A concepção liberal da cidadania: contribuições e limites
- Propostas para uma nova cidadania –
Prof. Laerte Moreira dos Santos
Introdução
Nunca se falou tanto em cidadania como nos tempos de hoje. Isto acontece em todo o mundo contemporâneo e o Brasil não é exceção. Todos falam em cidadania desde aqueles que no espectro ideológico se situam á direita, como aqueles que se situam à esquerda. E geralmente o termo cidadania vem acompanhado de adjetivações como por exemplo: cidadania crítica, cidadania consciente, cidadania participativa, etc..
Apesar das diferentes definições do que seja cidadania o seu caráter público, originário da sociedade grega antiga, ainda permanece. Só podemos ser cidadãos em sociedade.
Esta vivência em sociedade não será possível sem deveres, é verdade. Mas também não será possível sem os chamados direitos que tentam dar o equilíbrio necessário entre os interesses individuais e o interesse público.
Por isso ao longo da história a cidadania vem se afirmando e se consolidando com a conquista de direitos. E isto de tal forma, que não podemos desvincular os chamados direitos sejam os políticos, sejam os econômicos e sociais de sua definição, da sua vivência.
Contudo, é oportuno observar que nas décadas de 60 e 70 este termo não tinha a importância que tem hoje. Nesta época cidadania tinha uma concepção pejorativa. Entre setores da esquerda política, principalmente, este tema estava vinculado ao engodo, à ideologia burguesa. Por isso não lutavam pela cidadania mas pela revolução socialista, pelas mudanças estruturais profundas.
Tal postura estava de acordo com as críticas de Karl Marx à cidadania moderna burguesa. Ele as explicitou nos anos quarenta do século XIX no seu estudo sobre as estruturas das Revoluções Americana a Francesa, fonte da cidadania moderna. Ele sintetiza as suas objeções neste trecho de um de seus escritos: "à sua maneira, o Estado anula as diferenças baseadas no nascimento, na posição social, na educação e na profissão, quando declara que o nascimento, a posição e social, a educação e a profissão não diferenciações não-pollticas, quando proclama que todos os membros da população são participantes iguais na soberania popular independentemente destas diferenciações quando trata do ponto de vista do Estado todos os elementos que compõem a vida autêntica das pessoas. Todavia, o Estado permite. que a propriedade: privada, a educação e a profissão atuem e afirmem a sua natureza particular a sua própria maneira, isto é, como propriedade privada, educação e profissão. Longe de abolir estas diferenciações fatuais, o Estado conta com elas para poder existir". (A questão judaica – Karl Marx / citado em "A Cidadania", J. M. Barbelet). (grifo meu)
Em outras palavras, apesar de Marx considerar a cidadania moderna como um grande passo em frente, ele acha que a mera emancipação política através da cidadania é insuficiente. Defende uma emancipação humana geral em que as pessoas ficam livres do poder determinante da propriedade privada e de todas as instituições que tem ligação com ela.
Segundo ele, os limites da cidadania burguesa só podem ser superados através de uma revolução social em que a base das desigualdades sociais, que é a estrutura de classes, seja destruída.
Mas o exercício concreto da cidadania em vários países do mundo foi quebrando resistências. Não ficou vinculado apenas aos chamados direitos políticos mas à efetivação de outros direitos como os econômicos e sociais que possibilitaram as condições necessárias para atenuar a desigualdade social nas sociedades capitalistas ocidentais. Os direitos políticos, com certeza, foram imprescindíveis para a conquista destes outros direitos.
Contribuiu também para resgatar o tema cidadania a crise do socialismo visualizado principalmente com o fim do socialismo real nos países do Leste europeu.
A sociedade proposta pelo socialismo que implicava em um grande desenvolvimento econômico (maior inclusive do que no capitalismo), com grande participação política por parte do povo, expressando uma democracia plena, não aconteceu. Quando ruiu o socialismo nestes países ficou mais do que nunca evidenciada a realidade: estagnação econômica, a existência de uma burocracia estatal que centralizando tudo em suas mãos exerceu uma verdadeira ditadura sobre os membros da sociedade. A cidadania, tão criticada pelo seu caráter supostamente burguês, se fosse exercida nestes países, da forma que foi nos países capitalistas, seria algo revolucionário.
Assim o termo cidadania ressurgiu com toda pujança na sociedade ocidental. Na prática política, mais do que nunca, exige-se o exercício da cidadania. Exigem-se mudanças, direitos, fazem-se críticas, tudo isto em nome da cidadania. De modo especial nos países do terceiro mundo o tema cidadania é colocado quando se reivindica os chamados direitos econômicos e sociais.
No Brasil o tema cidadania adquiriu um novo vigor a partir de 1988 com a elaboração de uma nova Constituição na qual se inclui uma nova relação de direitos e deveres dos cidadãos.
E toda esta conquista foi efetivada nos marcos do capitalismo, da ideologia liberal.
É claro que as lutas operárias e socialistas foram imprescindíveis na conquista de direitos, principalmente os econômicos e sociais, ajudando na consolidação da cidadania, mas não podemos negar que a ideologia liberal com a sua luta pelos direitos políticos e pelos direitos do indivíduo como a liberdade, colaborou muito para tal influenciando profundamente na vivência das pessoas enquanto cidadãs.
Por isso não podemos falar em cidadania sem levar em conta a influência das idéias liberais sobre ela.
E o propósito deste trabalho é justamente este. Se em um primeiro momento devemos reconhecer as contribuições positivas do liberalismo clássico para a efetivação da cidadania em um segundo momento queremos evidenciar os limites dessas propondo uma superação.
- A cidadania restrita de John Locke -
Nos primórdios da ideologia liberal a cidadania era atribuída a um número pequeno de pessoas.
Vamos encontrar em John Locke(1632-1714) a concepção de cidadania restrita. Esta concepção se fundamenta no postulado lockeano: os homens são livres e iguais porque são proprietários de seus corpos.
Porém John Locke vai aprofundar este postulado vinculando-o com a cidadania. Aos poucos vai se delineando nos seus escritos que a propriedade não é exatamente o corpo, mas o fruto que o corpo produz pelo trabalho ao se apropriar da natureza. Paulatinamente vai chegando à conclusão de que somente os que possuem propriedade privada são cidadãos: "Locke é bem claro em igualar escravos, mulheres, crianças e doentes mentais no rol dos excluídos, com o argumento de que só podem gozar dos mesmos direitos e deveres aqueles que tem condições de garantir seu próprio sustento e o de seus dependentes." (Cidadania – uma questão para a educação, Nilda Teves Ferreira, pág. 86).
Locke vai aos poucos "esvaziando a possibilidade de sua afirmação inicial de que todos tem uma propriedade no próprio corpo" (op. cit. pag. 426).
Vai também vincular a propriedade privada ao fato de se trabalhar ou não trabalhar. Cada indivíduo só não trabalha se não quiser e só não enriquece, só não adquire propriedade, se for incompetente e preguiçoso. Nesta perspectiva, a divisão da sociedade confere aos pobres determinados atributos - preguiça, indolência, degeneração, imprevidência - com sérias implicações psicossociais. Não se deve ter complacência com eles, para não alimentar seus vícios. Naturaliza-se, assim, a condição social dos indivíduos e isso vem associado a um processo de estigmatização. O êxito econômico é visto como reflexo de virtude; o fracasso, como signo de infâmia. O que Locke e seus seguidores não enfatizam é que a divisão social do trabalho e o processo de acumulação da riqueza estão na base destas desigualdades." (Cidadania - uma questão para a educação, pág. 84).
Torna-se evidente, pois, com estas afirmações, o caráter restrito da cidadania nos primórdios da ideologia liberal. Apenas alguns eram cidadãos.
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Mas apesar disto pecaríamos contra a verdade se não reconhecessemos a contribuição positiva do liberalismo para a cidadania. É o que mostraremos a seguir fundamentando nossas afirmações principalmente em escritos de Norberto Bobbio.
Antes de fazer referências aos limites da concepção liberal da cidadania devemos reconhecer que a ideologia liberal deu a base para uma cidadania mais plena.
Mesmo um conservador como John Locke afirma que a relação entre governados e governantes não pode ser permeada pelo paternalismo. Os governados não são súditos mas cidadãos, ou seja, conscientes de sua liberdade, conscientes do caráter representativo do governo. E que, portanto, nunca aceitarão uma relação que pode ser própria da família e não da sociedade política.
Apesar de parecer um paradoxo , foi a afirmação do indivíduo, e até diríamos nós, do individualismo, que criou a base para o reconhecimento dos direitos do homem. "A inversão da figura deôntica originária do dever para o direito dos homens representa o triunfo do individualismo na sua acepção mais ampla, ou seja, todas as tendências éticas, metodológicas e ontológicas, que vêem no indivíduo o dado fundamental da realidade." (Ensaios Liberais – Celso Lafer, pág. 36).
"O individualismo é a base filosófica da democracia: uma cabeça, um voto." (A Era dos Direitos - N. Bobbio, pág. 61). O individualismo em sua relação com o Estado favoreceu o surgimento de doutrinas, de práticas que exigiam participação no poder. Favorece também o surgimento do Estado de direito onde ocorre a passagem "do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista dos cidadãos" .(Op. cit. pág. 61).
"No Estado despótico, os indivíduos singulares só tem deveres e não direitos. No Estado absoluto, os indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o indivíduo tem, em face do Estado, não só direitos privados, mas também direitos públicos. O Estado de direito é o Estado dos cidadãos". (op. cit., pág. 61).
A luta do liberalismo pelos chamados direitos de liberdades, apesar de estar ligada a um contexto histórico específico, onde havia uma disputa por hegemonia entre a burguesia e a nobreza, foi o que impulsionou diversas lutas que ajudaram a ampliar o conceito de cidadania.
A expressão maior dessas contribuições positivas do liberalismo foi com certeza a Carta de direitos da Organização das Nações Unidas, confeccionada em 1948, que completa 50 anos neste ano de 1998. Esta carta, todos sabemos, se inspirou nas Cartas de direitos dos Estados Unidos de 1776 e da Revolução Francesa (1798).
Os filósofos, que podemos chamar de liberais progressistas (para os diferenciar dos liberais conservadores como John Locke) também deram uma valiosa contribuição no nível das idéias.
Entre outros poderíamos citar: John Stuart Mill, Tocqueville, Benjamin Constant, etc..
A título de exemplificação vamos lembrar aqui as idéias principais de um destes pensadores considerados liberais progressistas: Stuart Mill.
Stuart Mill, como os demais pensadores liberais progressistas defende a liberdade econômica e a propriedade privada, mas afirma o postulado da igualdade dos pontos de partida. Isto significa que, apesar de Mill reconhecer o mérito e o esforço próprio na ascensão econômica e social das pessoas, isto seria impossível sem determinadas condições. Todos deveriam ganhar por exemplo um salário decente, ter uma boa escola, etc..
É também um grande crítico do direito à herança. Preocupa-se com o ajustamento adequado entre a independência individual e o controle social. "Com efeito para Stuart Mill a distribuição do poder ensejado por esse processo de democratização não seria, por si só, suficiente para impedir a tirania social da maioria, que pode ser também altamente opressora. (Ensaios Liberais, pág. 68). Por isso, para evitar esta opressão, ele vai se bater no campo das idéias pela garantia de um espaço que permita a liberdade de consciência, de expressão, de gosto e de associação.
Para Mill a individualidade é um fim e não um meio, pois segundo ele, o que caracteriza a natureza do homem "não é a uniformidade, mas a criatividade do diverso".
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Acredito que estas considerações e citações são suficientes para destacar as contribuições positivas do liberalismo dentro de um processo histórico caracterizado por mudanças sociais e mudanças nas idéias.
Mas não podemos concluir este item sem retomar uma idéia anterior que não foi suficientemente desenvolvida. Queremos lembrar que as lutas operárias e socialistas, em todas as nações capitalistas, foram fundamentais e imprescindíveis para a ampliação e fortalecimento da cidadania. A própria experiência socialista, em que pese os seus desvios, na medida em que representou uma ameaça para os governos dos países capitalistas, os obrigou como forma de defesa, à concessão de mais e mais direitos incluindo os econômicos e sociais como previdência, habitação, etc..
O momento em que estamos vivendo confirma a verdade desta nossa última afirmação. Hoje as idéias socialistas estão em descenso, a experiência socialista fracassou.
E o que constatamos? Se é verdade que os chamados direitos políticos e individuais se mantém pelo menos na maior parte dos países ocidentais, o mesmo não podemos dizer a respeito dos chamados direitos econômicos e sociais. Hoje o capitalismo se sente plenamente à vontade para eliminar muitos destes direitos penosamente conquistados pelos trabalhadores desde o início do capitalismo. Sem a ameaça do comunismo e do socialismo, o capitalismo perdeu o medo e se julga agora senhor absoluto para colocar o interesse do capital acima dos direitos principalmente dos econômicos e sociais. A chamada flexibilização das relações de trabalho, que acontece inclusive no Brasil, é um sintoma visível desses novos tempos de domínio do capital.
3. Limites da concepção liberal de cidadania
3.1 A "essencialização" da cidadania
Reconhecemos no item anterior as contribuições positivas do liberalismo no que toca à cidadania. Contudo, a concepção liberal de cidadania tem os seus limites mesmo considerando o liberalismo na sua evolução histórica.
Esta concepção se limita a conquistas legais, ao acesso a direitos definidos de antemão, à concretização de direitos formais e abstratos. Ao que poderíamos chamar de "essencialização" da cidadania,
Norberto Bobbio é um dos pensadores políticos que nos ajudam a dessencializar a cidadania. Bobbio afirma em seus escritos que os direitos do homem são direitos históricos por mais fundamentais que sejam. "São direitos históricos porque nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas. O problema - sobre o qual, ao que parece, os filósofos são convocados a dar seu parecer – do fundamento, até mesmo do fundamento irresistível, inquestionável, dos direitos do homem é um problema mal formulado: a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais, do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice, todas elas carecimentos que os ricos proprietários podiam satisfazer por si mesmos." (A Era dos direitos – Norberto Bobbio, pág. 5 e 6).
"O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.. "(op. Cit. Pág. 18) (grifos meus).
A "essencialização" da cidadania feita pelo liberalismo elimina justamente a prática existencial dos homens. Se queremos uma superação da concepção liberal devemos redefinir a idéia de direitos. Esta redefinição será pelo "ângulo da dinâmica societária". "Pois, pelo ângulo da dinâmica societária, os direitos dizem respeito antes de mais nada ao modo como as relações sociais se estruturam. {Sociedade civil e a construção de espaços públicos- in "Anos 90 - política e sociedade no Brasil", Evelina Dagnino (org.)} Em outras palavras devemos enxergar os direitos como princípios reguladores da vida social e que possibilitem negociação e interlocução.
Esta nova visão já está sendo praticada. Isto vem gerando muitos conflitos. Mas a experiência de exercício da cidadania em meio a esta situação conflituosa "vem produzindo uma legalidade emergente a partir de formas negociadas de arbitragem dos interesses em confronto, nas quis se processa, ali onde antes havia o jogo bruto da força, uma jurisprudência informal que opera com critérios de justiça substantiva, reinterpreta princípios de lei e cria novos direitos".(Sociedade Civil e os Caminhos incertos da cidadania , in "Sociedade Civil -. estado e democracia", Revista da Fundação Seade, pág. 9, artigo de Vera Telles)
Em outras palavras está em prática uma "existencialização" dos direitos. Esta aponta para aquilo já colocado por Hanna Arendt e por Claude Lefort: "o direito a ter direitos".
Isto significa a invenção, a criação de novos direitos que surjam de uma prática existencial concreta.
Se os direitos surgiram em variados contextos históricos, em meio às luas dos excluídos, em meio ´s disputas ideológicas, no nosso contexto histórico-social poderemos conquistar outros direitos como o "direito á proteção ambiental", "direito á diferença", etc..
Esta historicidade dos direitos fica bastante evidente quando contrapomos o direito á igualdade ao direito á diferença. O liberalismo por causa de seu formalismo destacou apenas o direito à igualdade significando principalmente igualdade perante as leis mas também a efetivação de direitos sociais que diminuam a desigualdade social. Mas a experiência concreta dos homens em um mundo tão complexo e tão diversificado como o nosso nos leva a lutar também pelo direito á diferença.
3.2 A concepção liberal da cidadania e o papel do Estado
A concepção liberal da cidadania estava vinculada a uma estratégia das classes dominantes e do Estado para incorporar progressivamente na política os excluídos. Sabemos o quanto esta estratégia estava vinculada ao interesse de solidificação do capitalismo evitando as crises sociais.
Sabemos também que historicamente esta estratégia levou ao chamado "Estado do Bem Estar Social"(Welfare State) que se efetivou em países do primeiro mundo como França, Inglaterra etc.. E a constituição do "Welfare State" significou um rompimento com uma das idéias básicas do liberalismo clássico e que ressurge hoje com o chamado neoliberalismo: a idéia do Estado Mínimo. A primazia do mercado, tão apregoada pelo liberalismo clássico, reforçou as desigualdades na sociedade e obrigou com o tempo o Estado a intervir com as chamadas políticas sociais para atenuar os conflitos. E isto porque o movimento econômico da modernidade converteu tudo em mercadoria. Este eliminou gradatívamente ou violentamente as formas sociais não-mercantis e tornou o cidadão um mero objeto de troca. Foi esta liberdade total do mercado que se sobrepôs ao político, ao social, que reforçou as desigualdades sociais e obrigou o Estado a intervir. O Estado entrou em cena com o papel de regulador. Desenvolveu, pois, toda uma organização administrativa e jurídica para dar conta desta regulação. Toda uma legislação social surgida neste contexto tentará evitar uma. decomposição do tecido social. Mas esta intervenção, sabemos nós, não foi resultado apenas da vontade do Estado. Foi reivindicada principalmente pelos excluídos no contexto de uma luta social. Isto foi motivado pela exigência de uma maior participação política por parte dos excluídos.
Porém a exigência de maior participação política pode se concretizar através de uma efetiva liberdade política ou cair em reivindicações sociais e econômicas que reforçam um poder enorme do Estado sobre a Sociedade Civil.
A experiência do "Welfare State", nos mostra que a segunda alternativa é que foi a mais comum. Surgiu assim uma forma estatal de organização do espaço público que, devido a necessidade de regulação dos conflitos sociais e do bem comum, foi impedindo cada vez mais a participação de cada cidadão nos assuntos coletivos. Criou-se uma sociedade marcada pela idéia do bem estar material garantido pelo Estado. O resultado disso foi uma passividade política muito grande que não se importa com a ação de um Estado poderoso que controla a vida de cada um. "Uma sociabilidade regida apenas pela preocupação do bem-estar desune os homens, isolando-os uns dos outros e fazendo com que percam a noção do que é comum. Neste sentido, só a liberdade é capaz, uma vez que se torne o princípio reitor da atividade política, de impedir a sociedade de escorregar neste terreno íngreme podendo conduzi-la à tirania. .Em vez de desunir os indivíduos, a liberdade os une, em vez de distanciá-los, ela os aproxima". (O que é democracia, Denis L. Rosenfield, pág. 38 e 39).
Mas aqui cabe também uma superação. Esta superação vai se realizar em duas frentes. A nova cidadania tem que incluir uma relação com a sociedade civil e uma relação da sociedade civil com o Estado tendo em conta a questão da democratização do poder.
A relação com a sociedade civil implica a construção de uma cultura democrática. Numa sociedade autoritária como a do Brasil democratizar significa romper com relações culturais autoritárias.
Há um autoritarismo social enraizado na nossa cultura que se expressa "num sistema de classificações que estabelece diferentes categorias de pessoas, dispostas nos seus respectivos lugares na sociedade. Essa noção de lugares sociais constitui um código restrito que pervade a casa e a rua, a sociedade e o Estado. É visível no nosso cotidiano até fisicamente: é o elevador de serviço, a cozinha que é o lugar de mulher, cada macaco no seu galho, etc..
Esse autoritarismo social engendra formas de sociabilidade e uma cultura autoritária de exclusão que subjaz ao conjunto das práticas sociais em todos os seus níveis"( Uma nova noção de cidadania - Evelina Dagnino, in "Anos 90, política e sociedade no Brasil", pág. 104 e 105).
Quanto à uma nova relação com o Estado, a concepção liberal da cidadania entendia a relação com o Estado apenas como reivindicação de acesso, de inclusão ao sistema político.
A questão é que este sistema, já está definido. A base desta definição está na idéia da representatividade. O voto garantiria aos vários grupos sociais escolherem os seus representantes que garantiriam os direitos. Oras não é somente hoje que se critica os limites da representatividade política. É uma critica antiga. Numa sociedade complexa como a nossa, participar unicamente através do viés representativo é insuficiente para a constituição de uma cidadania plena. Temos que resgatar a cidadania como "forma de apropriação pública da coisa pública. O sentimento de ser ‘dono’ da coisa pública caracteriza a identidade entre o cidadão e a cidade ou entre o cidadão e a coisa pública. Essa relação de apropriação é a essência da cidadania e conforma os direitos de cidadania". (Planejamento e cidadania, Antonio Carlos Granado , in "Teoria e Debate" - revista trimestral do Partido dos Trabalhadores - São Paulo -junho/julho/agosto 1994 - pág. 19 e 20)(grifo meu)
Por isso a criação de práticas que apontem para uma democracia direta é fundamental na construção de uma nova cidadania. É claro que não se propõe eliminar a democracia representativa, e sim de acrescentar a ela práticas de democracia direta. Como diz o deputado federal pelo Partido dos Trabalhadores, Genoino Neto: a combinação de democracia direta com indireta "em vez de possibilitar um processo de estatização da sociedades ou de selvageria neoliberal, ‘civiliza’ o Estado, gerando um controle externo, capaz de limitar sua lógica corporativa ou seu atrelamento a interesses puramente privados." (Folha de S. Paulo, 22/03/95, Tendências e Debates).
Então esta nova cidadania tem que tornar visível no plano institucional não só a questão dos direitos, mas também e sobretudo, a questão dos poderes. Uma nova cidadania que implica o direito de definir aquilo no qual queremos ser incluídos.
Aqui no Brasil já temos exemplos destas práticas de participação no poder, de democracia direta. Na cidade de São Paulo, durante a administrarão de Luiza Erundina (PT), tivemos a experiência da participação popular na gestão das políticas públicas. Porém foi em Porto Alegre (Rio Grande do Sul) que esta participação mais avançou. Como em São Paulo a prefeitura tinha como governo pessoas pertencentes ao Partido dos Trabalhadores.
Vamos lembrar aqui como foi a experiência de participação popular na gestão pública em Porto Alegre. Nesta cidade foi criado um órgão: O "Forum do Orçamento Participativo", onde o povo porto-alegrense decide sobre a destino das verbas orçamentárias.
Porém há um percurso até chegar neste "Forum".
O processo começa com reuniões em 16 regiões da cidade que, nos seus Conselhos populares e Plenárias Regionais, decidem as prioridades de investimento da Prefeitura, que são então encaminhadas para o Forum, com representantes eleitos (1 para cada 10 presentes nas assembléias ou 1 para cada 20 presentes nas reuniões preparatórias nos bairros: em 1993 foram eleitos 700 delegados). Além disso, esses delegados se organizam em comissões que acompanham o trabalho das empreiteiras contratadas pela prefeitura, fiscalizando prazos,. qualidades e adequação das obras realizadas.
É importante. Destacar que quando se efetivou esta participação institucionalizada em Porto Alegre, na gestão de Olivio Dutra (também do Partido dos Trabalhadores), no ano de 1989, contava-se 250 entidades e com o número de 400 pessoas. Em 1993, houve um crescimento na participação política. Havia como participantes 650 entidades e cerca de 10.000 pessoas.
Outro bom exemplo de participação popular no poder, na gestão pública, vamos encontrar nas chamadas "câmaras setoriais" que funcionaram nos quatro primeiros anos da década de 90. Estas reuniam representantes do governo, dos trabalhadores e dos empresários e em comum acordo propunham uma redução de impostos, de preços, de permanência de empregos, com o objetivo de atenuar uma crise determinada.
Entre as diversas experiências de participação popular nas câmaras setoriais destacou-se a acontecida na Câmara Setorial da Indústria Automobilística em São Paulo.
Sabemos, é claro, da polêmica que envolveu esta experiência. Se determinadas avaliações, como a nossa, colocam tal experiência como uma ação bem sucedida na linha da democracia direta, outras avaliações conceberam as câmaras setoriais "como meros espaços de conluios corporativistas, onde capital e trabalho se juntam na defesa de interesses cartoriais, tais como rebaixamento de impostos, empregos e salários" (Lula, FHC e o futuro das câmaras setoriais, artigo de Vicente Paulo da silva, Jornal "Folha de são Paulo – 28/8/94).
Esta avaliação acabou se impondo com a vitória de Fernando Henrique Cardoso e as câmaras setoriais deixaram de existir.
Mas é importante resgatar o saldo positivo das câmaras setoriais para, quem sabe, em um futuro próximo, livres de governos neoliberais como este, podermos implementá-las novamente com uma maior qualidade e eficiência.
Leiamos a avaliação de Vicente Paulo da Silva no artigo citado: "São muitos os equívocos da colocação anterior (contra as câmaras setoriais).
A começar pela visão torta de que na câmara setorial o governo não pode interferir, atuar, mas apenas ceder. Vale lembrar que fontes do próprio Ministério da Fazenda divulgaram recentemente que houve aumento da receita tributária. A arrecadação total de impostos federais (IPI, Cofins e PIS/PASEP), após a segunda fase do acordo, cresceu 29,9%, conforme dados da Secretaria da Receita Federal. Houve, igualmente, crescimento em nível estadual: a média mensal de ICMS recolhido em todo o país no primeiro semestre deste ano (1994) cresceu 32,7% em relação a igual período de 1993. Também é falsa a preocupação com os consumidores, que aliás estiveram representados através de entidades como a associação dos consorciados. Queremos perguntar aos consumidores se o acordo foi ou não positivo, se eles desejam, como nós, ou não, que o preço dos carros caía mais".
Ao lado de experiência como estas temos propostas interessantes como as do deputado Genoino Neto e do prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, em artigo de jornal já citado. Eles propõem no caso de :empresas públicas e estatais a participação direta da Sociedade Civil através de Conselhos, onde estariam representados trabalhadores, empresários e instituições de caráter científico e profissionais autônomos. Teriam o poder de aprovar ou rejeitar o planejamento destas empresas. Teriam poder de veto contra políticas salariais corporativas que só protegem uma minoria que pertence à cúpula administrativa.
É claro que a efetivação de experiências que apontam para a democracia direta, para a democratização do poder, não se realizarão sem conflitos. Mas as experiências de Porto Alegre e da Câmara Setorial da Indústria Automobilística demonstram que é possível avançar na democracia dentro de relações conflituosas. Todas estas experiências nos mostram que para construir uma nova cidadania precisamos institucionalizar o confronto político sobre s decisões fundamentais no que tange à organização social.
Elas deixam explícito que não se trata de um pacto entre iguais. Nem a efetivação do mito da "vontade geral unificadora" que anularia os antagonismos.
"Trata-se, isso sim, de uma nova contratualidade construída em uma negociação que define a medida que baliza a relação conflitiva dos interesses, os ganhos relativos das partes, e o conjunto dos compromissos e responsabilidades, mutuamente acordados, nos usos dos recursos públicos dos quais dependem os resultados do pr6prio acordo. É nesse sentido que essa contratualidade também redefine as relações entre o público e o privado". (Sociedade civil e os caminhos (incertos) da cidadania, Vera Telles - pág.l2, in "Sociedade Civil- estado e Democracia" , Revista Perspectiva vol. 8, n.º 22 – abril/junho de 94 - Revista da Fundação SEADE).
Como seria esta redefinição? De acordo com Francisco de Oliveira "O público é uma socialização dos acordos privados mediados pelas categorias universais presentes na constituição societária, enquanto o privado se forma pela apropriação de riquezas públicas consentidas à condição de que se cumpram os resultados objetivados ("Quanto melhor, melhor: o acordo das montadoras" - Francisco de Oliveira - Revista Cebrap, n.º 36, ano 1993, pág. 3-8 ).
Então a nova cidadania vai ser realizada em espaços públicos nos quais as diferenças, os conflitos se expressam e se representam nas práticas da negociação.
Então, concluindo, precisamos ampliar as instâncias de participação das pessoas tanto na sociedade civil como no Estado.
Como diz Norberto Bobbio não é o "número de pessoas que tem o direito de votar" que reforçam a democracia mas sim "o número de instâncias (diversas daquelas políticas) nas quais se exerce o direito de voto" (O futuro da democracia, N. Bobbio, pág. 56).
Ainda Bobbio: "Para dar um juízo sobre o estado de democratização num dado país o critério não deve ser mais o de ‘quem vota’, mas o do ‘onde se vota’. (op. Cit. , pág. 56).
Somente assim estaremos incluindo definitivamente no conceito de cidadania a postura inventiva, criativa do homem e superando o caráter essencialista da concepção liberal de cidadania.
BIBLIOGRAFIA
*Laerte Moreira dos Santos – professor de Filosofia da Escola Técnica Federal de São Paulo.
OBSERVAÇÃO: Este trabalho na sua primeira versão foi confeccionado em 1995. Em dezembro de 1998 foi reformulado.