Filme dissolve horror de "Traumnovelle"

BERNARDO CARVALHO


(Jornal "Folha de São Paulo", 05 de setembro de de 1999)



Há sempre um pouco de burrice no lugar-comum de quem diz que "o livro é melhor que o filme". Mais original, provocativo e cômico seria alardear sempre o contrário. Godard já disse que as boas adaptações são feitas com base em livros ruins, e que bons livros dão em geral péssimos filmes. Embora também seja do próprio Godard a máxima de que "a cultura é a regra e a arte é a exceção", que derruba a primeira premissa.
A história da adaptação do último filme de Stanley Kubrick, "De Olhos Bem Fechados", feita pelo cineasta e seu roteirista, Frederic Raphael, com base na pequena obra-prima de Arthur Schnitzler, "Traumnovelle" ("Novela Onírica"), joga uma nova luz sobre a questão, dando munição não só a quem procura confirmar a regra de que a arte é a exceção (o filme de Kubrick consegue, no balanço final, sobrepor-se por diversas razões às infelicidades da adaptação), mas também a quem repete o lugar-comum de que o livro é melhor que o filme, o que nesse caso é incontestável.
Num artigo publicado pela "The New Yorker" e extraído do livro em que relata seu encontro com o cineasta, Raphael consegue chegar ao cúmulo da presunção e da burrice ao dizer de boca cheia que a novela de Schnitzler é "muito literária" e "pouco convincente", porque nela "não há muita progressão". O roteirista fala obviamente em nome de uma eficiência da comunicação, uma eficiência dramatúrgica baseada em parâmetros hollywoodianos, o que acaba confirmado, na prática, pelas modificações que sua adaptação fez em relação ao enredo original, sobretudo no que diz respeito à resolução final do filme e a sua explicação.
No mesmo artigo, relatando seu primeiro encontro com Kubrick, uma espécie de teste ou sabatina, depois de ler a novela que lhe fora enviada pelo cineasta sem o título ou o nome do autor, Raphael deduz que, seja lá quem for o escritor, deve ter lido Freud, e fica imaginando (com um certo desdém em relação à novela, como se ela fosse simples ilustração da teoria psicanalítica) o que o pai da psicanálise deve ter pensado ao lê-la.
Freud foi contemporâneo de Schnitzler (ambos viveram na Viena da virada do século, berço da modernidade) e admirava sua obra a ponto de lhe confessar, numa célebre carta, o temor que a leitura dos contos, novelas e peças do escritor pudesse de alguma forma interferir e influenciar seus pensamentos psicanalíticos, tal era a proximidade dos assuntos que os dois abordavam por caminhos tão diferentes.
Schnitzler, por sua vez, e ao contrário do que parece supor o roteirista de Kubrick, não tinha grandes interesses pela simbologia onírica da teoria freudiana, exposta principalmente em "A Interpretação dos Sonhos" (1899), que ele considerava arbitrária. Seu campo de interesse não era o dos trâmites entre o inconsciente e o consciente, mas um estado intermediário (mais trágico, artístico e literário) em que mesmo depois de acordado tem-se a mais perfeita consciência de que se continua a sonhar. Um espaço e um tempo míticos em que Eros e Tanatos se confundem, um estado nebuloso de pesadelo que é a própria vida. "Traumnovelle" é resultado desse interesse.
Grande parte da literatura austríaca do início do século, a começar por Robert Musil e chegando até Herman Broch, se depara com a crise do sujeito e a consciência de uma identidade fragmentada, fruto em boa parte do advento da psicanálise. A realidade não oferece mais a garantia de uma objetividade, o mundo subjetivo transborda para o lado exterior.
Schnitzler testemunha essa passagem e seus textos são reflexos de um mundo de onde, ao fragmentá-lo, a razão baniu os antigos mitos unificadores, abrindo em contrapartida novas frestas por onde se manifestam os últimos vestígios de uma comunicação com o desconhecido e o sobrenatural antes representada pelas religiões: a loucura, o sonho e o sexo. Daí que em seus textos o sexo esteja diretamente ligado à morte.
Em "Traumnovelle", o sexo é revelado num jogo amoroso com a morte. A certa altura da novela, o protagonista se lembra de um livro que lera havia anos em que um rapaz, junto ao leito de morte da mãe, é seduzido e praticamente violentado por uma amiga da morta. E não é por acaso que o pesadelo sexual em que vai se embrenhar põe em risco a sua própria vida, revelando, como no mito banido pela razão moderna, um universo onde não há fronteiras entre real e representação e onde o sonho tem consequências reais. É essa ambiguidade que se perde de certa forma no filme, quando o roteiro resolve explicar ao final, como num romance policial, todas as conexões e coincidências que na novela, como num sonho, ficavam sem resposta.
O terrível e extraordinário de "Traumnovelle" é justamente a ausência de explicações, essa "falta de progressão" de que se ressente, como se fosse deficiência, o roteirista que vê a vida à sua volta com base em padrões hollywoodianos. Ao fim do livro, o leitor tem a sensação estranha de que o mundo é um pesadelo de que não se pode acordar, o que faz de Schnitzler um herdeiro direto, na modernidade, dos contos de E.T.A. Hoffmann. Real e representação se confundem; a imaginação, os desejos e as pulsões têm poder e consequências reais.
"De Olhos Bem Fechados", com sua eficiência americana de uma conclusão "bem amarrada", não deixa frestas para a manifestação desse horror inexplicável. Todos os personagens terminam se encaixando numa trama malévola, mas prosaica, (ordinária e racional como precisa ser toda explicação) da qual foi apagado qualquer resquício de ambiguidade e de um consequente mal-estar do espectador diante da ameaça do desconhecido. Agora, ele pode estar certo de que o filme a que acabou de assistir tem realmente progressão (a história realmente aconteceu) e que, tendo realmente acabado, ele, à imagem do protagonista, também pode seguir em frente, aliviado, com suas pequenas certezas.


A OBRA
"Traumnovelle" - (Novela Onírica), de Arthur Schnitzler, não tem tradução no Brasil. A versão inglesa, "Dream Novel" (Penguin Books), pode ser encomendada à Livraria Cultura (0/xx/11/285-4033).

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