A devoração da esperança no próximo

O esvaziamento da vida pública é a contraface da queda da vida privada

Por falta de motivação, as elites desistiram de combater a violência

JURANDIR FREIRE COSTA

(Jornal "Folha de São Paulo", 22/09/96)

 

O episódio ocorreu num dos grandes hospitais psiquiátricos do Rio. Uma cliente, pessoa simples, com baixo nível de escolarização e tida como louca, falava de sua vida em família. Dizia que um irmão tinha sido preso por tráfico de drogas e outro, morto pela polícia. Um dos terapeutas perguntou-lhe por que seu irmão havia sido morto. Ela respondeu: "Porque eles (os policiais) não gostam de gente"!

De vez em quando é preciso dar ouvidos à desrazão. A onda de violência que vivemos hoje deve-se a incontáveis motivos. Um deles parece-me especialmente virulento: o desinvestimento cultural na idéia do "próximo". Muitos historiadores, filósofos e cientistas políticos referem-se ao "nascimento do próximo" como um evento particular ao Ocidente. Nem sempre o outro foi visto como próximo, ou seja, como alguém que, pelo simples fato de ser humano, é aceito como "um de nós". Este fato cultural surgiu com o cristianismo, prosseguiu no Renascimento, ganhou realidade político-jurídica nas Revoluções Americana e Francesa e continuou presente nos projetos liberal-democrático e socialista dos séculos 19 e 20.

Assim, na atualidade, habituamo-nos a ver em qualquer humano um semelhante e esquecemos que esta crença nem sempre foi intuitiva e imediata. Historicamente, o "amai-vos uns aos outros" não se impôs pelo exemplo de doçura, bondade e entrega de Jesus de Nazaré, de alguns de seus discípulos ou primeiros mártires. Aprendemos a ver no outro "um próximo" pela força das armas; pelas fogueiras da inquisição; pela perseguição aos inimigos políticos; pelo degredo, prisão, assassinato ou extermínio em massa dos infiéis, hereges, dissidentes e desviantes. Quando as revoluções democrático-burguesas aconteceram, grande parte das elites ocidentais estava preparada para tomar como natural e desejável a idéia de que todos fôssemos livres, iguais e fraternos. O respeito pela vida e a certeza de que o outro é um parceiro virtual na realização de nossas aspirações afetivas ou na construção de uma sociedade mais justa tornaram-se premissas práticas, inconscientes e pré-reflexivas, de nossas crenças morais.

Mas, para que a recomendação do amor ao próximo fosse psicologicamente viável, a cultura ocidental fez da identidade do sujeito moderno espelho da contradição entre os ideais e a realidade. Buscando conciliar a industrialização, o capitalismo ou o imperialismo com a mínima moral democrática, as elites criaram um indivíduo cujo aprendizado da cidadania fundou-se em dois pilares centrais: a disciplina do trabalho e a disciplina da família. Na disciplina do trabalho, ele aprendia que seu esforço era nobre, pois produzia riquezas, e sua recompensa era a elevação do nível de vida material; na disciplina da família, aprendia a procriar corretamente, tendo em troca as promessas do sexo seguro e o direito de amar conforme a fantasia do amor-paixão romântico. Este amante bem-educado, bom trabalhador e bom pai de família foi a retranca privada que garantiu, por longo tempo, o semblante de harmonia do espaço público. Sua imagem era o emblema da civilização e dos bons costumes e, em seu nome, preconceitos, dominação e espoliação econômico-cultural de pessoas, classes ou povos submetidos foram interpretados e justificados como "ocorrências parasitárias"; "desvios de percurso"; "etapas infelizes, mas necessárias" rumo ao paraíso burguês na terra.

A receita funcionou até que o progresso técnico e a sede de lucros mostraram que a "dignidade do trabalho" durou enquanto foi útil. Do mesmo modo, a moral familiar sucumbiu à moral do consumo, à saturação sexual da intimidade e às manifestações sociais dos discriminados, sob a forma de políticas das minorias ou políticas identitárias. De repente, as elites deram-se conta de que o universo patriarcal burguês desabara. Homens e mulheres já não se entendem sobre "o que é o feminino" e "o que é o masculino"; pais e filhos já não sabem mais "o que é paternidade" e "o que é filiação"; adultos e crianças perguntam-se "o que é ser jovem" e "o que é envelhecer" e todos, em guerra uns com os outros, pedem ao sexo e ao amor-romântico que lhes devolvam o apetite de viver que o insensato mundo lhes roubou.

Raramente pensam que o desmoronamento da vida privada é a contraface do esvaziamento da vida pública e que o primeiro não tem conserto, enquanto o segundo persistir torto. Na esfera pública, os sinais do rebaixamento da imagem do "próximo" saltam à vista: o povo tornou-se "massa de consumidores"; política, defesa corporativa de interesses privados e à medida em que informatizamos indústrias, comércios, finanças e cabeças, desempregamos milhões de pessoas, sem a menor hesitação moral. Fomos adiante. Substituímos a prática da reflexão ética pelo treinamento nos cálculos econômicos; brindamos alegremente o "enterro" das utopias socialistas; reduzimos virtude e excelência pessoais a sucesso midiático; transformamos nossas universidades em máquinas de produção padronizada de diplomas e teses; multiplicamos nossos "pátios dos milagres", esgotos a céu aberto, analfabetos, delinquentes, e, por fim, aderimos à lei do mercado com a volúpia de quem aperta a corda do próprio pescoço, na pressa de encurtar o inelutável fim.

O efeito do desastre é evidente. O Outro tornou-se o Inferno. Não por ser, metafisicamente, condição necessária e limite insuperável da liberdade do sujeito, mas pela prosaica razão de que, no cotidiano, todos tornaram-se um estorvo para todos. As revoluções democrático-burguesas haviam iniciado o processo de estranhamento do outro, quando retiraram a fraternidade, do lema francês, para dar lugar à impessoalidade. Mesmo assim, os antigos laços de lealdade, amizade e fidelidade, embora expulsos da esfera pública, encontraram abrigo na esfera privada. O "próximo" poderia voltar a ser próximo, desde que deixasse a luz de público e se tornasse um íntimo; um familiar; um cúmplice nas relações pessoais.

No individualismo contemporâneo, a impessoalidade converteu-se em indiferença e os elos afetivos da intimidade foram cercados de medo, reserva, reticência e desejo de autoproteção. Pouco a pouco, desaprendemos a gostar de "gente". Entre quatro paredes ou no anonimato das ruas, o semelhante não é mais o próximo-solidário; é o inimigo que traz intranquilidade, dor ou sofrimento. Conhecer alguém; aproximar-se de alguém; relacionar-se intimamente com alguém passou a ser uma tarefa cansativa. Tudo é motivo de conflito, desconfiança, incerteza e perplexidade. Ninguém satisfaz a ninguém. Na praça ou na casa vivemos quando vivemos! Uma felicidade de meio expediente, em que reina a impressão de que perdemos a vida "em colherinhas de café".

As elites ocidentais são elites sem causa e, no Brasil, estamos repetindo o que, secularmente, aprendemos a imitar. Como nossos modelos europeus e americanos, reagimos ao sentimento de miséria em meio à opulência com apatia, imobilidade e conformismo. Construir um mundo justo? Para quê? Para quem? Por acaso um mundo mais justo seria aquele em que todos pudessem ter acesso ao que as elites têm? Mas o que têm as elites a oferecer? Consumo, tédio, insatisfação e ostentação. Bem ou mal, em nossa tradição moral e intelectual, respondíamos às crises de identidade reinventando utópicas formas de vida em mundos melhores. Hoje, aposentamos os "Rousseau". Em vez de utopias, manuais de auto-ajuda, psicofármacos, cocaína e terapêuticas diversas para os que têm dinheiro; banditismo, vagabundagem, mendicância ou religiosismo fanático para os que apenas sobrevivem.

Se existe uma característica peculiar à violência no Brasil, é a desistência das elites em combatê-la, por falta de coragem e de motivação. No passado recente, lidamos com a truculência da ditadura militar e, desde que este país foi descoberto, conhecemos um estado crônico de violência social, sem que isto nos tenha feito capitular. O que mudou é que, agora, não temos mais por que lutar. Sem nos darmos contas, entramos na era do "tanto faz".

Voltamos as costas ao mundo e construímos barricadas em torno do idealizado valor de nossa intimidade. Fizemos de nossas vidas claustros sem virtudes; encolhemos nossos sonhos para que coubessem em nossas ínfimas singularidades interiores; vasculhamos nossos corpos, sexos e sentimentos com a obsessão de quem vive um transe narcísico, e, enfim, aqui estamos nós, prisioneiros de cartões de crédito, carreiras de cocaína e da dolorosa consciência de que nenhuma fantasia sexual ou romântica pode saciar a voracidade com que desejamos ser felizes. Sozinhos em nossa descrença, suplicamos proteção a economistas, policiais, especuladores e investidores estrangeiros, como se algum deles pudesse restituir a esperança "no próximo" que a lógica da mercadoria devorou.

Não se trata de demonizar uma classe social ou fabricar bodes expiatórios, ressuscitando o que de pior existiu em tantas ideologias totalitárias. Trata-se de saber se acreditamos ou não, com Hannah Arendt, que "os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer, mas para recomeçar". Se ainda acreditamos nisto, por que não pedir "encore un effort!", sem o destrutivo sarcasmo de Sade. Dos mercadores de templos, é verdade, nada podemos esperar. Mas quanto aos outros? Quanto àqueles que no governo, na universidade, na imprensa, nas casas, nas escolas, nas artes ou na política ainda esperam sem desespero? Seria muito propor uma virada de outra ordem? Seria muito propor que, em vez de ruminar o fracasso, pensássemos juntos em refazer a amizade, a lealdade, a fidelidade e a honra na vida pública e privada, o gosto pela ética no pensamento político ou visões de mundo capazes de contornar a lassidão moral decorrente de nossos hábitos sentimentais e sexuais etc?

Obviamente, não penso que tais discussões ou eventuais programas de ação possam resolver problemas de educação, desemprego, saúde ou terra para quem quer trabalhar. Mas temos que partir de algum lugar, com a habilidade desenvolvida no domínio prático ou teórico em que nos exercitamos. O fundamental, penso, é abandonar a posição sadomasoquista de contemplação da degradação alheia ou da própria degradação. Isto é utópico e desmiolado? Pois, bem, "ça n'empêche pas d'exister". Um grão de loucura e devaneio, quem sabe, é desta falta que padecem nossas almas mortas, famintas de encantamento e razão de viver.

 

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Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "A Frente e o Verso", entre outros.

 

 

 

 

 

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