A globalização do ressentimento
Marilene Felinto
(Jornal "Folha de São Paulo", 13 de maio de 2001)
Hora de passar o pires, de sair por aí exigindo de cada padeiro português que ele nos dê o pão grátis, porque ele tem para conosco uma dívida histórica de exploração, de escravidão.
Se é verdade que as nações em desenvolvimento pretendem transformar "reparação" e "indenização" nas palavras-chaves do fórum da ONU sobre racismo, a ser realizado este ano na África do Sul, o espetáculo será mesmo imperdível.
No caso brasileiro, a imagem mental que o senso comum vai logo criar é essa de acertar as contas com a ex-Coroa, de trazer de volta o nosso ouro. De fato, parece que os alvos principais das exigências de compensação são a Europa, os Estados Unidos e o Japão -o conhecido embate entre os hemisférios Norte e Sul, entre metrópoles e ex-colônias.
Os povos do Sul -índios, negros, indianos, aborígenes australianos e seus descendentes- devem pensar assim: se os judeus podem, por que nós não podemos? Pedem a mesma indenização, moral e financeira, que os judeus já conseguiram de seus algozes europeus, a Alemanha no início da fila.
Nada disso é novidade. Já não é de hoje que o europeu, outrora herói da conquista das Américas, tornou-se o seu demônio; e que as vítimas, que não podem ser trazidas de volta à vida, são canonizadas.
O debate sobre a necessidade de reparação pelos erros do passado, pela injustiça da escravidão -segundo Boris Fausto, estima-se que entraram só pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos africanos entre 1550 e 1855-, pela segregação ditada em lei, como aconteceu nos Estados Unidos até os anos 60 ou na África do Sul do apartheid, não é assunto novo.
A novidade agora parece ser a globalização da exigência, sua apresentação em bloco num congresso da Organização das Nações Unidas.
Considerando que os modelos de cobrança judeu e "afro-americano" não se aplicam a contextos étnicos mais complexos como o brasileiro, ou a fatos históricos perdidos no tempo como a matança dos índios sul-americanos pelos espanhóis (fatos não tão frescos na memória como a Segunda Guerra), o que se vai assistir é, de certo modo, à globalização do ressentimento.
Li outro dia, em algum lugar, essa idéia de que a globalização -as áreas de livre comércio, as "uniões européias" -, ao favorecer o deslocamento desordenado de mercadorias e produtos, só serve para espalhar vírus mundo afora, de um continente para outro, de um país para outro, da vaca louca à febre aftosa. Os ressentimentos estariam passando pela mesma espécie de contaminação.
É claro que o fórum internacional sobre racismo não vai chegar a esse extremismo de identificar quem é quem no acerto de contas: quem paga, quem recebe. No Brasil, a tarefa seria inútil: como distinguir, aqui, quem é branco puro de quem é negro puro? E a imensa maioria de miscigenados? E os índios? Também teriam direito à indenização? Não é todo mundo aqui, em parte, português?
É claro que o fórum não vai cair nesse debate estéril. Se caísse, teria ainda de definir e classificar cada crime de escravidão ou de racismo de acordo com cada cenário específico.
Há quem lamente não ter existido no Brasil uma segregação mais "hard core" ("barra pesada"), à la americana, à la apartheid -assim a discriminação se daria às claras, sem máscaras, e os negros preservariam sua cultura, sua raça, e se manteriam unidos, solidários, sem se dispersarem em gradações de mulatos ou morenos.
Os adeptos dessa teoria consideram que o racismo brasileiro, "assimilacionista" -fundado na miscigenação, afinal aqui, como observa Darcy Ribeiro, a mestiçagem nunca foi punida, mas louvada, as uniões inter-raciais nunca foram tidas como crime nem pecado-, disfarça e mascara a discriminação.
Os adeptos dessa teoria certamente endossam a globalização do ressentimento e estarão dispostos a adotar qualquer modelo de reparação (do indenizatório judeu ao "afro-americano" da ação afirmativa, das cotas), contanto que funcione.
No caso brasileiro, essa postura é um equívoco ridículo. É nela, aliás, que se baseia a tendência majoritária do chamado "movimento negro brasileiro", um agrupamento de lúmpen-radicais que não consegue convencer ou comover nem mesmo os negros, o alvo de sua doutrinação.
O apelo da miscigenação é mais forte e muda as coisas para melhor -bom mesmo é ser brasileiro e miscigenado.
Quaisquer que sejam as conclusões tiradas do fórum da ONU sobre racismo, a mensagem principal estará dada: as periferias guardam séculos de raiva acumulada, dos subúrbios de Washington, nos Estados Unidos, às favelas brasileiras -e é na periferia que estão os negros, sinônimos de pobres.
Um negro ou um mulato nascidos no Brasil, que trabalharam e trabalham de sol a sol na labuta sem trégua de construir um país, sempre valeram menos do que um estrangeiro branco que tenha se instalado aqui, comprado terras, virado colarinho branco que a tudo e a todos compra do alto de seu status social.
Herança da Lei de Terras, criada duas semanas após o fim da escravidão, para assegurar que as terras do governo não fossem mais doadas, mas sim compradas, protegendo-as dos imigrantes estrangeiros que viriam, então, "substituir" a mão-de-obra escrava.
Aqui a história não está na cor da pele: está na propriedade. É preciso distribuir terras e renda -é preciso tomar a terra e a riqueza a que os negros, mulatos, índios e pobres têm direito histórico. É preciso educar, aplicar injeções de ciência, de conhecimento, de esclarecimento -dos livros escolares à cabeça dos donos da mídia, é preciso repetir sem parar o que os contadores do genoma humano já demonstraram: que apenas uma vírgula genética diferencia um homem branco de um homem negro; de resto, mais semelhantes entre si do que dois brancos entre eles.
O Brasil só não é uma democracia racial porque não é uma democracia social. Como dizia Darcy Ribeiro, "a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, e ainda é, a conquista de um lugar e de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. As atuais classes dominantes brasileiras, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos, guardam, diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. Todos eles são tidos consensualmente como culpados de suas próprias desgraças, explicadas como características da raça e não como resultado da escravidão e da opressão. A nação brasileira comandada por gente dessa mentalidade nunca fez nada pela massa negra que a construiu."