Regionalismo e preconceito contra o nordestino
Demétrio Magnoli
(Do livro: Identidade Nacional em debate, vários autores, Ed. Moderna, pág. 119-125)
1 – O Regionalismo nordestino
O Regionalismo nordestino nasceu e evoluiu como reação á decadência do Nordeste. Do ponto de vista histórico, surgiu no início do século XX, junto com o deslanche da industrialização no sudeste. Do ponto de vista social, configurou-se como atitude política das elites regionais, eu jamais se difundiu profundamente entre a população. Do ponto de visa estratégico, caracterizou-se por reivindicar ajuda federal á região, sob a forma de obras públicas ou proteção para empresas e produtos. O seu argumento central sempre foi a pobreza regional, geralmente associada ao fenômeno climático das secas.........
O discurso regionalista e as respostas federais pariram o principal mito sobre a pobreza do Nordeste: o mito das secas.
As secas, do ponto de vista meteorológico, não são um mito. O mito consiste na noção de que esse fenômeno natural seja o responsável pelo drama social da população. A artimanha do Regionalismo elitista consistia em esconder as causas sociais da miséria pelo recurso a uma condição climática. ... Dessa forma, as elites econômicas e políticas do nordeste encontraram um álibi para fugir á própria responsabilidade histórica pela pobreza e, ao mesmo tempo, uma argumentação para o desvio de recursos federais para a realização de obras públicas regionais. Evidentemente, os benefícios traídos por essas obras jamais chegaram à maioria da população nordestina, tornando-se fonte de enriquecimento privado das minorias privilegiadas....
Das "obras conta as secas" aos incentivos fiscais: mais de meio século de políticas regionais revelou-se incapaz de transformar o panorama de pobreza do Nordeste. Mas o discurso regionalista das elites continua em funcionamento, operando sempre o velho argumento do "bolsão de pobreza". Essa noção – de que o Nordeste é um "outro país", a Índia confrontada com a Bélgica, o lado esquecido do Brasil – camufla o abismo social que separa as elites nordestinas da população regional. A palavra Nordeste, uma noção espacial que se pode desenhar sobre o mapa, serve como esconderijo para as elites regionais, que se apresentam como representantes dos miseráveis e dos excluídos.
2 – A Bósnia não é aqui
O Regionalismo nordestino desenvolveu-se sobre o paradoxo de ser um discurso elitista cujo argumento central sempre foi a pobreza. Esse paradoxo contribuiu para o surgimento e a difusão de um outro discurso: o do preconceito antinordestino.
O preconceito antinordestino existe desde os tempos antigos, como expressão do racismo. A participação majoritária dos negros e mulatos na população do Nordeste, que contrasta com a hegemonia dos brancos no Sudeste e, em proporção maior, no Sul, reflete a história da escravidão e da imigração européia no Brasil. Aí se encontram os fundamentos do preconceito tradicional antinordestino....Porém, o preconceito antinordestino atualizou-se aproveitando o próprio Regionalismo das elites do Nordeste. No Sudeste, difusamente, desenvolveram-se atitudes preconceituosas contra os migrantes provenientes dos estados nordestinos. A atitude preconceituosa enxergou nos fluxos de nordestinos o espectro da invasão da pobreza, em vez de enxergar o papel desempenhado pela mão-de-obra migrante no crescimento econômico do Sudeste. Desde a década de 1970, diversas prefeituras do interior paulista passaram a recolher, nas estações rodoviárias, os migrantes recém-chegados, colocando-os em ônibus e despejando-os em cidades vizinhas. Em 1990, chegou a tramitar na Câmara Municipal de São Paulo um projeto de lei destinado a impedir o uso de serviços e equipamentos municipais por migrantes com menos de dois anos de trabalho e residência comprovados na cidade. (Observação: este projeto teve como autor o ainda vereador municipal Bruno Feder, atualmente do PPS, partido do ex-prefeito Paulo Maluf).
No Sul do país, na última década, o preconceito antinordestino assumiu a forma virulenta do separatismo. Os movimentos separatistas sulistas, em geral baseados no Rio Grande Do Sul, chegaram a formular a reivindicação da Independência: República dos Pampas....
O preconceito antinordestino enxerga no migrante o pobre. O separatismo sulista encara o nordestino como diferente. Os separatistas postulam a existência de diferentes grupos étnicos ou culturais no Brasil... A população do Sul, segundo essa visão, teria origens enraizadas na imigração branca e européia, distinguindo-se dessa forma da população do restante do país. Falsamente, apregoa-se a existência de diferenças étnicas no interior da população brasileira. A armadilha vai mais longe, associando nível de vida e origem populacional: o imigrante europeu aparece como a fonte do trabalho e da riqueza, o nordestino como a fonte da preguiça e da pobreza.
O preconceito antinordestino e o separatismo sulista constituem formas de mascarar a pobreza e a miséria, que estão em todas as regiões. Os contrastes sociais intensos, presentes nas metrópoles do Sudeste, são apresentados como fruto das migrações inter-regionais, não como reflexo das estruturas socioeconômicas perversas características de todo o país. A pobreza sulista – que transparece no fluxo migratório de gaúchos, paranaenses e catarinenses rumo á Amazônia, e também nas favelas e periferias miseráveis das cidades grandes e médias da região – é obscurecida por um discurso que nega o óbvio: a "Índia", está em todos os lugares, e até no Nordeste existem algumas "Bélgicas".....
A Bósnia não é aqui. Lá, uma história muito antiga produziu divisões étnicas, culturais e religiosas que cindiram a população bem antes da formação do Estado iugoslavo. Aqui, uma história muito mais recente misturou populações de origem diversa em um único conjunto nacional. No Brasil, as diferenças regionais (e estaduais, e locais... ) não são diferenças étnicas, mas apenas expressões dos ambientes diversos nos quais se processou a história da nossa sociedade. Nordestinos, sulistas, paulistas, cariocas: essas denominações refletem realidades geográficas, não identidades étnicas. Talvez, por isso, o separatismo sulista não tenha, até hoje, conseguido atear fogo na imaginação popular. Ainda bem.