VIVA MARX
Valério Arcary*
O Manifesto de 1848 é o texto programático fundador do movimento operário moderno. Sendo o documento mais divulgado de Marx e Engels, adquiriu uma repercussão política, social, ideológica e científica que o coloca entre as pouquíssimas obras que, muito além das controvérsias sobre os seus acertos e limites, incidiram no curso dos acontecimentos do seu tempo e das gerações seguintes, inspirando a ação de milhões de seres humanos ao mesmo tempo. É um texto fundador de um novo paradigma científico.
O Manifesto realizou uma revolução teórica no terreno das ciências sociais, ocupando um lugar ímpar, com significado histórico semelhante ao que teve, para as ciências naturais, a publicação de A evolução das espécies, de Darwin, em 1859, ou a apresentação dos primeiros artigos de Einstein sobre a teoria da relatividade, no início do século XX, ou, ainda, o impacto que teve sobre as últimas quatro gerações a divulgação das concepções de Freud sobre a condição humana e o conflito irredutível entre razão e emoção.
Darwin produziu uma comoção ideológica ao apresentar uma hipótese científica que desafiava milênios de domínio do criacionismo e reordenava o lugar da espécie humana no interior do processo de centenas de milhões de anos de evolução (e extinção) da vida. Causou uma perturbação tão profunda na visão da natureza e da própria condição humana que, ainda hoje, desperta tantos ódios como paixões exaltadas.1 Einstein estabeleceu as premissas da moderna cosmologia e construiu, para nosso espanto, o desenho geral de uma visão do espaço-tempo relocalizando o nosso modesto planeta no interior de um incomensurável universo com milhões de estrelas. Freud abriu uma janela de assombro para a revelação dos mistérios que explicam as imprevisibilidades do comportamento humano.
É certo que todos foram vítimas de amargos mal-entendidos e, uns mais outros menos, encontraram insensatas resistências. Mas o lugar de Marx na história da ciência continua sendo injustiçado. Não ocorre a ninguém responsabilizar Einstein pela bomba atômica, nem a Freud pela crescente identificação dos novos e mais variados distúrbios mentais, ou menos ainda a Darwin pelas insanidades eugênicas do nazismo.2
Mas o marxismo e seu fundador são vítimas de uma incansável cruzada, sob o pretexto do predomínio do estalinismo como corrente mais influente no movimento socialista do século XX e da atual restauração capitalista.3 Marx realizou, no entanto, uma revolução teórica que elevou os horizontes culturais do nosso tempo. Porque foi o primeiro a assinalar que o capitalismo resulta de um processo histórico, reconhecendo que o capitalismo cumpriu um papel progressivo durante uma determinada época, emancipando a humanidade de relações econômicas e sociais arcaicas mas, como todo fenômeno histórico, é transitório e pode e deve ser superado por uma organização das relações econômico-sociais e políticas mais complexa e superior: o socialismo.4
O Manifesto apresenta uma nova teoria da história. Uma ruptura com o centro do pensamento hegeliano, que era ainda uma visão semi-religiosa de um processo essencialmente contraditório (fluxos e refluxos, exasperadora lentidão e bruscas acelerações) afirmação do progresso (e/ou da liberdade que se realiza no direito de propriedade) que resulta numa teleologia que tem na forma do Estado (instrumento da construção civilizatória, prussiano na época de Hegel, republicano burguês hoje), uma objetivação da finalidade histórica: um sofisticado fatalismo.
Para Marx, a história é um desenvolvimento simultâneo de dois processos abertos cuja compreensão exige níveis diferentes de abstração: um processo de luta do homem pelo domínio da natureza, e ao mesmo tempo, um processo de luta entre os homens pela apropriação do excedente social, apresentado abreviadamente, como a "história das lutas de classes". A história foi assim até hoje, o império das necessidades não satisfeitas, a dolorosa economia da penúria e da escassez. É neste marco que o Estado é apresentado como um instrumento que foi historicamente necessário, mas que tende a ser obsoleto, na medida em que as forças produtivas disponíveis permitam à civilização ir além dos antagonismo classistas. Paradoxalmente, Marx, insiste que o proletariado necessita destruir o Estado do capital (sendo programaticamente antiestatista) e erguer o seu próprio Estado (sendo então politicamente estatista) para abrir uma via pós-estatista da regulação das relações econômico-sociais. Esta hipótese (uma "concessão á história"), tem sido severamente criticada, acusada como teleológica ou mesmo vulgar, quase sempre, poupando Marx para melhor diminuir os marxistas modernos.
Assim, os elogios às análises brilhantes e certeiras de Marx em O 18 Brumário..., por exemplo, foram não poucas vezes, no entanto um álibi literário, de quem está ideologicamente saindo de costas e fingindo entrar de frente, e nunca impediram que a crítica impiedosa desabasse sobre a sua teoria do Estado, quando Marx defende que este se resume a "um comitê para gerir os negócios comuns de toda a burguesia". Ou ainda, quando telegraficamene define que "o poder político é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra".5 E a democracia?, perguntam sempre os neo-estatistas de todas as décadas.
Mas Marx não se refere aos regimes políticos quando analisa historicamente o Estado no Manifesto. Estava plenamente alerta para a variedade de formas originais e idiossincráticas que podem assumir as instituições em diferentes continentes e países, ou o que é mais importante, distintas conjunturas políticas.
Sua análise se concentra no lugar do Estado na história e, nesse sentido, neste nível de abstração, é irrelevante se o Estado burguês, mantém na Inglaterra a família Windsor como um cosmético monárquico para a delícia dos tablóides, ou se é parlamentarista na Itália, ou semi-presidencialista na França, ou ainda se foi uma ditadura semi-fascista durante as décadas de franquismo na Espanha. Como é óbvio sempre existiram inúmeras formas de regime político que historicamente puderam se materializar em função das circunstâncias de correlação de forças e dos desenlaces das lutas de classes. Esta plasticidade das instituições evidentemente não escapou ao juízo de Marx. Resulta, portanto, metodologicamente imprópria uma polêmica teórica fora do lugar.
No Manifesto, Marx estabelece portanto de forma pioneira um terreno de delimitação, ainda incompleto, com o estatismo hegeliano e com o anti-estatismo utópico. A compreensão da historicidade das relações econômico sociais, que não podem se explicados senão à luz do duplo processo de luta da sociedade humana pelo domínio da natureza e das lutas de classes, tem no se centro a construção de uma teoria do Estado, e portanto, de uma teoria política. É recorrente e ainda atual, a polêmica na esquerda, se Marx tinha ou não uma visão determinista do processo histórico, e se ele compreendia plenamente a relativa autonomia dos processos políticos, que conhecem múltiplas determinações, em relação aos processos econômicos. Esta crítica teve na sua origem o chamado revisionismo histórico (não acidentalmente germânico e sofrendo forte pressão estatista com o fim das leis de exceção bismarckistas que mantiveram o SPD ilegal, a conquista da legalidade dos sindicatos, o crescimento eleitoral linear e uma forte herança hegeliana). Curiosamente, hoje a maior parte da esquerda mundial se rendeu à tentação hegeliana estatista: a luta contra o Estado do capital é reduzida à lua pela hegemonia no interior das instituições do Estado (para preservá-las e até mesmo defendê-las), e não poucas vezes, a menos ainda, à colaboração minoritária no interior de governos burgueses com programas de defesa da ordem.
O endereço último do reformismo moderno, politicamente herdeiro de Bernstein ou, na melhor das hipóteses, de Kautski, é teoricamente uma regressão ao estatismo hegeliano, que identifica no Estado burguês um instrumento de defesa da civilização (que para o capital não pode ser outra que a "sua", a da liberdade da propriedade e do mercado com doses "apropriadas" de sufrágio de acordo com as correlações de forças), e cumprir o triste papel de administradores da crise do capitalismo, mesmo que, na escala medíocre das municipalidades.
Mas não é difícil concluir qual é a natureza de classe do Estado moderno, observando seu papel histórico na prevenção de novas crises como a catástrofe de 1929, durante os chamados "30 anos gloriosos" de crescimento sustentado do pós-guerra ou, melhor ainda, hoje, quando a globalização exige a flexibilização das legislações trabalhistas, as aberturas comerciais incondicionais, a privatizações dos serviços públicos e a livre circulação de capitais em busca da recuperação da taxa média de lucro. As formas democrático-republicanas em crise, com o crescente desencanto da massas em face da impotência processos eleitorais, só conseguem iludir quem assim o quer.
Marx estabelece limite também com o voluntarismo moral do anti-estatismo utópico (um programa anticapitalista que encontra pleno amadurecimento nas concepções anarquistas) que apesar de hoje sobreviver apenas molecularmente na forma de movimentos políticos organizados e sérios no interior da esquerda, se expressa distorcidamente no apelo exercido pelas ONGs que recrutam militantes honestos, porém desmoralizados com o politicismo eleitoralista. O primeiro capítulo do Manifesto é amplamente dedicado a compreender a historicidade do capitalismo e também do Estado. Mas, assim como o Estado surge de um processo de aprofundamento dos antagonismos sociais, sua extinção não poderá resultar apenas de uma organização de vontades.
Nesse sentido surge a teorização da ditadura do proletariado, como um período de transição que corresponde à afirmação de um Estado de novo tipo, o Estado operário que emergiria dentro das fronteiras nacionais mas cuja sobrevivência seria internacional ou não seria. Ocorre que a fórmula da ditadura do proletariado, se refere essencialmente à natureza social do Estado, e não à forma política do regime. Assim como o Estado do capital, independentemente de seu regime, é sempre uma ditadura de classe, Marx nunca excluiu a possibilidade histórica que o Estado operário viesse conhecer diferentes regimes políticos. E assim foi.
Certamente, o maior drama do século XX será reconhecia pela história como tendo sido a degeneração e deformação de todas as experiências de transição em regimes burocráticos nos quais o poder político dos trabalhadores foi expropriado, se impôs a dita dura de partido único e foram realizadas impunemente atrocidades inomináveis. Essas aberrações, que despertam justamente o horror de intelectuais honestos e a desconfiança de milhões de trabalhadores, em particular nos países centrais, estão na raiz da recorrente influência de idéias anti-estatistas e, mais amplamente, da hostilidade à política ou à partidocracia predominante no movimento operário organizado. Embora sejam essas inquietudes compreensíveis, não são menos perigosas as sus conclusões.
A regressão a um programa anti-estatista, tem como pano de fundo, o desencanto em face do processo de restauração capitalista hoje em curso na Rússia e no Leste Europeu, e diante do que poderíamos denominar "via bismarckista ao contrário" (numa analogia histórica às avessas à "via prussiana" de Bismarck, artífice da unificação alemã, que teria realizado uma tarefa historicamente progressiva por uma via reacionária) na China e em Cuba. Neste trágico final de século, as burocracias estalinistas se converteram em adoradoras despudoradas do mercado, como leltsin e cia., ou em defensoras envergonhadas de insustentáveis reelaborações sobre uma suposta NEP de cem anos, como Castro e Deng Xiaoping. Tanto uns como outros jogam no primeiro time dos agentes do mercado mundial, percorrendo uma via reacionária rumo à restauração capitalista; ou seja, é a contra-revolução em toda a linha.
No entanto, as forças que movem a história, são impiedosamente mais poderosas que as ideologias de aparelho. As "vias nacionais para o socialismo", uma teorização que chegou ao grotesco em pequenos países atrasados como Albânia e Coréia do Norte, sucumbiram diante do domínio imperialista sobre o mercado mundial, e ao atraso da revolução nos países centrais.
Uma segunda inovação central no Manifesto, é a apresentação do projeto socialista essencialmente como um programa histórico-político. O socialismo deixa de ser uma estratégia de reforma ético-moral da sociedade tal como havia sido encarado até então por todas as correntes igualitaristas da história, em geral, e pelos chamados socialistas utópicos, em particular.6
Marx fez sua a herança igualitarista que afirmava a indivisibilidade entre liberdade e igualdade, ou seja, a impossibilidade da existência de liberdade entre desiguais. Mas , á luz do processo revolucionário de desenvolvimento s forças produtivas que o capitalismo tinha libertado com a emergência da revolução industrial, afirmava a possibilidade da realização de um projeto socialista apoiado, tanto na necessidade da luta pela justiça, quanto na materialidade da existência de um processo de construção da abundância, o que permitiria superara a escassez, a penúria e criar condições objetivas, portanto, para que as necessidades fundamentais da humanidade fossem resolvidas. 7 O Manifesto insiste na idéia que uma época de revolução social está aberta (ainda que os homens não tenham consciência da natureza dos seus conflitos), quando as forças produtivas se rebelam contra as relações sociais de produção que as aprisionam.
Para Marx a maturidade das forças produtivas( o sistema de relações que une a humanidade à natureza através da ciência aplicada, ou seja, a tecnologia, as ferramentas, as máquinas), transforma as relações sociais de produção capitalistas num obstáculo ao progresso e exige a revolucionarização da sociedade. Mas desta premissa não resulta nenhum fatalismo economicista, nenhuma teleologia do proletariado: se a classe que deve ocupar o papel de sujeito social revolucionário não assumir o seu lugar (sejam quais forem as determinações, imaturidade subjetiva, e/ou outros) as dores de parto da crise do capitalismo, como em qualquer outra transição histórica, serão ainda maiores, reabrindo outras possibilidades e hipóteses, como por exemplo, das regressões, como o nazi-fascismo.
Evidentemente o impulso ético que está na 11ª tese sobre Feuerbach, a famosa conclusão do trabalho de ruptura com o hegelianismo de esquerda de seu tempo ("os filósofos até hoje se limitaram a interpretar o mundo, trata-se de transformá-lo"), permanece viva no Manifesto. É o "imperativo categórico" moral kantiano que exige a valentia intelectual de reconhecer que a neutralidade ou indiferença numa luta entre desiguais é sempre a cumplicidade com o mais forte.
Mas a concepção geral da teoria da história que nele está apresentada desemboca numa teoria das necessidades (forma embrionária de crítica da economia política), que tem como critério a possibilidade do maquinismo criar forças produtivas que permitirão à humanidade a acumulação de um excedente econômico que abria a perspectiva de fatura e tomaria assim obsoletos os antagonismos sociais. O proletariado se libertando, libertaria toda a sociedade da pré-história das classes. Esses elementos estão hoje envolvidos em controvérsias.
Uma das polêmicas provocadas pela teoria das necessidades do marxismo, é precipitada por aqueles (não poucos), que tiveram uma origem na esquerda moderna mas renegam o marxismo, e afirmam que as necessidades humanas são essencialmente ilimitadas. Ou seja, a abundância, mesmo considerado o colossal desenvolvimento das forças produtivas, seria historicamente impossível e a humanidade estaria condenada a conviver com ferozes antagonismos, em lutas de classe insolúveis impostas pela escassez. De fato, o final do século XX nos mostra a dicotomia entre um multitudinário processo de desenvolvimento técnico que cria enormes possibilidades para a produção material de riquezas mas, ao mesmo tempo, reproduz os flagelos milenares da fome, da miséria, do desalojamento no dia-a-dia de centenas de milhões de homens, relegando pelo menos 20% dos seres humanos a vegetar em condições que só poderiam ser definidas como de miséria biológica. Daí decorre a acusação que a passagem do "reino da necessidade ao reino da liberdade" seria uma herança de "iluminismo" romântico Marx.
Outro álibi do reformismo moderno, sob a pressão dos economistas liberais, consiste em afirmar que o desenvolvimento técnico-científico sob o capitalismo ainda é um crescimento das forças produtivas e que, portanto, de forma geral, o fenômeno da internacionalização capitalista (globalização) seria uma etapa essencialmente progressiva, ainda que contraditória, porque o capitalismo oferece ainda um horizonte de desenvolvimento humano, superior à propriedade estatizada e ao planejamento econômico.
Estamos, em ambos os casos, diante de erros simétricos. Por um lado, as necessidades materiais humanas têm uma regularidade que hoje é observada por estudos sociológicos rigorosos que constatam que 80% do consumo do cidadão médio é constante e previsível. A margem de diferenciação (os outros 20%) resulta de idiossincrasias e individualidades. Este é um fenômeno particularmente interessante nos países centrais, verificado inclusive durante os "30 anos gloriosos" do crescimento sustentado e da edificação do Estado de bem-estar social.8 Essa verdadeiramente incrível apuração estatística confirma no nosso tempo o que no século XIX era a hipótese fundacional marxista sobre a teoria das necessidades.
Por outro lado, os que sustentam que as forças produtivas ainda crescem, estão diante de vários desafios teóricos. O capitalismo na época de sua agonia nos exibe o paradoxo de o crescimento econômico e o aumento da produtividade no trabalho se traduzirem em desemprego crônico, queda do salário médio e redução geral da qualidade de vida. Com exceção dos 30 anos pós-guerra e, ainda assim, essencialmente nos países centrais e de maneira distorcida em alguns poucos países dependentes, as condições materiais de vida têm se deteriorado e as novas gerações, há muito já perderam a esperança de viver melhor que os seus pais.
Ao pretenderem que as forças produtivas continuem crescendo sob o capitalismo e, portanto, que não existem condições objetivas (maturidade das forças produtivas)para abertura de uma época histórica de revolução social, os defensores dessa teoria realizam uma ginástica teórica para separar o homem e a natureza do sistema das forças produtivas.
Para Marx, as forças produtivas são um sistema constituído por três elementos, o homem que se relaciona com a natureza, através do trabalho lançando mão da tecnologia, ou seja, das ferramentas, que são a expressão em cada época histórica do nível de desenvolvimento científico (são ciência aplicada). O desenvolvimento técnico-científico e o desenvolvimento das forças produtivas estão correlacionados mas não se confundem. O homem é a principal força produtiva. Neste critério reside a radicalidade humanista do marxismo.
O desenvolvimento técnico, em inúmeras circunstâncias históricas impulsiona forças destrutivas, enquanto as produtivas permanecem bloqueadas, e a assincronia não é incomum. O crescimento das forças produtivas supõe a elevação da qualidade de vida material e cultural da humanidade, mesmo quando a desigualdade se perpetua. E, evidentemente, um dos traços perversos, patológicos e irracionais do capitalismo tardio, é que a lógica do capital ameace até a sobrevivência dos ecossistemas, o que está na raiz da emergência de movimentos ecológicos com peso de massas em inúmeros países. E os impérios que governam a economia mundial são um cenário do processo de decadência das condições materiais de vida dos seus próprios proletariados.9
O Manifesto é assim uma ruptura com o fatalismo economicista liberal que teleologicamente profetiza um futuro de escassez, porque o progresso estaria sempre aquém das novas necessidades, porque seriam intrínsecas à "natureza humana" a cobiça e a volúpia de um consumo ilimitado e o belicismo social, um destino inexorável. É ao mesmo tempo uma delimitação com uma tentação utópica de uma reforma ética do homem através de experiências exemplares de socialização apoiadas numa estratégia de refundação moral da civilização. No Manifesto não existe uma "fórmula de socialismo" e Marx, em toda a sua vida e obra, foi cético sobre a possibilidade de elaborar qualquer tipo de programa sob forma de código (Marx não tinha o vício dos advogados que, como se sabe, são apaixonados por codificações). A única exceção foi o enorme entusiasmo com que o velho filósofo alemão acompanhou, já na velhice, a experiência de democracia direta na Comuna de Paris, que posteriormente foi a inspiração de Lenin para O Estado e a Revolução.
Na nossa esquerda contemporânea, encontramos curiosos parentescos com estas polêmicas velhas de 150 anos. Assim, sob o impacto da crise do Leste Europeu, os efeitos desagregadores da permanência do stalinismo durante décadas, se expressam, numa talvez inevitável e caótica confusão. A atração exercida pela idéia de definição de códices políticos-jurídicos, os famosos apelos por um Estado socialista de direito, que predefina todos os percalços previsíveis e imprevisíveis do futuro e tranqüilizem a consciência culpada dos que viveram de ilusões, parece irresistível... A sombra dos reformadores éticos morais do socialismo utópico de alguma maneira pesa e ao mesmo tempo ilumina as angústias do presente.
O que é uma clara evidência é que a capacidade produtiva disponível, em escala econômica mundial, poderia certamente resolver a maior parte das carências que no entanto se perpetuam, sacrificadas pela lógica do lucro que irracionalmente desperdiça e destrói as forças produtivas em crises recorrentes, o que, com maior ou menor intensidade, é a sintomatologia febril da agonia do capital. Portanto se Marx errou no prognóstico político ao prever que a onda revolucionária de 1848 inauguraria uma etapa anti-capitalista, acertou mais uma vez na perspectiva histórica visionária de abertura de uma época revolucionária. Não foi outra a história deste século.
Notas