Mas por que o horror faz tanto sucesso?

Contardo Calligaris

Jornal "Folha de São Paulo", 04/11/1999



Domingo passado foi dia das bruxas, o Halloween. Na véspera de todos os santos, festejamos todos os demônios. O Halloween é celebrado nos EUA desde o século passado. Recentemente, a festa se civilizou. No começo, a noite das bruxas era perigosa -os vândalos ficavam à solta pelas ruas, quebrando objetos e ateando fogo por onde passavam. Agora as crianças tomaram conta -elas só apertam a campainha e pedem balas, ameaçando com passes de mágica.
O Halloween é um sucesso da globalização. O cartão-postal do subúrbio americano decorado com abóboras ocas e iluminadas se impôs pelo mundo afora, ajudado pela imensa produção hollywoodiana de filmes e vídeos de horror. Hoje, até Paris, berço de resistência antiamericana, vira abóbora no fim de outubro.
Nos EUA, Halloween é também um sucesso turístico. Percorrer as ruas residenciais nesta estação é um programa: no meio dos gramados aparecem espantalhos, bruxas, tumbas falsas com esqueletos. Além disso, há inúmeras paradas de Halloween e outras manifestações diabólicas.
As salas de cinema fazem eco às ruas decoradas macabramente. A semana é reservada à estréia de filmes de horror. A coincidência com o Halloween é um argumento de propaganda, como se a data embruxasse o filme, testemunhasse sua autenticidade.
Mas, apesar de festas e fantasias, Halloween não é Carnaval. Pois a risada com horror é sempre verde, ou cinza.
Este ano, fomos às fontes: passamos o dia em Salem, que ficou na história e no cinema por causa das bruxas. De 1691 a 1696, os habitantes de Salem viveram no terror. Era o medo de se descobrir possuído pelo demônio e ser rejeitado pela comunidade. Ou, pior, de descobrir que isso acontecera com pessoas próximas, mulher, marido ou filhos. A cidade mandou 19 pessoas para a forca e quase 200 para a cadeia.
Salem explora com sucesso seus terrores passados. Há percursos de visita bruxo-histórica. Ou então o museu das bruxas, que oferece uma reconstrução da terrível história por meio de quadros animados em uma sala escura -frisson garantido.
Na semana que antecede o Halloween, a cidade propõe atrações extraordinárias: surgem (como em muitos lugares dos EUA neste período) uma série de casas do horror (espécie de trens fantasmas para adultos a pé e no escuro), espetáculos em casas mal-assombradas, exposições do truculento e do paranormal. O centro da cidade é fechado ao trânsito, para permitir o passeio cerrado das fantasias: diabos, bruxas, mortos-vivos, fantasmas, "freddy kruegers", vampiros etc.
Constata-se, em suma, que hoje o horror é um sucesso de massa. O medo é uma emoção antiga e útil. Sem ele, como notava Darwin, não saberíamos quando fugir e a espécie estaria em maus lençóis. Também monstros e fantasmas povoam o imaginário ocidental desde a Antiguidade. Mas o terror se torna uma forma de entretenimento só com a modernidade, a partir da segunda metade do século 18. Desde então seu sucesso só cresce. Por que será?
A modernidade nasce com uma dupla inspiração: confiança na realidade empírica e confiança em nossa razão. Ambas deveriam nos proteger de terrores sobrenaturais, mas não é o que acontece. Por um lado, nós vivemos como sujeitos racionais, pensantes e, nessa medida, espirituais e etéreos. Por outro lado, acreditamos que somos corpos e nada além de corpos.
Essa dualidade de corpo e alma certamente ajudou a encarar nossa mortalidade. Pois, contra a fragilidade da carne, podemos acreditar na eternidade do espírito ou da razão. Console-se quem puder.
Ora, essa dualidade consoladora está em crise: nos identificamos cada vez mais com nossos corpos. É uma conquista moderna: reduzidos ao corpo, podemos controlar melhor nossa subjetividade -um cooper aqui, uma pílula ali, uma plástica, um regime. Será que viveremos 200 anos? Em contrapartida, o caráter perecível de nossos corpos se torna uma fonte inevitável de horror. Pois o corpo que envelhece, adoece, se deforma e enfim apodrece não é um apêndice acidental de nosso espírito ou de nossa razão. Essa matéria que se deteriora somos nós mesmos. Em suma, é legal ter descoberto que somos corpos. Agora, um corpo é sempre um cadáver em potência.
As ficções de horror lidam exatamente com isso: elas são a expressão do debate moderno sobre o que é um sujeito.
Nada de estranho nisso. A novela, por exemplo, é um repertório cultural dos afetos. Sabemos como amar, odiar etc., também porque a ficção inventa e oferece modelos do amor e da paixão. Do mesmo jeito, o conto ou o filme de horror são nossa sabedoria metafísica comum. É no gênero horror que popularmente a modernidade se pergunta: somos espíritos, corpos ou mentes?
Só considerem. Drácula tem alta linhagem, mas não consegue ter corpo suficiente para circular de dia. Frankenstein tem tantos corpos que nem consegue ter nome próprio. Freddy Krueger existe nos sonhos, mas mata na realidade. Outro não morre nunca porque já está morto. Outro ainda é tão etéreo que atravessa as paredes, mas consegue dar pauladas nas pessoas. De que mais precisamos para filosofar?

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