Espírito hacker é neoliberal e carreirista

RODOLFO LUCENA

(Jornal "Folha de São Paulo", 13/02/2000)

Quem pode mais chora menos, quem não tem competência que não se estabeleça, o mercado é livre, e que vença o melhor. Essas pérolas parecem ser a base do pensamento dos hackers, os piratas da era eletrônica. Não por acaso, os aforismos também resumem -ainda que talvez grosseiramente- a ideologia neoliberal.

Os ataques da última semana a alguns dos mais movimentados sites da Internet trouxeram de volta a discussão sobre o espírito hacker. As ações não seriam crimes, mas verdadeiros manifestos antiestablishment.

Nada mais ilusório.

O hacker reproduz, à sua maneira e em seu ambiente, a luta que ocorre na sociedade real, para ganhar mais, para aparecer mais, para ser o número 1.

Ele não mede as consequências nem se preocupa com eventuais prejuízos que suas ações causem a outras pessoas -na semana passada, nos EUA, a Internet toda experimentou lentidão por conta da sequência de invasões.

O fato de que, às vezes, alguns ataques tenham viés "politizado", "oposicionista", não muda o caráter conservador e retrógrado da ação, cujo objetivo último é mostrar o poder de alguém sobre outro, respeitando-se apenas a lei do mais forte, do mais esperto.

Todos que acompanham a Internet e os hackers conhecem, por exemplo, a história (ou será lenda?), do adolescente norte-americano que usou a rede para se vingar de um professor que lhe deu notas más. O garoto usou o número do cartão de crédito do mestre, surrupiado eletronicamente, para encomendar pela Internet um caminhão cheio de vasos de privada, entregue na casa da vítima.

Parece divertido, rebelde. Mas é abusado, criminoso. Tão criminoso quanto roubar códigos para fazer telefonemas interurbanos ou invadir bancos e fazer transferências irregulares de fundos.

E os hackers que fazem essas coisas não estão querendo ficar fora do esquemão. Ao contrário, pulam a qualquer convite para se inserir na sociedade.

Já se contam às mãos-cheias os hackers que integram o setor de segurança de empresas de informática, os que ganham dinheiro escrevendo livros sobre proteção na Internet. Não há notícia de que tenham tido problemas ideológicos ou dramas de consciência para se incorporar de mala e cuia ao establishment.

Verdadeiramente, nunca estiveram fora do sistema. São apenas uma expressão mais violenta e desregrada do indivíduo, assim como a empresa monopolista é uma vertente mais violenta e desregrada das corporações.

O hacker não hesita frente a nada para afirmar sua capacidade de invasão, a empresa monopolista não se furta a práticas comerciais criminosas para ampliar seu poder econômico.

Não há romantismo nem rebeldia. Mas sim o uso das ferramentas disponíveis para o benefício próprio. E que vença o melhor. 1