Ao recebermos qualquer coisa do outro, contraímos uma dívida e uma culpa, das quais nos redimimos ao doar
A capacidade de doar
Jurandir Freire Costa
(Jornal "Folha de São Paulo", 09/01/2000)
Um dos mais tenazes preconceitos criados pelo
utilitarismo vulgar é a idéia de "interesse como posse ou aquisição". Aprendemos que tudo o que pensamos, sentimos e fazemos é motivado pelo interesse em possuir alguma coisa.
Assim,
todo apetite, desejo ou aspiração teria como causa o interesse, manifesto ou oculto, de "possuir" o objeto visado. Essa idéia se converteu em uma espécie de jargão
cultural inconsciente. A vida, diz-se, é um cálculo, consciente ou inconsciente, que visa a regular a economia da
posse. Amamos, dominamos o outro, buscamos o prazer, o poder, a felicidade e a virtude por interesse em
possuir.
E se, por acaso, atiramos no próprio pé, ainda
assim descobriremos, cedo ou tarde, um estranho e ignoto interesse em possuir, sob a aparência do gesto insensato. Nada escapa ao fôlego felino da
intenção possessiva.
O que mantém tanto tempo em cartaz
esse interesse? Dois motivos me parecem
importantes. O primeiro se relaciona ao
intelectualismo, ao universalismo e ao
racionalismo em filosofia. O utilitarismo vulgar, em
oposição a esses ideais filosóficos, afirma que interesses
concretos e não especulações desencarnadas são os móveis da ação.
A ação é desse mundo, ou melhor, de algum lugar no mundo onde dominam os interesses paroquiais, irredutíveis a normas válidas e extensíveis a
todos.
O segundo motivo se deve ao prestígio dos ataques intelectuais à tradição moral cristã e às versões truncadas
da concepção rousseauniana da natureza humana.
Bem
ao gosto de algumas correntes do romantismo filosófico-literário, o utilitarismo vulgar reage ao "intelectualismo frio", afirmando o direito dos corpos, paixões e
pulsões de ocuparem a cidade.
Cansados da ética protestante e afinados com o espírito do capitalismo, dizemos que não somos seres etéreos, hibernando em céus
de idéias puras.
O que nos excita e leva à ação nada tem
de bom-mocismo ou de histórias edificantes. Nossa
matéria-prima são os pecados capitais, portanto, lá onde o interesse está, a verdade do "desejamos" deve advir.
Diz-me em que te interessas e te direi quem és!
A idéia de interesse, nesse patamar metafísico, embora insinuante, é trivial. O que tudo explica, nada explica.
Qualquer conceito que pretende esgotar a inteligibilidade do que analisa, a partir de um único ponto de vista,
incorre no mesmo engano. Mas, usada no sentido pragmático corrente, a noção pode ter utilidade, desde que
possamos ver suas vantagens e desvantagens. Uma das
grandes vantagens da idéia de "interesse" é, sem dúvida, nos liberar da tarefa de sermos anjos em corpos de
mamíferos falantes.
O intelectualismo racionalista e
universalista acabou por fabricar ideais de vida em
franca contradição com os reais modos de viver. A ação,
sem dúvida, obedece às "razões da Razão", mas também às "razões do coração", como disse Pascal. Desconhecer, isso é, produzir tensões, conflitos e sofrimentos
desnecessários.
A grande desvantagem do "interesse",
na vulgata utilitarista, é a sedução da imagem de "interesse como sinônimo de posse". Acreditar que só agimos porque queremos reter ou acumular é dar provas
da mais flagrante miopia em relação ao que somos ou
fazemos.
Redenção pela doação -
Ninguém melhor que Winnicott, um dos três ou quatro grandes nomes da história
da psicanálise, mostrou o equívoco dessa opinião. Winnicott, ao descrever os interesses do indivíduo do "self",
em linguagem técnica, dá ênfase especial a um deles, a
capacidade de se preocupar com o outro, expressa no
"interesse de doação". Para o autor, a dádiva, o dom, a
doação, não são ornamentos dispensáveis da vida subjetiva.
A doação é uma obrigação, um ímpeto em demasia, um excesso da vida criativa que não pode ser entesourado, sob pena de grave desequilíbrio psíquico.
A doação é a contrapartida psíquica da aquisição. Ao
recebermos qualquer coisa do outro, contraímos uma
dívida e uma culpa, das quais nos redimimos ao doar.
A
doação não é, de forma necessária, "bondosa". Podemos doar por generosidade -em gratidão, amor ou reconhecimento ao que nos foi dado- como podemos
doar por egoísmo -em casos de ostentação perdulária,
na disputa por sucesso e poder sociais. Mas, se não pudermos doar, de alguma maneira, nos arriscamos, simplesmente, a perder o "interesse" por nossa vida e pela
vida do outro.
O impedimento de doar produz, assim, defesas emocionais que se tornam compulsivas porque visam a
anular o sentimento de "superfluidade" e "futilidade"
dos que se percebem como incapazes ou impossibilitados de doar. Esse conflito assume várias configurações
psicológicas.
Por exemplo, o sujeito, diante de ideais
despóticos de perfeição, pode experimentar uma drástica desmoralização na auto-estima, já
que a desmedida da exigência torna insignificante tudo o que ele tem para oferecer. Em outros casos, o autocentramento, o desdém e a prepotência daquele a quem o dom se destina, rebaixa o valor de toda dádiva oferecida.
Enfim, se a
tentativa de doar se revela infrutífera, o
sujeito pode ser levado a se apropriar de
qualquer coisa do outro, bens ou vida,
para ter a experiência de poder dar ou
negar a alguém alguma coisa de valor.
O bloqueio
do circuito da doação fixa o sujeito na
posição da "posse", levando-o a agir de
forma, muitas vezes, predatória e autodestrutiva, com o intuito de recuperar o
próprio sentido de viver.
A destruição
cega de bens materiais ou culturais; a brutalidade de assassinatos, à primeira vista, gratuitos; o moderno sentimento de solidão e abandono individuais; a epidemia
de depressões ou de maus-tratos corporais auto-infligidos; a busca de autovalorização por meio do prazer independente do outro, como nas drogadições etc. são alguns dos sinais da atrofia cultural do "interesse de doação".
Não nos tornamos "delinquentes", anti-sociais, "narcisistas", deprimidos, obcecados pela domesticação do
corpo e por sensações corporais extáticas apenas porque queremos devorar tudo e todos, segundo a lei do
consumo. Tornamo-nos cronicamente insatisfeitos, infelizes, abatidos, ansiosos, impiedosos, truculentos,
apáticos ou "resignados" porque nos fazem ver, sentir e
pensar que nada do que somos ou temos desperta o menor "interesse", "admiração", "cuidado" ou amor do
outro.
A volatilidade dos valores baseados em preferências idiossincráticas; a obsolescência precoce dos emblemas de distinção socioeconômica; o aumento acelerado do número de pessoas consideradas "marginais",
"improdutivas" e "descartáveis"; e, finalmente, a exclusão da maioria, até do pífio e asfixiante universo do consumismo, tornam o que possuímos sem valor, e o que
doamos, irrelevante.
Antes de nos tornarmos definitivamente mutilados
em nossa vida mental, talvez seja interessante ouvir o
que pessoas como Winnicott têm a dizer. Quem sabe,
conhecer melhor um grande, discreto e simpático pensador seja um passo a mais no processo de revalorização de nossas vidas e de nossa capacidade de doar.
A teoria winnicottiana da "oferenda"
nos ajuda a entender, um pouco mais, o
sentido de alguns fenômenos dramáticos da vida urbana moderna.
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e
"Sem Fraude nem Favor" (Rocco).