Especificidade do racismo Brasileiro
No texto "Nem preto, nem branco, muito pelo contrário, cor e raça na Intimidade" (Brasil)
(Livro "História da vida Privada no Brasil", org. Fernando Novais, pág. 177-184, Cia de Letras, 1998, São Paulo)
Lilia Mortz Schwarcz
..... "Afinal, o que faz do Brazil, Brasil"". A partir de então, muitos daqueles que se propuseram a definir uma "especificidade nacional" selecionaram a "conformação racial" encontrada no país, destacando a particularidade da miscigenação.
O conjunto dessa afirmações poderia indicar uma grande visibilidade e um trato freqüente do tema no Brasil. No entanto, o que se observa é o oposto: "raça" é quase um enredo, um palco para debates de ordem diversa. Se no exterior made in Brazil é sinônimo da reprodução de nossos exóticos produtos culturais mestiços, dentro do país o tema é quase um tabu. A não ser de maneira jocosa ou mais descomprometida, pouco se fala sobre a questão: livros não despertam interesse, filmes ou exposições passam quase despercebidos.
O filme Quilombo, que traz a loira atriz Vera Fischer – um outro símbolo nacional – no papel principal, causou pouco impacto. As comemorações do centenário da Abolição da escravidão em 1988, apesar de sua agenda carregada, pouco mídia e comoção surtiram.
A situação aparece de forma estabilizada e naturalizada, como se as posições sociais desiguais fossem quase um desígnio da natureza, e atitudes racistas, minoritárias e excepcionais: na ausência de uma política discriminatória oficial, estamos envoltos no país de uma "boa consciência" que nega o preconceito ou o reconhece como mais brando.
Afirma-se de modo genérico e sem questionamento uma certa harmonia racial e joga-se para o plano pessoal os possíveis conflitos.
Essa é sem dúvida uma maneira problemática de lidar com o tema: ora ele se torna inexistente, ora aparece na roupa de alguém outro.
É só dessa maneira que podemos explicar os resultados de uma pesquisa realizada em 1988, em São Paulo, na qual 97% dos entrevistados afirmaram não ter preconceito e 98% - dos mesmos entrevistados – disseram conhecer outras pessoas que tinham, sem, preconceito. Ao mesmo tempo, quando inquiridos sobre o grau de relação com aqueles que consideram racistas, os entrevistados apontavam com freqüência parentes próximos, namorados e amigos íntimos. Todo brasileiro parece se sentir, portanto, como uma ilha de democracia racial, cercado de racistas por todos os lados.
Em 1995, o jornal "Folha de São Paulo" divulgou uma pesquisa sobre o mesmo tema cujos resultados são semelhantes.
Apesar de 89% dos brasileiros dizerem haver preconceito de cor contra negros no Brasil, só 10% admitem tê-lo. No entanto, de maneira indireta, 87% revelam algum preconceito ao concordar com frases e ditos de conteúdo racista, ou mesmo ao enunciá-los.
Os resultados parciais de um trabalho sobre os bailes negros em São Paulo podem ser entendidos de forma inversa mas simétrica. A maioria dos entrevistados negou ter sido vítima de discriminação, porém confirmou casos de racismo envolvendo familiares e conhecidos próximos.
Investigação sobre a existência de preconceito de cor em diferentes núcleos brasileiros têm apresentado conclusões convergentes.
Em pequenas cidades costuma-se apontar a ocorrência de casos de racismo apenas nos grandes conglomerados (a atriz que foi barrada em uma boate; a filha do governador do Espírito Santo, que não pôde usar o elevador social), mas o contrário também acontece – na visão dos habitantes de são Paulo e do Rio de Janeiro, é nas pequenas vilas que se concentram os indivíduos mais radicais. Isso para não falar do uso do passado: quando entrevistados, os brasileiros jogam para a história, para o período escravocrata, os últimos momentos do racismo.
Distintas na aparência, as conclusões das diferentes investigações são paralelas: ninguém nega que exista racismo no Brasil, mas sua prática é sempre atribuída a "outro".
Seja da parte de quem age de maneira preconceituosa, seja daquela de quem sofre com o preconceito, o difícil é admitir a discriminação e não o ato de discriminar.
Além disso, o problema parece ser o de afirmar oficialmente o preconceito, e não o de reconhecê-lo na intimidade.
Tudo isso indica que estamos diante de um tipo particular de racismo, um racismo silencioso e sem cara que se esconde por trás de uma suposta garantia da universalidade e da igualdade das leis, e que lança para o terreno do privado o jogo da discriminação.
Com efeito, em uma sociedade marcada historicamente pela desigualdade, pelo paternalismo das relações e pelo clientelismo, o racismo só se afirma na intimidade.
É da ordem do privado, pois não se regula pela lei, não se afirma publicamente.