A face dissimulada do preconceito no Brasil
Mito da harmonia pluralista no Brasil esconde intolerância social
MICHAEL KEPP
(Folha de São Paulo, 25 de agosto de 1996)
Preconceito é como um camaleão: às vezes engana o olho. Pode ser explícito, como uma suástica, ou adocicado em músicas racistas escritas por palhaços ingênuos. Ou pode ser camuflado em expressões e atos implícitos, de um modo tão sutil, que passa despercebido.
Quanto mais racial ou etnicamente dividida a sociedade, mais explícito o preconceito. No Brasil, o mito da harmonia pluralista, às vezes, suaviza o preconceito explícito, fazendo com que fique mais lúdico.
Vimos isto em piadas e brincadeiras de mau gosto. "Veja os Cabelos Dela", a música brincalhona, censurada, do Tiririca, é o mais recente exemplo desse racismo lúdico, porém, óbvio e ofensivo.
O mito da harmonia pluralista, em disfarçar as tensões sociais, também permite que se prolifere aqui um outro tipo de preconceito, bem camuflado.
Esse preconceito dissimulado aparece, muitas vezes, na tentativa condescendente de elogiar para compensar a desvantagem de um grupo marginalizado. Essa tentativa, entretanto, nunca alcança a finalidade compensatória.
Os brasileiros, especialmente os brancos que estabelecem a norma social, desenvolveram uma prática singular de preconceito dissimulado.
Uma vez, uma secretária branca me disse: "Vá falar com a morena lá em cima." Quando eu subi, vi que não se tratava nem de uma mulata; era uma negra. A secretária, em vão, tentou compensar a desvantagem da negra, branqueando a cor da sua pele. Essa atitude, porém, implica que ser uma negra é uma vergonha.
A alta sociedade brasileira, numa simulação de harmonia racial, às vezes, convida modelos e atores negros para suas festas. Quando isso acontece, os méritos deles (e só deles) destacam-se como razões para o convite. Assim se justifica a presença deles num grupo privilegiado que condescende em abraçá-los como "negros de almas brancas".
Carmen Mayrink Veiga se vê como "uma branca de alma negra". Em entrevista recente à "Veja", ela disse: "Penei com termos horrorosos como grã-fina e socialite. Nem sei o que é isso. Sempre trabalhei como uma negra". Sua queixa de que tinha que se rebaixar à indignidade do trabalho "como uma negra", em vez de elogiar o negro, o insulta.
Há um hábito preconceituoso de focalizar a condição do negro, até para fazer um elogio. Isabel Fillardis, por exemplo, é "uma negra bonita" enquanto Vera Fischer é só bonita.
Os brasileiros exibem uma atitude semelhante em relação aos judeus. "Você nem parece judeu!" é um jeito comum de referir que a pessoa é, surpreendentemente, mais generosa do que o comum dos judeus, estereotipados como "usurários" e "avarentos", segundo a definição popular que se encontra registrada no "Aurélio".
O preconceito brasileiro contra gays é bem explícito. "Veado!" é um xingamento que se tornou comum para castigar qualquer um que "enche seu saco". Também existe preconceito dissimulado contra os gays.
Quando dois amigos do mesmo sexo são inseparáveis, logo vem a insinuação que "algo poderia estar rolando".... O preconceito dissimulado contras as mulheres também existe no Brasil. Por exemplo, se uma mulher alcança uma posição elevada, é relativamente comum que, numa cerimônia de recepção formal, seja elogiada pela beleza, pela elegância, ou por outras qualidades "femininas", e não pelos seus méritos profissionais.
Um outro exemplo desse preconceito pode ser encontrado no estereótipo da mulher carente. É o que aconteceu numa charge recente de Miguel Paiva, no "Jornal do Brasil", logo depois da promulgação da lei do concubinato. Na charge, um homem relaciona os nomes de 17 ex-parceiras e comenta: "Tô falido!"
Numa sociedade míope demais para ver por meio do mito da harmonia racial, o preconceito dissimulado também passa despercebido. E, quanto mais aceita e cotidiano se torna, mais automático fica. Quem pensa duas vezes antes de usar a expressão "programa de índio" ou a palavra "judiação"?
Essa miopia dá lugar, também, ao preconceito mais explícito. Por exemplo, numa capa recente da revista "Mad", um menino de rua negro, desenhado como se fosse um chimpanzé, está bebendo cola de sapateiro. A manchete diz: "É isso aí, Macacada!"
Os brasileiros, às vezes, revelam seus preconceitos ao negá-los. Por exemplo: "Eu não tenho preconceito, mas detesto veado". E, após atitudes desses tipos, alguns usam a expressão "sem preconceito!" como desculpa camuflada.
O brasileiro tem dificuldade de enxergar os preconceitos porque são "suavemente ideológicos" e, muitas vezes, não-personalizados. O mesmo brasileiro que diz "nem parece judeu", ou o mais explícito "pára de ser judeu!", poderia também gabar-se: "Alguns dos meus melhores amigos são judeus".
Os preconceitos são acompanhados por uma variedade de justificativas. Entretanto são sempre baseados na ignorância e, em sua maior parte, são exibidos por oportunistas que buscam alvos fáceis.
Esses oportunistas argumentam que, se os negros, os judeus e os homossexuais fazem humor à custa de seus próprios grupos marginalizados, todos têm "aval" para fazer o mesmo. Esse argumento pretende justificar-se em estereótipos como "os judeus se tornam os piores anti-semitas".
A falha desse argumento covarde é que a autodepreciação é, às vezes, uma defesa prévia contra os preconceitos alheios. É a estratégia "eu insulto a mim mesmo antes que você possa me insultar".
Diante dos sentimentos ambíguos dos brasileiros em relação aos americanos, eu sempre me apresento aqui como "um gringo", não como "um estrangeiro".
Entendo, por isso, a possível desconfiança contra uma opinião "gringa" a respeito dos preconceitos locais. A desconfiança e a insegurança refletem as tensões sociais subjacentes a qualquer sociedade pluralista. Essa pluralidade é sempre enriquecedora. Este olhar de fora, ainda que comprometido pela subjetividade, acrescenta a essa riqueza. Sem preconceito!
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Michael Kepp é correspondente no Brasil do jornal dominical "The Observer" de Londres e da Fairchild Publications