Tormento dos diferentes em nome da raça
A Europa descobre, chocada, que praticou
a eugenia até bem depois da II Guerra Mundial
Lizia Bydlowski
Uma febre de limpeza varreu a Europa e os Estados Unidos no começo deste século. Não das ruas imundas das grandes cidades, ou dos corpos pouco afeitos a banho dos cidadãos, ou das mãos antes das cirurgias. O que se propunha, em estudos recebidos com alvoroço mas, como o avanço do conhecimento da genética demonstrou depois, sem um pingo de sustentação científica, era a limpeza da raça, por meio da eliminação de traços humanos indesejáveis a chamada eugenia. Por eliminação, entenda-se esterilização: devidamente impedidos de ter filhos, os deficientes mentais, os criminosos contumazes e até os irremediavelmente pobres acabariam cedendo lugar aos vikings saudáveis, inteligentes e homogêneos. A teoria passou à prática, e, nos anos 30, diversos países já tinham aprovado leis de "higiene racial". Num deles, a eugenia passaria da esterilização ao massacre, e aí teria seu apogeu trágico e brutal: a Alemanha, onde, em seu nome, os nazistas puseram em marcha a máquina de exterminar judeus, ciganos, deficientes físicos e homossexuais. Com a derrota da Alemanha na II Guerra e a exposição dos horrores nazistas, pensava-se que o engodo da limpeza racial estivesse morto e enterrado. Não estava. Na semana passada, soube-se que Suécia, Noruega, Finlândia, Dinamarca, Suíça e Áustria continuaram esterilizando, discretamente, cidadãos qualificados de "baixa qualidade racial".
A Suécia é um país conhecido pela excelência de sua democracia e justiça social, mas esterilizou pelo menos 62.000 pessoas, em sua maioria mulheres, entre 1935 e 1976. Eram todos "voluntários" na letra da lei, mas os depoimentos contam história diferente. Maria Nordin, hoje com 72 anos, teve os ovários removidos aos 17. "Quando fui para a escola, tinha problemas de vista. Não enxergava a lousa, mas não tinha dinheiro para comprar óculos. Concluíram que eu tinha dificuldade para aprender e me mandaram para a escola de excepcionais", contou ela ao jornal Dagens Nyheter, que denunciou o assunto em reportagem especial de enorme repercussão. Para sair, já moça, exigiram que aceitasse a esterilização. "Assinei o papel, porque sabia que só assim sairia dali", disse Maria, a única dos cerca de 25.000 sobreviventes a aparecer para contar seu drama. Mesmo sem nome nem sobrenome, contudo, os casos citados no jornal são estarrecedores. Um menino foi esterilizado porque o julgaram "sexualmente precoce". Uma moça, por já ter três filhos e levar "vida ruim: é suja, usa esmalte vermelho e tem mau hálito". Tudo dentro da lei, que servia a três propósitos declarados: impedir a "degeneração da raça", "proteger" os portadores de "genes fracos" e, por último, poupar dinheiro. O Estado do bem-estar social, que começava a se instalar e a produzir resultados tão bons em tantas áreas, não queria ter de gastar recursos com quem considerava incapaz.
O episódio sueco abriu um cofre de segredos sujos. Descobriu-se que nenhum dos países nórdicos, tão ciosos das liberdades individuais e celeiros de causas politicamente corretas, aboliu a esterilização para "limpeza da raça" depois da II Guerra. Ao contrário: ela continuou sendo praticada até os anos 60, quando os casos enfim foram diminuindo até a extinção das leis, sem alarde, na década seguinte. Na Dinamarca, 11.000 pessoas foram esterilizadas entre 1929 e 1967. Noruega e Finlândia admitiram, cada uma, 1.000 casos. Na enxurrada de críticas e denúncias, o escândalo chegou à Áustria onde, segundo o Partido Verde, 70% das deficientes mentais são esterilizadas até hoje. Na Bélgica, uma das vítimas, Ingrid van Butsel, 40 anos, contou como foi obrigada a se submeter à esterilização quando decidiu se casar, em 1985: "Disseram que eu era deficiente mental, não tinha condições de criar filhos e que ou aceitava a esterilização, ou seria internada num hospital psiquiátrico". Na Suíça, o historiador Hans Ulrich Jost desencavou uma lei de "higiene racial" promulgada em 1928 no cantão de Vaud, em vigor até vinte anos atrás, que, segundo ele, serviu de modelo para Hitler. Seu maior incentivador: o psiquiatra Auguste Forel, o retrato na nota de 1.000 francos suíços.
A Suécia apostou desde cedo na eugenia em 1921, criou o primeiro Instituto de Biologia Racial. Logo foi seguida por uma legião de entusiasmados faxineiros raciais, entre eles os Estados Unidos, onde, segundo o historiador Philip Reilly, 60.000 pessoas foram esterilizadas à força na década de 30. Um dos maiores tentos dos eugenistas americanos foi a lei de imigração de 1924, que limitava com rigor a entrada de europeus do sul e do leste, considerados "inferiores". O rótulo surgira anos antes, a partir de uma experiência feita com imigrantes, em moldes típicos do preconceito étnico, do racismo e da falta de bases sólidas da eugenia. Exaustos, assustados, sem falar uma palavra de inglês, os recém-chegados eram submetidos a um interrogatório a que, obviamente, não conseguiam responder. Diagnóstico: "débeis mentais". Os testes chegaram ao absurdo de concluir, em 1917, que 79% da imigração italiana era composta de idiotas.
Sonho nazista Mesmo carecendo de fundamento científico, numa época em que pouco se sabia sobre genética em geral, a eugenia arrebanhou adeptos poderosos. Na Alemanha nazista, virou programa de governo e está na origem de seus piores crimes: uma das primeiras medidas do chanceler Adolf Hitler, ao assumir o poder, em 1933, foi implantar a esterilização a toque de caixa de portadores de "debilidade mental congênita, esquizofrenia, loucura circular (maníaco-depressiva), epilepsia hereditária e alcoolismo grave". Como o objetivo era criar uma raça superior para dominar o mundo, também se perseguiram pessoas de "raças mistas ou indesejáveis". Da esterilização forçada os nazistas passaram ao extermínio puro e simples. Terminada a guerra, eugenia era sinônimo do mal. Quem continuou a acreditar nela e a praticá-la, como a Suécia, o fez na mais absoluta surdina.
O jornalista Maciej Zaremba, autor da série de reportagens, conta que encontrou as informações de que precisava nos bem documentados arquivos suecos, mas não achou uma palavra sobre o assunto nos livros de história do país. A ministra de Assuntos Sociais, Margot Wallström, classificou a prática de "bárbara" e garantiu que os sobreviventes serão indenizados. Mas, como a maioria da população de um país-modelo no cuidado com os mais necessitados, não soube responder por que um programa como esse durou tanto tempo. "Não sei dizer. Pertenço a outra geração política. É impossível explicar", disse a ministra.
Veja, 1997