DENTRO E ENTRE TRIBOS

DENTRO E ENTRE TRIBOS

Alba Zaluar

(Do livro: "Da revolta ao crime S.A. – Alba Zaluar, Editora Moderna, p. 09-22, São Paulo, 1996)

.... Há uma grande diferença entre como prevenir ou solucionar os conflitos dentro e entre as tribos. Dentro das tribos, existem muitos meios de evitar, por meio da comunicação e do acordo, que brigas degenerem em conflitos armados e mortes. Entre as tribos, as relações, por definição, são de inimizade, de desconfiança ou de cuidado. Por isso, muitos afirmam que as sociedades primitivas ou tribais se caracterizam pelo estado de guerra entre elas. Não é a fome nem a necessidade, nem a rivalidades comerciais, porém, que explicariam por que algumas são mais aguerrida do que outras (Clastres, 1982).

As tribos, porém, não estão sempre em guerra. Há entre elas mais intercâmbio cultural do que os antropólogos imaginavam (Barth, 1986). Até mesmo a presença de cativos de tribos vizinhas, corno resultado da guerra, favoreceu esse intercâmbio de idéias, símbolos, rituais,, e práticas sociais, todos aprendidos e transmitidos socialmente. Quanto mais trocas houver entre as tribos, menor a possibilidade de guerra. A vida tribal, no entanto, foi muitas vezes caracterizada pela paz precária ou pelo estado de guerra permanente (Sahlins, 1970) mas não universal. Isso porque a guerra acontecia contra os que não faziam parto da tribo, mas não entre seus membros (Clastres, 1982). Por isso se pode dizer que a comunidade tribal cria a exclusão: quem dela não faz parte está excluído de seus benefícios e de sua proteção.

Antes e durante a colonização feita pelos países europeus, as alianças entre as tribos, especialmente no continente americano, eram temporárias, frágeis e visavam destruir um inimigo comum mais forte ou mais perigoso. As alianças, portanto, serviam à guerra, que era o estado permanente das relações entre as tribos americanas, mesmo quando não chegavam a lutar entre si durante longos períodos. Dessa forma, as alianças até poderiam forjar laços mais permanentes. Era um modo de evitar que a guerra, sempre presente como possibilidade, acontecesse.

Por que a guerra? Muitas são as respostas dadas pelos que pensaram a respeito das sociedades primitivas. Muitas as soluções encontradas pelas tribos que existiram e existem no mundo. Segundo alguns antropólogos, não é a necessidade de garantir o alimento que arrasta as tribos à guerra. Ao contrário, tribos que vivem em regiões inóspitas, como os esquimós do Alasca e os aborígenes do deserto australiano, são reconhecidamente povos pacíficos. Por isso Lévi-Strauss afirmou que "as trocas representam guerras potenciais pacificamente resolvidas e as guerras são saídas para transações mal sucedidas" (apud Clastres, 1982). Dependendo, pois, da possibilidade e da capacidade de estabelecer relações de troca corri os seus vizinhos, as tribos irão ou não guerrear.

Outros antropólogos afirmam que as sociedades tribais eram e ainda hoje são constituídas de grupos locais para os quais o controle do território é de importância fundamental na construção da identidade cultural e na vida social da tribo. Esta seria regida pelos princípios da autarcia e da autonomia. Autarcia quer dizer auto-suficiência econômica que procura não depender das outras tribos para conseguir os bens necessários à sobrevivência. Autonomia é o princípio que nos mantém politicamente independentes dos outros, portanto livres da dominação (Sahlins, 1970; Clastres, 1982). Por isso a identidade tribal baseia-se no sentimento de que a cultura específica da tribo, com seus valores e suas regras, é superior à dos outros, muitas vezes desqualificada simplesmente como não-humana (Lewis, 1985). Muitos povos tribais, alguns já desaparecidos da face da Terra em virtude dos conflitos com as nações européias colonizadoras, se auto-apresentavam como "os homens", o que era uma forma de excluir da categoria do humano todos os outros povos. Assim aconteceu com os guaicurus do Chaco paraguaio ou com os algonquinos da América do Norte. De modo geral, para se autodefinirem como apaches, cheyennes, tupinambás ou guaranis, os índios da América precisavam acreditar na sua singularidade e por isso buscavam a autonomia e a independência tribal completas, do ponto de vista econômico, cultural e político (Clastres, 1982). Sendo assim, para não se deixarem dominar, faziam guerra aos outros, os inimigos. Os que não conseguiram e foram dominados tornaram-se castas ou linhagens inferiores, unidades políticas submetidas pelas tribos dominantes. As tribos mais aguerridas ou violentas deram um lugar muito especial para seus guerreiros, tamanha a importância que a guerra adquiriu entre elas (Clastres, 1982). Isso aconteceu com os tupinambás (já desaparecidos) e os caiapós no Brasil, com os povos da Patagônia argentina e do Chaco paraguaio (exterminados brutalmente pelos colonizadores europeus), assim como com os algonquinos e os iroqueses na América do Norte. Para ser considerado guerreiro dotado de prestígio e reconhecimento, um jovem deveria acumular feitos tais como trazer escalpos de inimigos valorizados (os índios de outras tribos, por exemplo, valiam mais do que os espanhóis), armas, mulheres e crianças raptadas. Tais troféus eram ambicionados não porque tivessem algum valor comercial, mas porque sua aquisição, fruto da coragem e da valentia pessoais, trazia prestígio social ao guerreiro (ibidem). Entre os tupinambás, tribo de guerreiros que viveu no Brasil no período colonial, era a vingança executada pelo guerreiro que lhe conferia honra. Matar ou aprisionar o inimigo era o que lhe dava prestígio e poder. Na verdade, só depois que matava alguém, o moço tornava-se homem, como entre outro povo tupi, os arawetés (Viveiros de Castro, 1986). Com isso, quanto mais valentes fossem, mais esposas os guerreiros poderiam ter. Cunhambebe, famoso guerreiro, tinha treze esposas. (Amendura, 34). As esposas eram a ostentação do poder do guerreiro (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985). Cunhambebe, que comia os inimigos que matava, dizia ser um jaguar, a um só tempo fera e divindade, quando praticava a antropofagia (Viveiros de Castro, 1986). Mas também aprendeu nos rituais de Iniciação de sua tribo os valores e a lei a que todos estavam submetidos. Sua liberdade era, pois, limitada, e sua violência, contida dentro dos sentidos que a cultura tribal lhe atribuía. Esta guerra entre tribos não produzia a destruição e o número de mortos a que estamos acosturnados no mundo moderno. Mas fez surgir diferentes maneiras de pensar a morte, os mortos, a violência, o mal. Entre os índios gês, do Brasil, os mortos são os outros, os inimigos que vêm levar os vivos. Entre os tupis-guaranis, os mortos são como deuses que superaram as limitações, as ambivalências e as confusões do humano. Por isso é que, em vez de simplesmente matar ou adotar os inimigos capturados na guerra, os tupis os comiam: era uma forma de superar a condição humana e vir a ser, através do ato de engolir o inimigo, um deus. Entre os tupis, os guerreiros têm, portanto, uma dimensão divina, que os mortais humanos não têm (Viveiros de Castro, 1986). É isso que dá sentido à violência entre eles.

Antes e durante a colonização, povos como os do Chaco paraguaio e os apaches da América do Norte levaram a tal extremo a guerra que acabaram por deixar a agricultura e a criação de animais para dedicar-se exclusivamente à pilhagem dos outros povos. Os guerreiros, inclusive o famoso Jerônimo dos apaches, passaram a ter tanta importância na vida desses povos, que a palavra guerreiro veio a significar "aquele graças a quem comemos"(Clastres, 1982). Criou-se então outra ameaça à igualdade dentro da própria tribo: o acúmulo de regalias aos guerreiros forjou uma divisão social e política, pondo em perigo sua organização social baseada no equilíbrio de poder entre os seus segmentos.

Mas é provável que essa situação extrema tenha-se tornado possível devido à introdução de dois traços culturais do Ocidente entre os índios: o cavalo e as armas metálicas. Com estas, especialmente a arma de fogo, surgiu uma diferença mais acentuada entre os que detinham os meios da violência organizada e os que não eram nem guerreiros riem soldados. Isso aconteceu principalmente no oeste da América do Norte, onde o Exército dos Estados Unidos movia uma guerra contra os índios.

Apesar da inexistência de exploração ou dominação, também nas sociedades tribais, dependendo da idade, do sexo e da tribo dos prisioneiros, estes poderiam ser objeto de terríveis torturas e mutilações, antes de serem devolvidos a seu grupo. Isso acontecia, porém, apenas durante as guerras e quando não havia hábito de casá-los na tribo, ou mesmo tê-los como "escravos", ou seja, como pessoas que prestavam serviços domésticos a seus donos, prática comum em alguns povos tribais. Na África, mesmo antes de os europeus lá chegarem e iniciarem o comércio de escravos, esse tipo de escravidão (dos prisioneiros de guerra) já existia. Também ali os escravos" não eram objeto de compra e venda, nem havia a idéia de explorar seu trabalho com o intuito de obter lucros. Esses "escravos", vivendo em tribos que não as suas, muitas vezes como filhos adotados nas famílias, facilitaram o intercâmbio cultural e, assim, contribuíram para diminuir distâncias, possibilitar o intercâmbio e aumentar a criatividade humana.

 

A VIOLÊNCIATRIBAL NO MUNDO DE HOJE

Foram muitas as respostas dadas pelas tribos primitivas ao contato com os europeus modernos. A tribo norte-americana dos navajos, depois de derrotada pelo Exército dos Estados Unidos, enviou seus jovens mais capazes para estudar Direito nas universidades americanas. Assim, ficaram com o conhecimento tanto das leis costumeiras dos navajos quanto das leis americanas. Movendo ações na Justiça, os advogados navajos puderam usar as leis dos vencedores para manter a maior parte das terras tribais, sem perder seus costumes e suas tradições (Davis, 1973).

Em outros países, como o Brasil, povos tribais tornaram-se minorias cujos direitos passaram a ser defendidos pela Constituição do país onde vivem. No Brasil, várias tribos foram reunidas, após terem sido removidas de seus antigos territórios, no Parque Nacional do Xingu, onde convivem pacificamente e lutam juntas pelos seus direitos. Outros parques vêm sendo demarcados para garantir o direito à terra das tribos que viviam no Brasil muito tempo antes de ele ser "descoberto". Aqui os índios são tutelados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão governamental que conta com uma equipe de advogados para defendê-los em qualquer conflito, inclusive quando acusados de crimes comuns contra os brancos.

Após a independência dos países colonizados, guerras tribais, antes reprimidas pelas nações européias colonizadoras, voltaram a acontecer. Isso se deu especialmente na África, cujos povos não foram quase completamente exterminados, como aconteceu na América. Na África do Sul, por exemplo, os conflitos entre os chosas e os zulus já fizeram milhares de mortos. Em Ruanda, que antes da colonização já era um reino, os invasores tutsis dominavam a maioria dos agricultores hutus. Quando da independência, os conflitos entre as duas tribos fizeram muitos mortos (Gluckman, 1967). Em 1994, a carnificina atingiu centenas de milhares de mortos, quando os hutus tentavam recuperar a autonomia perdida.

Mas na Nigéria não ocorreu o que se previu: o país seria destruído e sua população dizimada pelos conflitos intertribais. As tribos eram muitas e os grupos religiosos em que se subdividiam também, de modo que ficaram obrigadas a conviver e a partilhar um mesmo território nacional. Uma delas, os iorubas - que incluem muçulmanos e cristãos -, pôde fazer então o papel de mediador e conseguiu reunir numa mesa de negociação todas as outras. Hoje, passado o perigo da guerra civil, a Nigéria é um país pacificado e independente....

.....(O)s aspectos mais violentos e irracionais encontrados na sociedade tribal também estão hoje presentes, em formas ainda mais perversas, nas sociedades ditas modernas, marcadas por profundas desigualdades sociais.

.... A preocupação com o domínio do território, junto com interesses econômicos poderosos, é parte importante das nações modernas, provocando guerras mundiais em que milhares de pessoas são dizimadas com armas de grande poder de destruição, inimagináveis para um homem das sociedades ditas primitivas ou tribais. Nas metrópoles modernas, em menor escala, encontra-se o domínio do território nas turmas de rua, nas gangues de bairro e nas quadrilhas de criminosos profissionais, que passam a ocupá-lo e sentir-se "donos da rua". Suas lutas constantes, suas guerras intermináveis devem-se a esse extremo zelo em afirmar um controle fictício do ponto de vista legal, pois o território defendido tão ferozmente é, na verdade, público, ou seja, de todos. No entanto, a defesa do local passa a ter grande importância na afirmação da identidade masculina dos jovens do lugar.

A África de hoje, assim como a Europa, tem obrigado antropólogos a pensar cada vez mais sobre os extremos e a destrutividade do tribalismo no mundo moderno. Quando a identidade étnica leva ao extremo a lógica da exclusão da comunidade e passa a considerar os outros como totalmente diferentes e inimigos, as possibilidades de destruição pela guerra aumentam perigosamente. Isso porque, sob a influência do pensamento que divide as identidades, o bem e o mal, o nós e os outros em mundos opostos ou entidades metafísicas, o tribalismo adquiriu contornos rígidos e perversos. É o que explica os terrores justificados pela "limpeza étnica", seja contra os judeus e os ciganos durante a Segunda Guerra Mundial, seja contra os sérvios na Bósnia de 1995. Além disso, no mundo moderno os recursos técnicos para a guerra capacitam seres humanos a matar seres humanos numa dimensão desconhecida nas sociedades tribais antigas. Nos países do mundo moderno, como deixaram de funcionar os controles rituais, informais e pessoais prevalecentes nas comunidades de pequena escala, os perigos da liberdade humana aumentaram infinitamente.(Do livro: "Da revolta ao crime S. A.", Alba Zaluar, Ed. Moderna, São Paulo, 1996, págs. 9 a 22)