riqueza, para
desenvolver sua função de divisor social, deve ser ostentada. A elegância não escapa a essa necessidade: ela
também deve ser conspícua.
O dinâmico "emergente"
No Norte, as hierarquias impostas pela riqueza podem até dispensar a
mascarada da elegância. Por exemplo, Donald Trump é
um caso perfeito de riqueza conspícua sem a sombra de
uma preocupação com a qualidade de seu estilo. Trump
não se importa com isso, o que não impede que ele seja
um plausível candidato presidencial nos Estados Unidos. Ou -fato para ele mais importante ainda- que as
pessoas queiram residir nos edifícios que ele constrói e
batiza.
Seu nome próprio se tornou uma referência de
sucesso social, um marcador de classe, apesar da deselegância de sua figura: Trump Tower, Trump Building,
Trump Plaza etc.
No Brasil a riqueza sem elegância é menos praticável
ou encontra menos sucesso. Talvez só no centro do império seja possível subir e se sustentar em cima da pirâmide social puramente por dinheiro. Nas margens,
próximas ou longínquas, é necessário reivindicar também uma filiação estética com a América do Norte ou a
Europa, que funciona como marca de elegância.
Os
edifícios de nossos mais ricos endereços não possuem
o nome do construtor local, mas Park Avenue ou
Champs Elysées.
Por essa dependência, a elegância ostentada é aqui
uma necessidade, é menos aceitável ser só conspicuamente rico.
Seja como for, as Américas são o continente dos novos-ricos e dos novos-elegantes. Não foi justamente para enriquecer que muitos vieram para cá? A aspiração
de subir na vida aqui não é vulgar. O Brasil, com toda
razão, inovou nesse campo, substituindo o pejorativo
"novo-rico", cheio de desdenho aristocrático decadente, pelo dinâmico "emergente".
Conciliando essas pequenas diferenças entre Norte e
Sul, as Américas, mercado livre da vulgaridade, segundo os europeus, poderiam ser assim representadas por
uma figura que inexplicavelmente falta em minha edição do "Liber Monstrorum" de Ambroise Paré: o casamento de Donald Trump com Vera Loyola.
Como a "Vênus" de Botticelli, o casal Loyola-Trump
sairia das águas no horizonte ocidental do Atlântico:
triunfo do conspícuo como destino da modernidade,
símbolo de uma época na qual "Fortune", "Caras" e
"People" enfim substituem os poeirentos repertórios da
nobreza. Essa imagem não é símbolo só das Américas,
mas do mundo, Europa incluída.
Nesse mundo que nos espreita, o juízo de vulgaridade
aos poucos desaparecerá, na progressiva aceitação do
sucesso da riqueza e da elegância ostentadas em assegurar um lugar social. Talvez reste apenas a necessária dissonância dos estilos marginais dos artistas, tipo Basquiat de gravata e pés descalços numa página de "Vogue".
Olho para esse mundo sem muita simpatia. Mas tendo a pensar que essa ostentação invasiva de riquezas e
elegâncias é a regra da modernidade -até que inventemos outras divisões sociais, torcendo para que não sejam piores. Essa é, em suma, a vulgaridade banal.
Cordialidade e vulgaridade
Ora, nesse mar de
vulgaridade, o Brasil está em destaque. Viajo muito, demais. De novo, é nos aeroportos que me aparece hoje
uma vulgaridade brasileira diferente. Não é a vulgaridade dos sacoleiros de Miami falando alto. Ainda menos a
do povo que serve, cuida e atende. É algo que brilha e se
destaca nas salas VIP. É uma vulgaridade especial, de
elite.
Para entender por que ela seria bem nacional, voltemos a nossos recém-casados.
Donald Trump provavelmente não será candidato à
Presidência dos EUA por ser proverbialmente fóbico.
Como ele mesmo relatou várias vezes, não gosta de
apertar mãos que nunca se sabe onde estiveram pouco
antes. Impossível levar adiante uma campanha eleitoral
nessas condições: a política ainda mantém a ficção arcaica de uma relação humana, fraterna, entre votantes e
eleito.
De fato, as relações sociais americanas são abstratas, jurídicas e mediadas pelo dinheiro como equivalente geral. Trump, com sua fobia, é perfeitamente adequado ao mundo de hoje. A política eleitoral é que se
encontra atrasada.
Comparada a Trump, Vera Loyola deve ser uma pessoa cordial, pois os brasileiros são cordiais. Por isso, talvez o casamento não desse certo.
Trump é ostentatório e fóbico. Ou seja, ele se afirma,
ostentando, neste mundo moderno, povoado por pessoas abstratas (que, portanto, não precisa tocar) e no
qual a mobilidade social é o princípio. Ele é banalmente
vulgar.
A elite brasileira também é ostentatória, mas em um
mundo que não é bem moderno, em que os direitos
abstratos não são garantidos e no qual a mobilidade social não é a regra. Ou seja, em um mundo cordial.
Já se pensou, como lembrava Sérgio Buarque de Holanda, que a cordialidade fosse a contribuição brasileira
à civilização. Mesmo sem chegar a tanto, a cordialidade
é um charme nacional bem conhecido.
Cuidado: ainda valem todas as precauções que Sérgio
Buarque tomava ao introduzir o feliz adjetivo: cordial
aqui não significa gentil, bem-humorado ou disposto
-e ainda menos polido.
Significa uma maneira de se
relacionar que se opõe e eventualmente desmente as relações abstratas próprias ao mundo moderno. Ou seja,
que contrasta com um mundo que, desde o fim do século 18, quer que, acima dos corpos e dos afetos "do coração", estejam o sujeito de direito e a equivalência de trabalho e dinheiro.
No Brasil, somos cordiais, lemos e praticamos os vínculos jurídicos como laços afetivos. Seguimos confundindo subordinação com submissão e, contra qualquer
sistema abstrato de trocas e obrigações, preferimos a
concretude complexa dos favores.
Ora, essa cordialidade -consolação da vida cotidiana brasileira- é solidária a uma vulgaridade das elites
que bate no olho.
À primeira vista, a vulgaridade brasileira de hoje parece simplesmente participar da vulgaridade global do
mundo moderno. Mas, neste país, a ostentação de riqueza e elegância tem um caráter de vulgaridade especial.
A peculiaridade aqui é o excesso de distância social
-o qual, por sua vez, é efeito de uma falsa modernização que não endossa a mobilidade social. É misterioso
para mim que a ostentação do consumo, banal nos
EUA ou na Europa, não se torne no Brasil fonte de vergonha.
As elites competem aos olhos de uma massa que está a
uma distância estratosférica da riqueza que elas ostentam. Ora, no mundo moderno, a divisão social pela ostentação de riqueza e elegância serve para produzir uma
mobilização produtiva da sociedade a partir de uma inveja generalizada. Esse plano pressupõe uma rápida expansão das classes médias, para que todos (ou quase)
possam invejar com alguma chance.
Ostentando, te esmago
Acontece que aqui as diferenças sociais ficam além do limite da esperança. Ou
seja, para a maioria da população não há condição nem
de sonhar com o acesso aos bens que são corriqueiros
para as elites. Poder sonhar, aliás, é já fazer parte das elites, como manifesta o fato surpreendente de que, no
Brasil, ter um cartão de crédito dê acesso à sala VIP.
Nessas condições, configura-se aqui algo bem diferente
do que uma simples variante quantitativa do caso americano ou europeu. Pois uma distância econômica à
prova de sonho é de fato uma diferença qualitativa que
prolonga um tipo arcaico de divisão social fundada em
critérios objetivos, de nobreza ou de casta.
O Brasil não é uma sociedade de alta mobilidade social motivada pela inveja, na qual, portanto, a diferença
social poderia ser organizada pela ostentação.
Desse quadro moderno, as elites só gostaram e adotaram a ostentação, que, por consequência, deixa de ser
uma forma de divisão social e de incentivo econômico e
se torna uma forma direta de domínio.
,P>A ostentação no Brasil é a imposição de um privilégio.
Nós não nos diferenciamos comparando o que ostentamos. Aqui vale: "Ostentando, te esmago". Também a
ostentação brasileira não é uma competição entre elites
modernas que aconteceria por acidente sob os olhos de
um povo miserável e arcaico, excluído do torneio.
Se assim fosse, haveria embaraço e modéstia, pois a
ostentação moderna se inibe fora do contexto de uma
mobilidade social generalizada. Se a festa continua, é
porque as elites gozam dela: a ostentação se dirige primordialmente ao povo, que não tem nenhuma condição de competir. Assim, elegância e riqueza conspícuas
são, nestes trópicos, verdadeiras idéias fora do lugar, segundo a expressão consagrada de Roberto Schwarz.
Graças a elas, aparentando se integrar na modernidade, as elites nacionais de fato transformam um princípio moderno de divisão social em um instrumento arcaico de domínio. Elas inventam assim uma forma original de vulgaridade, bem acima da vulgaridade banal: a
ostentação sem modernidade.
Tudo isso foi exemplificado recentemente na festa
que Vera Loyola organizou para o aniversário de sua cadela Pepezinha. Adoro cachorros e, embora não me
lembre de ter alguma vez celebrado o aniversário de
meus fidos, posso até me imaginar oferecendo no dia
certo um filé malpassado para meu amigo canino. Mas,
nesse caso, a celebração foi tornada pública pelo convite
feito à imprensa escrita e televisiva. A ostentação não
era feita para estimular inveja e impressionar os vizinhos na pirâmide social. A mensagem era endereçada
ao povo. O propósito só podia ser consternar.
A voz do dono
Alguém, na massa de espectadores,
ouviu e reagiu -poder-se-ia dizer- adequadamente:
uma semana depois, Paulo César dos Santos assaltou
um banco, tomou reféns e, no decorrer das negociações, explicou o motivo de seu gesto. Parecia intolerável, disse, que alguém fizesse festa de aniversário e desse
presente para cachorro quando ele não tinha nem sequer como alimentar satisfatoriamente o seu filho. Em
suma, sentia-se tratado pior do que cachorro, com toda
a razão.
Só que, assim dizendo, pedia para ele mesmo e para os
seus o tratamento que a emergente reserva a sua cadela.
Tratamento ótimo, com efeito, mas incluindo entre os
presentes de aniversário não sei bem se uma coleirinha
ou só um pingente de ouro para a mesma.
De qualquer forma, não se escapa da coleirinha. Entenda quem quiser a declaração de cordialidade: aqueles que fazem parte da família -cachorros ou servos-
comem biscoitos. E, para integrar a família, nada de relações abstratas de trabalho ou coisas que o valham: só
precisa ficar de coleira, mas esta será levinha e dourada.
Quem está lá fora, no frio, não pertence ao campo que a
cordialidade delimita.
Ora, a Paulo César só sobra reclamar para voltar a integrar o espaço no qual a cordialidade do dono se exerce
-querer o lugar de Pepezinha. Pois, fora desse espaço,
a modernidade no Brasil não oferece nenhum de seus
outros mais confortáveis presentes, só a ostentação (fora do lugar).
Paulo César também é cordial. De novo: não é gentil,
nada disso, mas cordial. Ele não se contenta em roubar
o necessário para sustentar a si e a sua família, não se
contenta com uma transação abstrata, ele acaba -embora, ao que parece, sem premeditação- tomando reféns. Em suma, ele lida com o corpo de suas vítimas.
Entre a emergente e o excluído, a ostentação produziu
o contrário de uma relação abstrata: um "cordial" corpo-a-corpo, com um cachorro interposto. Vera, ostentando, coloca coleirinha, e Paulo César toma reféns.
Explica-se assim um dos traços enigmáticos da criminalidade brasileira: seu excesso de violência, que parece
desnecessário ao simples furto -inútil, se o propósito
fosse só a transferência de fundos. De fato, o crime brasileiro é cordial: ele não guarda as distâncias, prefere
passar pelo corpo. Nada do anonimato de furtar carro
estacionado: o negócio é olho no olho. Corpo a corpo.
Cordialmente, um e outro seguem se respondendo
-um com "ostentando eu te esmago", e outro com "eu
te mato quando posso". As classes trancadas e intransitivas perpetuam assim um jogo regido por gozos antigos.
Se não há vergonha em ostentar, é porque há gozo em
consternar. Se há mais violência do que a necessária para roubar, é porque há gozo em violentar corpos.
Fábrica de eufemismos
Em nossos trópicos, a ostentação de riqueza e elegância, separada de sua função
social moderna, se torna assim mais do que vulgar: obscena. Em vez de abrir e alimentar a mobilidade social,
ela cristaliza as distâncias.
A cordialidade é a expressão e o pano de fundo do
universo social do favor, em que dependências, exclusões e inclusões são vividas ao ritmo do coração. Ela é,
portanto, a alma de um sistema de diferenças sociais
qualitativas, quase de casta, longe da garantia de mobilidade oferecida pelo caráter abstrato da sociedade moderna. Em outras palavras, "se tenho direitos porque estou no teu coração, nossa relação é cordial, mas minha
dependência é sem salvação e minha mobilidade está
em tuas mãos".
Contudo, a cordialidade é também a invenção de uma
maneira gostosa de viver e se relacionar. É uma espécie
de generosidade do coração que, no leque inteiro das
paixões, permite reconhecer no outro um ser concreto,
por mais que ele esteja distante de nós.
Agora, quando a elite se moderniza e começa a dominar, esmagando pela ostentação, a significação dessa
cordialidade gostosa desaparece -pois, de fato, ninguém mais está no coração dessa elite. Ela é arcaica demais para reconhecer que suas vítimas são sujeitos de
direito e moderna demais para proteger e favorecer
(prefere ostentar).
Sua aparente cordialidade gostosa é, assim, vazia:
uma fábrica de eufemismos coletivos que ocultam a
violência da divisão social e nos induzem a crer na existência de uma grande família nacional.
Somos todos "amigões" ("amigão, cuida do carro para a gente"), todos "irmãos" ("corta este coco para nós,
irmão") e "tios" para todas as crianças, sobretudo se forem de rua. Se a miscigenação não tivesse acontecido,
teríamos que inventá-la para poder seguir acreditando
que somos todos herdeiros de uma suruba inicial e,
portanto, todos parentes próximos.
A familiaridade é hoje uma mentira, uma máscara ou,
como já observou Teresa Sales, um fetiche, ou seja, a ilusão de uma unidade que oculta nossa divisão inconciliável. O amigão pobre está muito longe do rico que solicita sua ajuda. O irmão
não faz parte da família.
Essa charmosa amabilidade serve para impor um
regime de dependência.
Os doces apelativos "amigo" e "irmão" cooptam seus destinatários. Eles dizem:
"Você não é trabalhador assalariado coisa nenhuma,
em meu coração você é muito mais: é família, ou seja,
fâmulo".
A cordialidade das elites aparece assim como uma sedução exercida a partir de um poder irresistível: uma
espécie de "social harassement" (assédio social). "Como recusar ser amigo e irmão do patrão?" é apenas uma
outra versão de "como recusar encontrá-lo à noite na
senzala?".
É uma cordialidade feita de pura melifluidade e prepotência, pois é separada de sua significação social: o
carinho não promete proteção nenhuma, o fâmulo vai
ser posto na rua como um empregado moderno.
Restos da cordialidade
A vulgaridade de nossas
elites hoje é dupla. E duplamente sucessora da cordialidade perdida. Por procurar os prazeres da ostentação
sem abolir as diferenças qualitativas do mundo cordial,
nossas elites exaltam a vulgaridade moderna. Desprovida de função social, a ostentação só vale pelo prazer de
esmagar que ela proporciona.
A sociedade é mantida em uma impiedosa divisão.
Mas as elites que mantêm esse arcaísmo se querem modernas. Portanto elas também recusam o compromisso
com seus sujeitos -que o regime do favor implicava e
pedia. Foi-se a proteção pessoal arcaica, mas não por isso vem uma sociedade moderna.
O papo cordial e paternalista mente ao sugerir que
ainda valeriam os compromissos afetivos do passado. O
que sobra dessa cordialidade das elites torna-se intoleravelmente vulgar por ser uma descarada gozação.
Está difícil ser elite no Brasil sem ser vulgar. E, quanto
mais aparentemente cordial (dessa cordialidade falsa e
esmagadora), tanto mais vulgar.
E o povo? Será que ele ainda é cordial?
Para os Paulo César, a cordialidade se transformou
em violência. Como se nesta sociedade só fosse possível
reconhecer a presença concreta dos outros à ponta de
faca. Aqueles que não tomam o caminho de Paulo César
estão preservando como
podem o que sobrou desse patrimônio nacional.
Tomara que aguentem e
que inventem um jeito de
seguir cordiais, hoje e no
dia em que o Brasil for mesmo empurrado para a modernidade.
Tomara. Pois, sem eles, dá mesmo para constatar que
o homem cordial se foi e chegou a hora do homem
vulgar.
Contardo Calligaris é psicanalista e ensaísta, autor de "Hello Brasil" (Escuta) e "Crônicas do Individualismo Cotidiano" (Ática).