POR QUÊ O RACISMO ESTÁ DE VOLTA?
O RETORNO DO RACISMO
JOÃO BAPTISTA BORGES PEREIRA
(Do livro: "Raça e diversidade", Lilia Moritz Schwarcz,, Edusp, 1996,São Paulo, pág. 17-27)
O racismo está de volta? Esta é a pergunta angustiada e angustiante que se faz nos dias atuais e que pressupõe a existência de um racismo anterior que a história havia se encarregado de escorraçar, expulsar, exorcizar, pelo menos, das sociedades ocidentais. Agora, livre das peias que aparentemente o mantinham inerte ou encarcerado, retorna à cena social, perturbando o cotidiano de pessoas e grupos, a vida de povos e nações.
Sim, o racismo voltou. Porém, ao contrário do que pensava toda uma geração de otimistas e ingênuos, ele não havia sido sepultado. Permanecera, apenas, anestesiado durante um quinhão de tempo para, hoje, reaparecer com os mesmos e velhos ingredientes tradicionais condicionadas pelas configurações históricas da atualidade.
Reações ao "novo" racismo
A esse racismo ressureto, que se convencionou rotular emergente, segue-se uma série de reações. Uma delas, talvez a primeira, é a da perplexidade ante o reaparecimento de um fenômeno que se julgara nunca mais dever mostrar a sua face perturbadora. Outra reação explicita-se nas tentativas – racionais e não-racionais – de explicá-lo, e entendê-lo numa frenética interrogação do porquê de seu retorno. Finalmente, uma terceira reação expressa-se nos esforços de dominá-lo, de exorcizá-lo para, se possível, mandá-lo de volta a tempos de onde nunca deveria ter saído.
A perplexidade ou a perda da inocência
Por que ficar perplexo perante um fenômeno que, ao que tudo indica, caminhou passo a passo com diferentes manifestações, o mesmo caminho da humanização e que pode ser surpreendido em qualquer condição de convivência humana? Em outras palavras, poder-se-á dizer que o racismo na sua forma primordial – o etnocentrismo – é algo inerente à própria natureza social do homem. A cultura e a história limitam-se a dar a forma e a direção a esse etnocentrismo. Sabe-se, hoje, que todos os agrupamentos humanos, todos os povos têm a explicação supervalorizada a respeito de suas origens, contrapondo-se à desvalorização do outro.
*{Vejamos alguns exemplos:
Lévi-Strauss (antropólogo) relata, em seu livro "Tristes Trópicos", o mito de origem dos índios mbaiá - guaicuru, cujo território situava-se em terras paraguaias e brasileiras. Eles aprenderam a montar a cavalos e adquiriram com isso grande mobilidade e poder, passando a dominar e explorar outros grupos indígenas da região.
O mito mbaiá diz o seguinte:
"Quando o ser supremo, Gonoenhodi, decidiu criar os homens, tirou primeiro da terra os guaná, depois as outras tribos; aos primeiros, deu a agricultura, e a caça às segundas. O Enganador, que é outra entidade do panteão indígena, percebeu, então, que os mbaiá tinham sido esquecidos no fundo do buraco e os fez sair; mas, como nada mais lhes restasse, tiveram o direito à única função ainda disponível, a de oprimir e explorar os outros."
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Durante a Guerra do Vietnã, o comandante das Forças Armadas norte-americanas, vendo-se obrigado a explicar as sucessivas derrotas de suas tropas, declarou à imprensa que os "amarelos comunistas" estavam ganhando a guerra porque, ao contrário dos ocidentais, não davam valor à vida e, por isso, lutavam sem nenhum temor. Segundo o militar, os destemidos vietnamitas sequer expressavam dor por ocasião da morte de amigos e parentes!
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Os Cheyene, índios das planícies norte-americanas, se autodenominavam "os entes humanos’; os akuáwa, grupo tupi do sul do Pará, consideram-se "os homens"; da mesma forma que os Navajo se intitulavam "o povo’. Os aborígenes australianos chamavam as roupas dos brancos de "peles-de-fantasmas", pois não acreditavam que os ingleses fossem parte da humanidade; e os nossos xavantes acreditam que o seu território tribal está situado bem no centro do mundo."}*
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Os urubus, grupo tribal do vale do Pindaré (Maranhão), assim nomeados pelos vizinhos (civilizados e índios) se autodenominam Kaapor (Kaa = madeira, mata, floresta e Pôr - ser). Essa autodenominação sintetiza admiravelmente o mito ou a explicação da origem do grupo. "Todos os homens vieram das madeiras. Todos. Só que, enquanto os Kaapor originaram-se das madeiras boas, os outros homens (a humanidade, para eles) nasceram das madeiras podres.
Jogando com outros dados, porém com os mesmos ingredientes etnocêntricos, a mesma dualidade (bom/ruim) e com estruturas semelhantes, enuncia-se o mito da criação bíblica original que, depois de incorporado pelos hebreus, classifica a humanidade em duas categorias: a dos eleitos e a dos gentios. Foi preciso que o apóstolo Pedro, instado pela visão do lençol que por três vezes desceu dos céus, concordasse em comer alimentos proibidos por tabus judeus para que a dualidade eleito-gentio (bom/ruim) se desfizesse. Do ponto de vista da história das religiões, a metáfora do lençol com a quebra dos tabus alimentares representou a transformação do cristianismo de religião étnica em religião universal. Da perspectiva da história no ocidente, do reconhecimento do outro como portador de qualidades humanas, ou mais humanas, a metáfora simboliza a ruptura do etnocentrismo pela universalidade da mensagem cristã.
Se captada dessa ótica, a história da humanidade parece ser a seqüência contínua da construção e quebra do etnocentrismo: os povos fecham-se e abrem-se aos diferentes sob a ação de múltiplos fatores sociais, culturais, políticos, econômicos, etc.
Se é possível histórica e antropologicamente naturalizar a matriz que gera o racismo em suas diferentes formas (preconceito, discriminação, segregação) de onde, então, provém essa perplexidade que tanto agia o mundo até alcançar a academia?
Tudo indica que ainda se respiram resíduos do clima da Segunda guerra Mundial que, esquematicamente, pode ser reduzida a confronto armado entre o etnocêntricos extremados e os não menos extremados antietnocêntriso. Cada lado, como se sabe, amparado por ideologias e políticas que justificam, a seu modo, a ação de cada qual. A Segunda guerra põe a nu, com crueza, até que ponto o etnocentrismo manipulado ideológica, política e militarmente pode ser um implacável perorado anti-humanidade com teor de crueldade e requinte quase inimaginável. A vitória dos aliados representou, nessa linha de raciocínio, a vitória dos antietnocêntriso e o aceno de uma política de harmonia étnica entre os povos. Com essa vitória militar, jogava-se para os porões da história, para o pó do esquecimento, o que havia de mais repelente no nazifascismo. Tão importantes, nesse ideário, como a libertação política de países e povos do regime nazi-fascista, foram a desestigmatização das minorias étnicas e a sua libertação para sempre do calvário a que estiveram até então historicamente submetidas. A busca desse objetivo instrumentalizou-se e institucionalizou-se, como se sabe, com a criação da Unesco.
A estratégia dos redentores
Assessorada por intelectuais de várias áreas do conhecimento, notadamente da antropologia, sociologia, psicologia e biologia, a Unesco estimulou e desenvolveu intenso programa que tinha como objetivo esclarecer a opinião pública internacional a respeito das falsas bases científicas do racismo. Essa foi a geração e a estratégia daqueles que reduziam a questão racial a fruto direto da falta de informações a respeito da diversidade humana. O desentendimento dos homens e dos povos, nessa perspectiva, somente poderia ser eliminado pela educação, pela orientação científica, pela substituição, enfim, de avaliações emocionais e juízos estereotipados por reflexões de caráter racional. O preconceito, a discriminação, até o extermínio do diferente deviam-se a mitos ligados, desde sempre, a conceitos errôneos e equivocados sobre as raças humanas, que deveriam ser corrigidos. São esses os mitos ou crenças que transformam a diversidade em desigualdade racial, que hierarquiza a biodiversidade humana.
Nesse clima, nações pluriétnicas ou multirraciais são levadas a reavaliações de suas experiências históricas, como, por exemplo, o Estados Unidos e o Brasil. A América do Norte que, como se sabe, foi um dos paladinos do antietnocentrismo na Segunda guerra, ao resolver-se, ainda durante o conflito, por uma auto-análise, acreditava que esse trabalho somente poderia ser feito por um estudioso estrangeiro, eqüidistante da questão racial americana e pouco emocional.
Gunnar Myrdal, economista sueco, e neutro nórdico, coube perfeitamente nesse figurino, conforme avaliação feita pela Carnegie Corporation. Desse trabalho, feito com o apoio de uma grande equipe de especialistas, surge um livro clássico, com fortes influências weberianas, que marcou os novos estudos sobre raça naquele país.
Anos depois, o Brasil foi palco de uma experiência muito rica. Baseada na imagem que se tinha do país no exterior, a Unesco pretendia apresentar ao mundo o sistema racial brasileiro como o modelo ideal de convivência harmoniosa entre raças diferentes. Essa crença, fortemente consolidada no imaginário nacional e que a historiografia e a ciência deram status de verdade, veio pouco a pouco, em ritmo político, se consolidando no cansativo slogan (repetidos por gregos e troianos) de o país da democracia racial. Em síntese, dentro do ideário de conhecer para orientar, o Brasil seria um dos modelos a ser seguido pelas nações plurirraciais. É de todos conhecida a reação de intelectuais brasileiros, mas à esquerda, contra essa idéia e como dessa reação nasceu o famoso projeto Unesco sobre relações raciais no Brasil, sob a condenação de A . Metraux.
Os resultados dessa pesquisa inauguraram uma nova e fértil era na reflexão sobre a questão racial brasileira e marcaram etapa significativa na conscientização do negro no país.
Tais pesquisas, como a realizada no Brasil, vêm revelar diferentes escalas e graduações dos problemas raciais e deslocam a questão de racismo exterminador nazi-fascista para o nuançado racismo contemporizador existente pelo mundo afora, em especial nas jovens nações que se formaram com o braço escravo e com a mão-de-obra imigrante.
O racismo contemporizador, que aparentemente não fazia vítimas fatais e não tinha campos de extermínio, ainda que desnudado pela sociologia crítica da década de 50, não comprometia a idéia de que o racismo – o verdadeiro racismo – havia sido apagado da história. Falar numa volta de políticas ou ações racistas, aqui no Brasil, nas décadas de 50/60, era desafiador, desagradável, inoportuno, quase uma expressão de lesa-humanidade. Um novo mito se criara e ganhara corpo: a humanidade entrara, após a Segunda Guerra, numa fase de sua história, desejável e irreversível, numa espécie de apocalipse, quando o leão e o cordeiro conviviam lado a lado na mais perfeita harmonia. Exatamente nesse instante o professor Juan Comas, reputado antropólogo espanhol exilado no México, pronunciou uma série de conferências na USP e na Escola de Sociologia e Política, alertando a todos os jovens ingênuos e otimistas para uma profecia: antes que o milênio terminasse, a humanidade entraria em violentos conflitos por causa de exaltações xenófobas, etnocêntricas, mescladas de radicalismo religiosos e raciais. Sua mensagem soou como blasfêmia e como blasfêmia permaneceu até que, perplexa, essa geração de ingênuos olhou um mundo convulsionado pelos mesmos ingredientes que embasaram as posições nazi-fascistas, mas com uma desalentadora novidade: esses ingredientes estavam também embutidos ou camuflados nos sistemas sociais tidos como igualitários e que se proclamavam e eram proclamados como vanguardeiros na preservação das justiças sociais, traduzidas também no respeito às identidades raciais e culturais.
Os porquês do "retorno" do racismo
Quais os fatores novos ou renovados que compõem essa cena étnica da atualidade? Pode-se citar, em primeiro lugar, a aproximação inédita de povos diferentes no mesmo espaço social e político, numa escala menor, porém só comparável ao da grande emigração do século XIX, processo de deslocamento populacional que envolveu cerca de setenta milhões de indivíduos. No século passado, as rotas de emigração iam da Europa para áreas então periféricas do mundo, ajudando a construir assim as modernas nações pluriétnicas de hoje, como o Brasil, Argentina, Estados Unidos, Austrália e tantos outros países de imigração. Agora, ocorre o inverso, ou melhor, agora ocorre também o inverso através da migração pan-européia, pan-americana ou, ainda, através da imigração transoceânica que leva populações da chamada periferia para o centro. Atrás desses deslocamentos e aproximações de povos e indivíduos estão fenômenos históricos como o desmantelamento de impérios coloniais, que levou os antigos colonizadores a abrigarem em suas fronteiras expressivas parcelas de grupos que optaram pela cidadania do Estado colonialista. Estão nesse caso a França, Inglaterra, Holanda, Bélgica e até mesmo Portugal e Itália.
Inclua-se, nesse processo, o fenômeno da emigração, legal e clandestina, de mão-de-obra e países menos industrializados para países pós-industriais, como ocorre, por exemplo, na Europa. Países como a França, Inglaterra, Alemanha e até Itália passaram de países de emigração no século XIX para países de imigração neste final de milênio. Na Ásia, o Japão, ao importar os dekasseguis, cria um inédito fluxo imigratório composto de mão-de-obra recrutada entre descendentes dos seus emigrantes espalhados por várias partes do novo mundo, em especial da América Latina.
É como se o Japão, dentro de um projeto histórico, lançasse fora os seus excedentes populacionais na transição dos séculos XIX-XX, deixando-os reproduzirem-se biológica e socialmente fora de suas fronteiras para, quase um século depois, recuperá-los em forma de mão-de-obra preferencial para um Japão pós-industrial.
É uma política de aliciamento de mão-de-obra no exterior que procura não colocar em risco a peça principal de seu mecanismo etnocêntrico: o cultivo do monorracialismo ou monoculturalismo como chave do progresso do país. Ao atrair, preferencialmente, para o seu parque industrial, os dekasseguis, o Japão procura diminuir os riscos de uma diferença entre nativos e os àdvenas, confiado na ascendência étnica comum. Os fatos se encarregaram de mostrar, pelo menos, dois pontos: o primeiro é que o Japão, como os países europeus, não sabem lidar com a diversidade ou com o diferente. Obsedada por um ideal monorracial, a sociedade japonesa segrega em espaços físicos e sociais os de fora, mesmo que estes seja os seus descendentes na diáspora. O segundo ponto é que os dekasseguis só têm em comum com os nativos as características biológicas, a começar pela prega mongólica, mas ostentam personalidades que se plasmaram sob outras experiências culturais. Não são japoneses mais, embora nos países de emigração sejam preconceituados como tais; são americanos, peruanos, mexicanos, brasileiros e assim por diante. Por suas características biológicas são alvo de estigmas, preconceitos, discriminações dentro da mais refinada manifestação de racismo.
Em síntese, esse fluxo migratório sofre o impacto de um racismo bidimensional. São preconceituados e discriminados, em maior ou menor grau, em seus países de nascimento pelas suas características raciais e são preconceituados e discriminados na pátria de seus ascendentes pelos seus atributos culturais e de classe. O dekassegui é a personificação bem-acabada do clássico homem marginal e marginalizado.
Outro fator que atua nesse quadro étnico atual está ligado ao que se pode chamar o redesenhamento do mapa-múndi, que fez com que, em poucos anos, grande parte do mundo europeu, consolidado há tempo, passasse por uma reviravolta até mesmo inesperado. Redesenhar mapas é um ato político ou geopolítico. Mas, em geral, constitui-se em poderoso elemento redistribuídos de populações, algumas com grande sentido de identidade, a partir da raça, da cultura, do território. Nestes esquemas redistribuidores de população reconhece-se facilmente uma prática racista: a de limpeza étnica, permeada de tensões, conflitos e violências de etnias contra etnias....
Nessa mesma linha de redesenhamento do mundo, situa-se o desmoronamento de nações aparentemente consolidadas pela história, como é o caso da União Soviética, que mostrou á opinião pública internacional povos e etnias politicamente dominados por sistemas hegemônicos que lhes tiravam a chance de cultivar a sua própria nacionalidade ou identidade. Essa identidades grupais sufocadas, ao explodirem, tentando se libertar, testemunharam que, em termos de manipulação do etnocentrismo, os países socialistas não estava tão distantes das nações nazi-fascistas que combateram e venceram. Apenas havia um silêncio cúmplice internacional sobre essa situação.
Finalmente, marcando essa cena estão os fenômenos de reativação dos estigmas contra etnias historicamente visadas: os judeus, os armênios, os ciganos. Juntem-se a esses povos estigmatizados tradicionalmente os novos preconceituados e discriminados: negros, hindus, árabes e até portugueses. Nos Estados Unidos, além do negro, a desqualificação alcança de maneira dramática os latinos (sem nuanças).
Há um tipo de reflexão que procura estabelecer relação direta entre esses fenômenos e a ascensão da direita ou o fortalecimento de um conjunto de idéias, à direita, que, xenófobas, intrinsecamente etnocêntricas, exaltam os valores nacionais e, em contraposição, repelem os valores e a convivência com os estrangeiros. Essa posição política ganha adeptos e se fortalece na medida em que encontra uma população nativa que se sente ameaçada, em vários planos, pela presença do estranho. Seria, entre tantos, os casos da França e de Israel. Nesse país uma direita belicosa estimula e aplaude atos políticos contra árabes, em que não estão ausentes as mesmas armas ideológicas, decalcadas no etnocentrismo, usadas pelos alemães contra os judeus.
Não se trata de criticar a relação entre o estímulo à prática racista e o pensamento e o poder, à direita, que aprecem empolgar o mundo neste final de milênio. É preciso, porém, deixar claro que a situação atual representa apenas uma etapa de uma escalada etnocêntrica contra estrangeiros, pelo menos desde a década de 60, em países como a França e Alemanha.