Aloisyo Biondi

Revista Caros Amigos

Edição de outubro/1999

Não é exagero, não. O transatlântico do neoliberalismo está fazendo água, e seu naufrágio certamente vai se acelerar, nos próximos meses, com as turbulências na economia dos EUA e declínio do dólar como “moeda forte” mundial. O mês de setembro foi pródigo em más notícias para os neoliberais, com o governo Clinton, FMI e Banco Mundial à frente. Os relatórios anuais do Banco Mundial e Unctad (organismo das Nações Unidas) demoliram os principais mitos da “onda neoliberal”. Eles mostraram, com estatísticas, os efeitos devastadores das teorias sobre as vantagens da abertura de mercado e redução do papel do Estado, deixando-se que as forças “do mercado” resolvam tudo. Tudo o que os críticos diziam ficou comprovado com números: os países ricos foram altamente beneficiados com a expansão do comércio mundial, isto é, a invasão dos mercados dos países emergentes; e, em nível da população, tudo o que se viu foi um horrendo aumento no número de pobres e miseráveis na face do planeta Terra. Para dissabor dos neoliberais, ficaram totalmente desmentidas, também, as previsões feitas inclusive por economistas famosos, de que os países que não seguissem os “conselhos” de “liberalização” dados pelo FMI estavam condenados a não receber investimentos externos, nem empréstimos internacionais, e por isso mesmo mergulhar em imensa crise. A Malásia, que desde a crise asiática do final de l997 estabeleceu controles sobre as importações e a remessa de dólares para o exterior, teve um desempenho econômico brilhante - como o próprio FMI foi obrigado a reconhecer. Mais disgusting ainda, a Índia e a China, que nunca aceitaram as propostas de “abertura” e mantiveram as Importações sob controle, continuaram a apresentar altíssimas taxas de crescimento.
FIM DA LAVAGEM CEREBRAL O caso da China, aliás, merece um pequeno mas importante parêntesis, porque ele ajuda a entender o nível de manipulação a que o noticiário internacional está submetido para exaltar o modelo neoliberal - e, óbvio, o seu beneficiário, os EUA. Desde o ano passado, o noticiário, artigos e análises fornecidos por agências ou transcritos de publicações estrangeiras afirmavam que a China caminhava para uma grande crise. A revista inglesa The Economist, que era (e-r-a) considerada a mais importante e respeitável publicação especializada, chegou ao cúmulo de fazer uma reportagem de capa apontando o fim da prosperidade da China, que vinha crescendo espetaculares 8 por cento ao ano, ou três a quatro vezes a taxa de crescimento dos países ricos. Pois a China cresceu 7,8 por cento em l998, e no último trimestre expandiu-se à taxa de 7,3 por cento. Mas o desgosto dos neoliberais não parou por aí. Na mesma trajetória da Malásia, Índia, China, Também a Coréia do Sul vem dando pinotes, como o crescimento de 20 por cento em sua produção industrial - e a Coréia do Sul rejeitou grande parte das imposições do FMI e banqueiros internacionais (reduziu rapidamente as taxas de juros após a crise, por exemplo). Em resumo: o noticiário manipulado dos últimos anos previu desastres para quem não seguisse o receituário neoliberal. E exaltou a prosperidade dos EUA, como “prova” das vantagens do modelo (na verdade, a prosperidade norte-americana teve outras causas, como se verá adiante). Aconteceu o contrário. O neoliberalismo passa a enfrentar uma onda de oposição ao redor do mundo . Há chances de que ela chegue até o Brasil ? Pelas mãos do governo e seus “pensadores”, certamente não. Mas o debate vai intensificar-se, e a sociedade finalmente ficará livre da “lavagem cerebral” dos últimos anos e opinar conscientemente. Essa “virada” será facilitada pela crise que finalmente começou a se manifestar claramente, a partir da segunda quinzena de outubro, para a economia norte-americana. Com ela, enfraquece-se a posição dos dois principais cúmplices das aberrações cometidas pelo governo FHC, a pretexto de adotar o modelo neoliberal e “modernizar” a economia. Isto é, o governo Clinton e o FMI.
O DECLÍNIO DOS EUA A tão decantada prosperidade norte-americana dos últimos anos se baseou em três fatores principais: queda violenta dos preços do petróleo, do qual os EUA são um grande importador; queda violenta nos preços de matérias-primas e minérios igualmente importados; e, finalmente, como arma principal, a abertura de mercados, de países desavergonhados como o Brasil, para as exportações e multinacionais dos EUA. J· no ano passado, era possível prever que l999 marcaria o final desse ciclo (veja entrevista em Caros Amigos no 19, outubro de 1998).
Primeiro motivo para a mudança: o aumento das exportações, para os EUA, dos países que desvalorizaram suas moedas com a crise de l997/98 (a única exceção é o Brasil de FHC/Malan, obviamente, porque as multinacionais aqui instaladas obedecem suas matrizes, e elas não permitem que as filiais locais exportem). Com essa disparada nas importações, os EUA passaram a enfrentar saldos negativos cada vez maiores em sua balança comercial - que saltaram da faixa dos l5 a l8 bilhões de dólares por mês para 2l bilhões de dólares em junho e, finalmente, 25 bilhões de dólares em julho e agosto.
O gigantismo desse rombo, podia-se prever, finalmente colocaria em xeque o prestígio (e o preço) artificial de que o dólar desfrutou ao longo de décadas, permitindo que os EUA comprassem mercadorias, bens e empresas/negócios em outros países simplesmente emitindo mais dólares, isto é, mero “papel pintado”, como dizia De Gaulle já na década de 60. Com o dólar despencando diante do iene japonês, e a alta dos preços do petróleo ameaçando ampliar ainda mais o rombo nas importações, as bolsas de valores norte-americanas entraram em fase de maré vazante. Com a queda no mercado de ações, desaparece um dos principais motivos de euforia do consumidor norte-americano, que embarcou em uma “corrida às compras” nos últimos anos, fiado nos lucros prometidos pelos papéis - e assim garantiu altos níveis de venda à indústria e ao comércio. Os problemas do país-símbolo do marketing neoliberal se contrapõem a uma temporada de estatísticas econômicas positivas para a Europa, onde a união na área econômica e a criação do euro tiveram um significado muitíssimo mais profundo do que os meios de comunicação transmitiram à opinião pública. Juntas, as duas iniciativas podem ser consideradas como o fato histórico mais importante dos tempos recentes, capaz de influenciar o destino do planeta Terra nas próximas décadas. A união econômica européia e a criação do euro abalam o domínio (imerecido) do dólar e os planos de hegemonia absoluta dos EUA, que se valeu da gazua neoliberal para colocar de joelhos, ou de quatro, países como o Brasil. Com todos os seus principais países governados a esta altura por partidos de esquerda, a Europa tem rejeitado os principais mandamentos da cartilha neoliberal. Pode, assim, ser considerada uma “aliada” na rejeição à política econômica adotada pelo governo FHC, sob as ordens do FMI/governo Clinton. Isto não significa, porém, nenhuma garantia de que os interesses da nação brasileira estarão defendidos, se nós próprios não voltarmos a defender um projeto nacional. Basta ver o avanço dos grupos empresariais espanhóis, portugueses, italianos e, sobretudo, os franceses (ah, os amigos da Sorbonne...) para entender que a desnacionalização comprometedora do futuro não tem beneficiado apenas as multinacionais e bancos dos EUA. A crise do dólar e da economia dos EUA atrapalha os planos de transformar o Brasil em colônia norte-americana. Mas, mon Dieu, alguém fora de Brasília quer ser colônia da Europa? Aux armes, citoyens.

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