A cidade fortificada

TERESA CALDEIRA

(Jornal "Folha de São Paulo, 22/09/96)

São Paulo é hoje uma cidade de muros. Amedrontados pelo aumento do crime violento e descrentes da eficácia da polícia ou da Justiça, os moradores procuram se proteger o mais que podem. Erguem muros, reforçam as grades e fechaduras, compram armas, consomem as mais diversas tecnologias de segurança e contratam guardas privados. Também saem menos, mudam-se para condomínios fechados, trocam as compras e o lazer que lhes façam usar as ruas pelos shoppings e, se podem, abandonam os transportes coletivos para se mover apenas com seus carros. Para completar, tendem a apoiar medidas violentas para lidar com a criminalidade, como a pena de morte muitas vezes confundida com execução sumária pela polícia e a atacar os que defendem os direitos humanos.

Em suma, os resultados desses esforços de proteção podem ser resumidos da seguinte maneira: para fazer face à violência, os moradores de São Paulo se aprisionam, adotam soluções privadas de proteção e progressivamente abandonam a esfera pública. No entanto, tudo indica que esse tipo de reação alimenta o ciclo da violência, em vez de contrapor-se a ele. O que poderia ser efetivo para interromper esse ciclo é a retomada e o fortalecimento da esfera pública, algo que os cidadãos de São Paulo parecem resistir a entender.

Frente ao medo e ao aumento da criminalidade violenta, é inevitável que as pessoas tentem se proteger. O problema é que as soluções privadas e violentas em geral não apenas não são as mais eficazes, como também podem ter resultados contrários aos esperados.

O porte de armas é um exemplo claro nesse sentido. Em países em que existe tradição de autoproteção e a população civil vê o porte de armas como um direito, como é o caso dos EUA, a taxa de homicídios per capita tende a ser até 10 vezes mais elevada do que a de países em que o número de armas entre os cidadãos é baixíssimo, como no Japão e na Europa Ocidental.

Todos os dados evidenciam que o aumento da criminalidade violenta no Brasil está associado ao uso de armas de fogo. O número de armas registradas anualmente cresceu 510% na região metropolitana de São Paulo entre 1983 e 1991. Como todos sabem, esse aumento não reflete o número de armas junto à população, já que muitas delas são mantidas ilegalmente. Como resultado, a proporção de homicídios provocados por arma de fogo no Brasil, que era de 15% do total de homicídios em 1980, em 1990 já havia dobrado e passado para 30% do total. O ponto mais grave disso tudo é que muitas das vítimas são mortas por suas próprias armas!

Historicamente, quando se observa a evolução dos homicídios em países do Ocidente, duas coisas ficam absolutamente claras.

Primeiro, a taxa de mortes violentas declinou sistematicamente desde o início do século 19 até pelo menos o final dos anos 60 (na Europa, caiu do patamar de 80 homicídios por 100 mil habitantes para menos de 4 por 100 mil; nos EUA, caiu para em média 10 por 100 mil hoje no Brasil está ao redor de 20 por 100 mil, mas nos anos 70 esteve ao redor de 10 por 100 mil).

Segundo, esse declínio tem a ver com processos essencialmente não-violentos, como o fortalecimento do sistema judiciário, a difusão da educação pública, o controle das pulsões individuais, o fortalecimento dos direitos civis e do respeito pelos corpos dos outros, a expansão da cidadania e da democracia e a modernização do espaço público, o qual foi progressivamente aberto para a circulação de todos. Foram processos de fortalecimento da esfera pública democrática, da cidadania e do que se pode chamar de civilidade (que inclui a tolerância e o respeito pelo outro) em detrimento das pulsões e poderes privados que fizeram cair radicalmente a violência.

Violência não é remédio para a violência. Ao contrário, é o que a faz proliferar. Se o uso da força e das armas fizesse baixar a criminalidade violenta, São Paulo seria a cidade mais segura do mundo, já que em nenhum outro lugar a polícia mata mais do que aí (compara-se as quase 1.500 mortes pela polícia em 1992 com as 25 pela polícia de Los Angeles!).

Obviamente, não se faz face ao crime sem polícia. Mas a polícia que controla a violência é aquela que impõe a ordem, ao mesmo tempo em que respeita a lei e os cidadãos. É uma polícia bem treinada, bem paga, não-corrupta e não-violenta, que trabalha pela comunidade em vez de lhe causar medo. É o tipo de polícia que na Europa se fortaleceu junto com uma Justiça eficaz e igualitária, que dá aos cidadãos a noção de que não haverá impunidade.

No Brasil, é lugar comum que a polícia é mal treinada e mal equipada e que a Justiça não funciona. A questão é que as alternativas que vêm sendo oferecidas pela população polícia dura e violenta e privatização da segurança_ não ajudam a conter a violência nem a melhorar essas instituições.

A privatização da segurança não é uma alternativa à segurança pública deficiente e, portanto, também não é remédio para a violência. Ela pode oferecer aos que podem pagar por ela a ilusão de proteção, mas, se chega a tocar no quadro mais geral da criminalidade violenta, é para aguçar alguns de seus problemas.

Num país com o grau extremo de desigualdade social como o Brasil, a difusão da segurança privada tende a ser mais um sistema perverso de aprofundamento dessa desigualdade. A criminalidade violenta distribui-se iniquamente: os moradores dos bairros pobres são sabidamente as maiores vítimas da violência nas grandes cidades brasileiras, enquanto os mais ricos são os que vivem nos locais mais seguros. A ênfase na segurança privada em vez do fortalecimento da segurança pública potencialmente só pode aumentar essa desigualdade e agravar o quadro da criminalidade violenta.

O abandono do espaço público e a proliferação de espaços fortificados privados para uso coletivo também não resolvem a questão da violência, além de aprofundarem alguns de seus aspectos. Qualquer um que já tenha tentado entrar a pé num condomínio fechado ou que já tenha assistido ao humilhante ritual de revista a que empregados têm que se submeter diariamente nas suas portarias não terá dúvidas de que "medidas de segurança" são na verdade medidas de controle e exclusão social.

Aos que são barrados e ficam de fora dos espaços privilegiados, resta o espaço das ruas e dos transportes coletivos, percebidos como cada vez mais perigosos e desprestigiados. Mas é ilusão pensar que se pode construir uma sociedade segura apenas dentro dos muros de espaços protegidos. O que se consegue com esses muros é aprisionar as pessoas e segregar os mais pobres, mas não necessariamente maior segurança.

Cidades segregadas, cidades de guetos, são reconhecidamente as cidades mais violentas que se conhece. Os países que têm atualmente as taxas mais baixas de criminalidade violenta (os da Europa Ocidental e o Japão) têm não apenas uma fraca tendência de privatização da segurança, mas também um espaço público altamente valorizado e apropriado.

Os europeus e os japoneses de todas as classes sociais usam intensamente os transportes públicos e as ruas de suas cidades, misturando-se nelas nas mais variadas circunstâncias, de acordo com regras implícitas de polidez e respeito ao estranho (de fato, um co-cidadão), regras do que se pode chamar civismo. O espaço público usado intensamente tende a ser o espaço urbano mais seguro.

Não existe regra mágica que garanta o controle da violência. Democracia política, por exemplo, não é um remédio certeiro. Se assim o fosse, não haveria como explicar porque a criminalidade violenta nos EUA é tão mais alta do que na Europa. Além disso, seria difícil entender porque no Brasil a criminalidade violenta cresceu tanto depois da democratização. Mas se o estudo histórico comparativo serve para indicar alguma coisa, isto é que a ênfase no respeito aos co-cidadãos e o interesse na preservação da paz em um espaço público usado intensamente estão na raiz do controle da violência.

Não é o abandono da esfera pública, mas a sua apropriação pelos cidadãos de todas as classes sociais, que permite criar uma melhor qualidade de vida e controlar a violência. Não é a sofisticação das barreiras (físicas, sociais e simbólicas), mas a sua derrubada que permite criar um espaço social seguro e fazer frente ao medo. Faz muito mais sentido o movimento "Reage São Paulo" que, frente à violência, usa a praça pública para exigir paz e justiça, do que todas as vociferações pela pena de morte. Quando os cidadãos de todos os grupos sociais perceberem que têm que sair de trás dos muros, se apropriar do espaço público e como co-cidadãos organizar a segurança de todos, quem sabe o problema da violência comece a encontrar o seu encaminhamento.

Teresa Caldeira é professora de antropologia na Unicamp (Universidade de Campinas) e na Universidade da Califórnia, Irvine (EUA).

 

 

 

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