A ORDEM TRIBAL: A VIOLÊNCIA É DE TODOS

Alba Zaluar

.(Do livro: "Da revolta ao crime S. A.", Alba Zaluar, Ed. Moderna, São Paulo, 1996, págs. 9 a 22)

 

A violência não surge na história dos homens com a exploração, a dominação ou a miséria que conhecemos nas sociedades modernas. A violência não surge na história. Sempre esteve dentro dos homens. Em todas as sociedades, em todas as épocas, em todos os recantos do mundo, existem manifestações da agressividade potencial dos homens contra seus semelhantes. Os homens desde tempos imemoriais, têm a capacidade de destruir-se mutuamente por meio da violência. Entretanto, as sociedades tribais, também chamadas primitivas, pré-letradas ou pré-estatais, não podem ser confundidas com o império da natureza, da animalidade do homem e da violência. Todos os homens, que pertencem à mesma espécie – Homo sapiens sapiens -, sempre tiveram também os meios de se comunicar e se entender pela linguagem. Nesta, símbolos e signos substituem as coisas, e é possível empregar palavras no lugar de dentes, punhos, clavas, facas, pistolas, metralhadoras. Mas a idéia romântica do bom selvagem, solidário, comunitário e igualitário é igualmente equivocada. O mal que resulta da violência sempre existiu e sempre foi, portanto, em todas as épocas, em todos os lugares, contido e entendido em maior ou menor grau e de diferentes maneiras simbólicas.

Nas sociedades tribais, não há exploração do homem pelo homem, pois não existe divisão de classes sociais nem a idéia de lucrar com o trabalho alheio. Tampouco há dominação de uns poucos sobre os demais, pois ninguém detém o direito exclusivo de usar armas contra os outros. Em outras palavras, não há o Estado nem o poder privado do senhor, instituições que dividem a sociedade entre os que mandam e os que obedecem (Clastres, 1974). Como não há Estado, cada um detém a força para fazer justiça pelas próprias mãos quando for pessoalmente lesado ou tiver algum parente que tenha sido lesado por outrem. Mas esse acerto de contas segue regras sociais bem definidas.

Nessas sociedades, a produção de alimentos e de objetos, realizada por todos na base da cooperação familiar extensa, mereceu de alguns a definição de "modo de produção doméstico", teoria contestada por outros. De acordo com os primeiros, os familiares colaborariam no trabalho e todos receberiam segundo sua necessidade. Ninguém trabalharia mais do que o necessário, o que as tornou, segundo outros autores, "sociedades de abundância" e "sociedades de lazer" (Sahlins, 1970). Mas hoje predomina a idéia de que as pessoas trabalham e se relacionam pela posição que ocupam na rede e no sistema de parentesco, segundo diferentes regras, e não por serem "trabalhadores". De modo geral, o que marca essas relações é a reciprocidade: para cada benefício, malefício ou dom recebido, existe a obrigação de retribuir, mesmo que a retribuição não seja imediata (Mauss, 1974; Sahlins, 1970).

Dentro da tribo, os grupos de parentesco ou as divisões sociais são considerados equivalentes. Por isso algumas sociedades tribais são chamadas duais, pois cada metade teria o mesmo poder e o mesmo prestígio. Outras denominam-se segmentares, porque cada segmento é equivalente ao outro. Algumas tribos africanas asiáticas, entretanto, têm linhagens aristocratas e linhagens plebéias, o que estabelece diferenças de poder entre elas. Mas é um engano pensar que as tribos, mesmo as menos diferenciadas como as duais, sejam inteiramente consensuais e igualitárias. Existem diferenças mercantes entre os sexos, diferenças entre as classes e os grupos de idade, diferenças de prestígio entre pessoas, diferenças de tamanho, local de moradia e de riquezas entre os grupos de parentesco. Tudo isso cria possibilidades de que tensões venham a explodir em conflitos, aliás bastante comuns dentro das tribos.

Mas há uma grande diferença entre como prevenir ou solucionar os conflitos dentro e entre as tribos. Dentro das tribos, existem muitos meios de evitar, por meio da comunicação e do acordo, que brigas degenerem em conflitos armados e mortes. Entre as tribos, as relações, por definição, são de inimizade, de desconfiança ou de cuidado. Por isso, muitos afirmam que as sociedades primitivas ou tribais se caracterizam pelo estado de guerra entre elas. Não é a fome nem a necessidade, nem a rivalidades comerciais, porém, que explicariam por que algumas são mais aguerrida do que outras (Clastres, 1982).

As tribos, porém, não estão sempre em guerra. Há entre elas mais intercâmbio cultural do que os antropólogos imaginavam (Barth, 1986). Até mesmo a presença de cativos de tribos vizinhas, corno resultado da guerra, favoreceu esse intercâmbio de idéias, símbolos, rituais,, e práticas sociais, todos aprendidos e transmitidos socialmente. Quanto mais trocas houver entre as tribos, menor a possibilidade de guerra. A vida tribal, no entanto, foi muitas vezes caracterizada pela paz precária ou pelo estado de guerra permanente (Sahlins, 1970) mas não universal. Isso porque a guerra acontecia contra os que não faziam parto da tribo, mas não entre seus membros (Clastres, 1982). Por isso se pode dizer que a comunidade tribal cria a exclusão: quem dela não faz parte está excluído de seus benefícios e de sua proteção.

A denominação "sociedade primitiva" esconde, pois, diferenças marcantes entre as sociedades iletradas ou sem Estado, também chamadas tribais. Procurar a "essência " da sociedade tribal, o seu "ser", seja na troca (Lévi-Strauss, 1949), seja na guerra (Clastres, 1982), é esforço equivocado. As sociedades primitivas, dadas certas condições históricas, podem ou não se dividir internamente por conta de conflitos reincidentes, podem ou não ter guerras com os seus vizinhos, podem ou não ter intercâmbio intenso com eles, podem ou não terminar dominadas por eles. Essas possibilidades, teoricamente existentes, são transformadas pelos que nelas vivem. Não são apenas estruturas; também têm histórias. ainda mal conhecidas.

A GUERRA E OS GUERREIROS TRIBAIS

Antes e durante a colonização feita pelos países europeus, as alianças entre as tribos, especialmente no continente americano, eram temporárias, frágeis e visavam destruir um inimigo comum mais forte ou mais perigoso. As alianças, portanto, serviam à guerra, que era o estado permanente das relações entre as tribos americanas, mesmo quando não chegavam a lutar entre si durante longos períodos. Dessa forma, as alianças até poderiam forjar laços mais permanentes. Era um modo de evitar que a guerra, sempre presente como possibilidade, acontecesse.

Por que a guerra? Muitas são as respostas dadas pelos que pensaram a respeito das sociedades primitivas. Muitas as soluções encontradas pelas tribos que existiram e existem no mundo. Segundo alguns antropólogos, não é a necessidade de garantir o alimento que arrasta as tribos à guerra. Ao contrário, tribos que vivem em regiões inóspitas, como os esquimós do Alasca e os aborígenes do deserto australiano, são reconhecidamente povos pacíficos. Por isso Lévi-Strauss afirmou que "as trocas representam guerras potenciais pacificamente resolvidas e as guerras são saídas para transações mal sucedidas" (apud Clastres, 1982). Dependendo, pois, da possibilidade e da capacidade de estabelecer relações de troca corri os seus vizinhos, as tribos irão ou não guerrear.

Outros antropólogos afirmam que as sociedades tribais eram e ainda hoje são constituídas de grupos locais para os quais o controle do território é de importância fundamental na construção da identidade cultural e na vida social da tribo. Esta seria regida pelos princípios da autarcia e da autonomia. Autarcia quer dizer auto-suficiência econômica que procura não depender das outras tribos para conseguir os bens necessários à sobrevivência. Autonomia é o princípio que nos mantém politicamente independentes dos outros, portanto livres da dominação (Sahlins, 1970; Clastres, 1982). Por isso a identidade tribal baseia-se no sentimento de que a cultura específica da tribo, com seus valores e suas regras, é superior à dos outros, muitas vezes desqualificada simplesmente como não-humana (Lewis, 1985)

Muitos povos tribais, alguns já desaparecidos da face da Terra em virtude dos conflitos com as nações européias colonizadoras, se auto-apresentavam como "os homens", o que era uma forma de excluir da categoria do humano todos os outros povos. Assim aconteceu com os guaicurus do Chaco paraguaio ou com os algonquinos da América do Norte. De modo geral, para se autodefinirem como apaches, cheyennes, tupinambás ou guaranis, os índios da América precisavam acreditar na sua singularidade e por isso buscavam a autonomia e a independência tribal completas, do ponto de vista econômico, cultural e político (Clastres, 1982). Sendo assim, para não se deixarem dominar, faziam guerra aos outros, os inimigos. Os que não conseguiram e foram dominados tornaram-se castas ou linhagens inferiores, unidades políticas submetidas pelas tribos dominantes.

As tribos mais aguerridas ou violentas deram um lugar muito especial para seus guerreiros, tamanha a importância que a guerra adquiriu entre elas (Clastres, 1982). Isso aconteceu com os tupinambás (já desaparecidos) e os caiapós no Brasil, com os povos da Patagônia argentina e do Chaco paraguaio (exterminados brutalmente pelos colonizadores europeus), assim como com os algonquinos e os iroqueses na América do Norte. Para ser considerado guerreiro dotado de prestígio e reconhecimento, um jovem deveria acumular feitos tais como trazer escalpos de inimigos valorizados (os índios de outras tribos, por exemplo, valiam mais do que os espanhóis), armas, mulheres e crianças raptadas. Tais troféus eram ambicionados não porque tivessem algum valor comercial, mas porque sua aquisição, fruto da coragem e da valentia pessoais, trazia prestígio social ao guerreiro (ibidem).

Entre os tupinambás, tribo de guerreiros que viveu no Brasil no período colonial, era a vingança executada pelo guerreiro que lhe conferia honra. Matar ou aprisionar o inimigo era o que lhe dava prestígio e poder. Na verdade, só depois que matava alguém, o moço tornava-se homem, como entre outro povo tupi, os arawetés (Viveiros de Castro, 1986). Com isso, quanto mais valentes fossem, mais esposas os guerreiros poderiam ter. Cunhambebe, famoso guerreiro, tinha treze esposas. (Amendura, 34). As esposas eram a ostentação do poder do guerreiro (Carneiro da Cunha e Viveiros de Castro, 1985). Cunhambebe, que comia os inimigos que matava, dizia ser um jaguar, a um só tempo fera e divindade, quando praticava a antropofagia (Viveiros de Castro, 1986). Mas também aprendeu nos rituais de Iniciação de sua tribo os valores e a lei a que todos estavam submetidos. Sua liberdade era, pois, limitada, e sua violência, contida dentro dos sentidos que a cultura tribal lhe atribuía.

Essa guerra entre tribos não produzia a destruição e o número de mortos a que estamos acosturnados no mundo moderno. Mas fez surgir diferentes maneiras de pensar a morte, os mortos, a violência, o mal. Entre os índios gês, do Brasil, os mortos são os outros, os inimigos que vêm levar os vivos. Entre os tupis-guaranis, os mortos são como deuses que superaram as limitações, as ambivalências e as confusões do humano. Por isso é que, em vez de simplesmente matar ou adotar os inimigos capturados na guerra, os tupis os comiam: era uma forma de superar a condição humana e vir a ser, através do ato de engolir o inimigo, um deus. Entre os tupis, os guerreiros têm, portanto, uma dimensão divina, que os mortais humanos não têm (Viveiros de Castro, 1986). É isso que dá sentido à violência entre eles.

Antes e durante a colonização, povos como os do Chaco paraguaio e os apaches da América do Norte levaram a tal extremo a guerra que acabaram por deixar a agricultura e a criação de animais para dedicar-se exclusivamente à pilhagem dos outros povos. Os guerreiros, inclusive o famoso Jerônimo dos apaches, passaram a ter tanta importância na vida desses povos, que a palavra guerreiro veio a significar "aquele graças a quem comemos"(Clastres, 1982). Criou-se então outra ameaça à igualdade dentro da própria tribo: o acúmulo de regalias aos guerreiros forjou uma divisão social e política, pondo em perigo sua organização social baseada no equilíbrio de poder entre os seus segmentos.

Mas é provável que essa situação extrema tenha-se tornado possível devido à introdução de dois traços culturais do Ocidente entre os índios: o cavalo e as armas metálicas. Com estas, especialmente a arma de fogo, surgiu uma diferença mais acentuada entre os que detinham os meios da violência organizada e os que não eram nem guerreiros riem soldados. Isso aconteceu principalmente no oeste da América do Norte, onde o Exército dos Estados Unidos movia uma guerra contra os índios.

Apesar da inexistência de exploração ou dominação, também nas sociedades tribais, dependendo da idade, do sexo e da tribo dos prisioneiros, estes poderiam ser objeto de terríveis torturas e mutilações, antes de serem devolvidos a seu grupo. Isso acontecia, porém, apenas durante as guerras e quando não havia hábito de casá-los na tribo, ou mesmo tê-los como "escravos", ou seja, como pessoas que prestavam serviços domésticos a seus donos, prática comum em alguns povos tribais.

Na África, mesmo antes de os europeus lá chegarem e iniciarem o comércio de escravos, esse tipo de escravidão (dos prisioneiros de guerra) já existia. Também ali os escravos" não eram objeto de compra e venda, nem havia a idéia de explorar seu trabalho com o intuito de obter lucros. Esses "escravos", vivendo em tribos que não as suas, muitas vezes como filhos adotados nas famílias, facilitaram o intercâmbio cultural e, assim, contribuíram para diminuir distâncias, possibilitar o intercâmbio e aumentar a criatividade humana.

A NEGOCIACÃO DENTRO DA TRIBO

Diz-se que os homens são os únicos animais que matam seus semelhantes por prazer ou orgulho. Mas também são os únicos animais que se autodomesticam e inventam meios de criar a paz entre eles. (Lévi-Strauss, 1949). Assim, as tribos instituíram maneiras de evitar que os conflitos entre pessoas ,e alastrassem e acabassem por trazer a guerra para dentro delas. Parentes não devem guerrear entre si. Muitas instituições foram criadas (inclusive o casamento) em que a troca de diversos bens valorizados - desde inhames, batatas, vacas e conchas raras até jovens em idade de casar - serviam para selar alianças entre os diversos grupos de parentes. Por isso, um desses povos tribais dizia: "casamos com os nossos inimigos" (Lévi-Strauss, 1949).

Dessa maneira, entre eles se criavam laços sociais que reforçavam a cooperação e a solidariedade, necessárias para quem trabalhava junto de modo a sobreviver num meio ambiente nem sempre dadivoso. As atividades de pesca, caça e coleta, feitas pelos homens em cooperação, a agricultura ou a criação de animais, estas feitas às vezes pelas mulheres, às vezes pelos homens, foram possíveis graças ao desenvolvimento da sociabilidade e dos rituais que as acompanhavam. Esses laços sociais não eliminavam o conflito, mas tentavam contê-lo mediante rituais esporádicos e negociações cotidianas.

Quanto mais laços houvesse entre as partes da tribo, quanto mais esses laços se intercruzassem nas mesmas pessoas, que ao mesmo tempo fariam parte de diferentes grupos, mais pacificada e unida seria a tribo. O sentimento de pertencer à mesma tribo exigia reuniões coletivas, festas ou rituais em torno dos símbolos da unidade tribal (Gluckman, 1967). Esses símbolos eram considerados carregados de força sobrenatural que poderia trazer desgraças para quem os desrespeitasse. Entre os cheyennes, por causa disso, o assassinato de um membro da tribo por outro era considerado um grave pecado que poluía toda a tribo. Depois dele, e enquanto não fosse encontrada uma forma de fazer justiça aos parentes do morto, todas as atividades da tribo ficavam ameaçadas de fracasso (ibidem).

A troca de bens ou serviços entre os grupos de parentes que compõem as tribos é regida pelo princípio da reciprocidade, que afirma que todo presente recebido cria uma obrigação de retorno, mesmo que não seja imediata. Embora fundamente e reforce os laços sociais, a reciprocidade alimenta também a rivalidade e a competição (Mauss, 1974). A reciprocidade é, portanto, de fundamental importância nas sociedades tribais, em todos os aspectos da vida social: rituais, econômicos e políticos. Mas não é inteiramente igualitária, nem desinteressada, pois acaba criando distinções entre chefes e homens comuns, ou entre linhagens aristocráticas e plebéias. Outras idéias aparecem: a redistribuição de riquezas acumuladas; a divisão política entre superiores e inferiores, entre os líderes e os liderados.

A idéia de retribuição também está presente nos primeiros órgãos de justiça encontrados em algumas sociedades tribais, especialmente as africanas, nas quais já existem instituições legais mas ainda não há Estado. A justiça, em muitas sociedades pré-letradas, pré-industriais e pré-estatais está baseada na retribuição ou na reparação do dano. Em tais sociedades, a decisão do tribunal, do árbitro, do mediador, do intermediário ou do simples defensor não pode ser imposta pela força a quem perdeu a questão. Por isso mesmo. as instituições jurídicas primitivas baseiam-se na negociação, nos acordos e nos compromissos feitos oralmente entro as partes litigantes. em obediência a preceitos e valores da vida cotidiana de todos. A ordem social e ordem legal são uma coisa só.

Os conflitos são tão mais facilmente resolvidos quanto mais próximos estão os envolvidos na disputa; ou quanto mais laços cruzados houver entre os parentes do agressor e os parentes da vítima. Mas, o princípio é sempre evitar que as desavenças se alastrem por todos os membros da comunidade. Ou pior: que a morte de uma pessoa seja vingada pela morte de outra pertencente à família do assassino e que, dentro da tribo, isso degenere na luta homicida de todos contra todos. Equiparar a sociedade primitiva ao estado em que cada ser humano luta contra cada outro pela sua sobrevivência física (o "estado de natureza"), ou dizer que ela não tem nem lei nem ordem, revela ignorância desses complexos mecanismos simbólicos e práticos de refazer permanentemente a paz social interna.

OS NEGOCIADORES TRIBAIS

Quando o conflito se transforma em litígio, novos papéis são atribuídos a personagens da tribo, tais como guerreiros, chefes, anciãos. Os chefes, especialmente os de bandos de caçadores, não são governantes. São apenas líderes cujas vontades não podem ser impostas pela força aos liderados. Têm que ser aceitas. Mas em situações de rixa entre os membros de seu grupo, alguns desses chefes passam a ter funções de defensores, mediadores, intermediários, árbitros e até juizes. Por isso mesmo, os chefes são escolhidos por terem generosidade, sabedoria, autocontrole e integridade pessoal.

Entre os comanches da América do Norte, quando um homem comum é lesado por outro, pede a um guerreiro prestigiado que o defenda. Se a mulher de um homem é roubada por outro, o defensor comanche intercede para que este a devolva e indenize o lesado. Isso só acontece porque o defensor considera justa a reivindicação, agindo de acordo com os valores morais da tribo.

Entre os cheyennes, famosos caçadores de búfalo que se organizavam em bandos liderados por um chefe, havia uma associação de guerreiros vindos de todos esses bandos. Os soldados, como eram chamados esses guerreiros, podiam exercer os poderes de juiz e, como tinham armas, impor suas decisões. Assumiam as funções simultâneas de juiz e polícia informais. Até em disputas familiares alguns deles se metiam (Shirley, 1987).

Um cheyenne chamado Lobo Negro contou suas desventuras de jovem, das quais se arrependeu, para o antropólogo que estudou sua tribo. Contava também sua história para os jovens que, após seu castigo, conhecera num acampamento distante de sua antiga casa aconselhando-os sobre o comportamento correto para com os outros. No lugar em que havia nascido, era um "malandro" que vivia roubando carne da despensa alheia, pegando cavalos sem pedir licença, xingando e desrespeitando as pessoas.

Os guerreiros-soldados de seu acampamento haviam proibido que se pegassem cavalos sem permissão do dono. Mas Lobo Negro desobedeceu e levou dois belos cavalos adorados pelos seus donos, para bem longe. No quarto dia de cavalgada, foi apanhado pelos guerreiros, que em seguida lhe tiraram os cavalos, as roupas, os mantimentos e o espancaram até deixá-lo caído no chão. Como estava num lugar deserto, quase morreu; foi salvo três dias após por um chefe de outro bando cheyenne que, apiedado dele, levou-o para seu acampamento.

Lá chegando, o chefe chamou os outros homens, fumou seu cachimbo com todos e disse: "Agora conte a verdade. Você foi apanhado por inimigos e despojado de seus pertences ou foi outra coisa? Você me viu fumar o cachimbo, você o tocou com os seus próprios lábios. Isto é para ajudá-lo a falar a verdade. Se você nos contar tudo honestamente, Mayun lhe ajudará". Lobo Negro contou tudo. O chefe, depois, de lhe falar sobre a sociedade cheyenne e afirmar-lhe que um membro da tribo não rouba outro, apenas os povos de outras tribos, recomendou-lhe juntar-se a uma sociedade de soldados para aprender o bom comportamento (Llewellyn e Hoebel, 1941).

Outra tribo norte-americana, os iuroques da Califórnia, desenvolveu um sistema mais próximo da arbitragem conhecida por nós. Cada uma das partes em disputa escolhia pessoas com as quais não tivessem nenhum laço de parentesco e que pertencessem a outras aldeias, apresentando-lhes todas as evidências. Esses árbitros, depois de ouvi-las, assim como outras fontes de informação, confabulavam e chegavam a um veredicto. Todos pressionavam para que a parte derrotada aceitasse a decisão, baseada na noção de justiça da tribo (Gluckman, 1967). Não havia polícia como um corpo de profissionais, separado do resto da sociedade para impor decisões jurídicas.

O antropólogo inglês, Evans-Pritchard, que estudou os núeres, povo tribal africano que vive na Etiópia, descreveu o modo como esses pastores altos resolviam os casos de assassinato dentro da tribo. Quando um homem mata outro de sua própria aldeia ou de uma aldeia vizinha com a qual a sua mantenha muitas relações sociais, a vingança de sangue é logo resolvida. As pessoas precisam continuar a conviver e, com certeza, haverá entre elas muitos laços sociais criados pelo casamento e pela cooperação no trabalho.

Quando o assassino é de uma aldeia mais distante, um longo processo de negociação se inicia. A primeira medida do assassino é esconder-se na casa do chefe pele-de-leopardo, que é um santuário porque, devido à sua missão de fazer os acordos entre os que rnantêm rixa, o chefe é considerado sagrado pelos núeres. Enquanto está lá, os vingadores o vigiam para ver se conseguem matá-lo com as suas lanças, caso se aventure a sair. Mas essa vigilância, diz Evans-Pritchard, é mais para constar, pois eles não são muito cuidadosos.

O chefe pele-de-leopardo, que será o mediador ritual do conflito, começa as negociações. Estas são feitas com vagar, verificando-se primeiro se os parentes do assassino estão dispostos a pagar a indenização e quanto de gado possuem. É raro que os parentes se recusem a pagar, a não ser que morem numa aldeia muito distante dos vingadores ou que já haja muitas vinganças mal resolvidas entre os respectivos grupos de parentes - o do assassino e o do assassinado. Em seguida, o chefe visita os parentes do morto e lhes pede que aceitem gado em troca da sua vida. Estes sempre recusam a oferta, pois é um ponto de honra mostrar-se obstinado; mas isto não quer dizer que não venham a aceitá-la. O chefe, sabendo disso, insiste e pode chegar a ameaçá-los com sua maldição, muito temida entre os núeres. Por fim, os parentes mais distantes, que não vão receber nenhuma vaca e não precisam se mostrar tão orgulhosos, conversam e argumentam com os parentes mais próximos do morto, para que estes aceitem as propostas do chefe.

Esta negociação continua até o limite dos argumentos do chefe; os parentes finalmente cedem. Continuam afirmando, porém, que só aceitaram a indenização material para honrar o chefe, e não por concordar que a vida do morto possa ser trocada por gado. Mas assim é. Não porque o chefe possa impor a sua decisão pela ameaça do uso da força, que não tem a seu dispor, mas porque negocia, aconselha e ameaça com seus poderes sobrenaturais os grupos em conflito (Evans-Pritchard, 1978).

Como a memória dos núeres é longa e são muitos os casos de conflito entre os diversos grupos e subgrupos de parentes (linhagens e sublinhagens), acontece uma situação singular entre eles. Um núer nunca nega que cometeu algum ato prejudicial a outro núer, seja roubo, ferimento ou morte. Pela reciprocidade, todos os danos causados a outras pessoas podem ser justificados como resposta ou retribuição a antigas disputas ou antigas rixas. É como se todos os grupos estivessem devendo algo aos demais e esta dívida pudesse ser invocada para explicar o dano causado no momento presente. Mas, o sucesso em conseguir convencer os outros de que se trata de um dano justificado depende da pessoa e de sua capacidade de mobilizar aliados nos diversos grupos (Evans-Pritchard, 1978). Não existe, pois, entre eles, a idéia de crime derivada de uma lei escrita, válida para todos. Existe, sim, a idéia de um mal causado a outrem como retribuição a um mal anterior, impedido de eternizar-se somente pelos processos de negociação.

As sociedades humanas, inclusive algumas primitivas, desenvolveram outros meios de evitar que a capacidade destrutiva do ser humano ameace desfazer a sociedade. Os sacrifícios, de animais ou de pessoas, comuns nas civilizações grega, egípcia, incaica e asteca, tinham o mesmo objetivo de interromper essa cadeia de vinganças que poderia prolongar-se indefinidamente. O bode expiatório servia para selar a paz entre os que estavam em conflito. Até hoje, diante de uma crise social, uma vítima inocente é escolhida não por seus supostos crimes, mas porque tendo sinais próprios do monstruoso, passa a incorporar todo o mal que atinge a coletividade. Esta descarrega naquela sua violência sagrada (Girard, 1972).

Qualquer coisa, pessoa ou pensamento pode ser colocado na posição de vítima contagiada e contagiante, por isso excluída quando o mal é cósmico. Mas isso não se aplica aos crimes individuais efetivamente cometidos contra outrem, que têm, em qualquer sociedade primitiva, meios próprios de restabelecer a paz e a justiça. A vítima sagrada é, no entanto, muito eficaz para explicar fenômenos em que coletividades ou comunidades se unem para extirpar de seu seio estranhos que supostamente ameaçam sua ordem interna : linchamentos físicos e morais, genocídios, terrorismo, extermínios, ou limpezas étnicas, marcam de forma violenta e cruel as fronteiras entre os excluídos e os incluídos na comunidade. Seu caráter sagrado advém daí e seu horror, do fato de que a vítima sacrificial é sempre inocente.

Essa simbólica cósmica, no plano religioso, teria sido superada com o martírio do próprio Cristo, que sofreu e morreu por toda a humanidade, numa tentativa de apaziguá-la. No plano político, com a invenção do Estado e suas instituições de pena e castigo em nome de toda a sociedade, superando a vingança pessoal e de pequenos grupos. No entanto, nenhuma dessas alternativas à violência sagrada teve completo êxito, pois continua a vigorar a vingança coletiva carregada de emoção ou pathos contra pessoas que exibem sinais de vitimas sacrificiais (Kearney, 1985).

A VIOLÊNCIATRIBAL NO MUNDO DE HOJE

Foram muitas as respostas dadas pelas tribos primitivas ao contato com os europeus modernos. A tribo norte-americana dos navajos, depois de derrotada pelo Exército dos Estados Unidos, enviou seus jovens mais capazes para estudar Direito nas universidades americanas. Assim, ficaram com o conhecimento tanto das leis costumeiras dos navajos quanto das leis americanas. Movendo ações na Justiça, os advogados navajos puderam usar as leis dos vencedores para manter a maior parte das terras tribais, sem perder seus costumes e suas tradições (Davis, 1973).

Em outros países, como o Brasil, povos tribais tornaram-se minorias cujos direitos passaram a ser defendidos pela Constituição do país onde vivem. No Brasil, várias tribos foram reunidas, após terem sido removidas de seus antigos territórios, no Parque Nacional do Xingu, onde convivem pacificamente e lutam juntas pelos seus direitos. Outros parques vêm sendo demarcados para garantir o direito à terra das tribos que viviam no Brasil muito tempo antes de ele ser "descoberto". Aqui os índios são tutelados pela Fundação Nacional do Índio (Funai), órgão governamental que conta com uma equipe de advogados para defendê-los em qualquer conflito, inclusive quando acusados de crimes comuns contra os brancos.

Após a independência dos países colonizados, guerras tribais, antes reprimidas pelas nações européias colonizadoras, voltaram a acontecer. Isso se deu especialmente na África, cujos povos não foram quase completamente exterminados, como aconteceu na América. Na África do Sul, por exemplo, os conflitos entre os chosas e os zulus já fizeram milhares de mortos. Em Ruanda, que antes da colonização já era um reino, os invasores tutsis dominavam a maioria dos agricultores hutus. Quando da independência, os conflitos entre as duas tribos fizeram muitos mortos (Gluckman, 1967). Em 1994, a carnificina atingiu centenas de milhares de mortos, quando os hutus tentavam recuperar a autonomia perdida.

Mas na Nigéria não ocorreu o que se previu: o país seria destruído e sua população dizimada pelos conflitos intertribais. As tribos eram muitas e os grupos religiosos em que se subdividiam também, de modo que ficaram obrigadas a conviver e a partilhar um mesmo território nacional. Uma delas, os iorubas - que incluem muçulmanos e cristãos -, pôde fazer então o papel de mediador e conseguiu reunir numa mesa de negociação todas as outras. Hoje, passado o perigo da guerra civil, a Nigéria é um país pacificado e independente.

Nas sociedades estatais modernas, a reciprocidade e a vingança também existem na idéia da retribuição, seja nos presentes de aniversário, seja na concepção popular de justiça, que pretende que ao mal causado corresponda uma penalidade equivalente ("olho por olho, dente por dente"). Até mesmo o sistema penal moderno, baseado na prisão, não descartou inteiramente a idéia da retribuição; tampouco os sistemas de previdência social.

Assim, é possível dizer que os aspectos mais violentos e irracionais encontrados na sociedade tribal também estão hoje presentes, em formas ainda mais perversas, nas sociedades ditas modernas, marcadas por profundas desigualdades sociais. O sentimento de vingança em relação aos presidiários de origem pobre, que gera o apoio à matança efetuada pela polícia de alguns estados, é o exemplo mais claro disso. A vingança interpessoal regula as atitudes de muitos com relação à prisão e, mais claramente ainda, com relação às tentativas de fazer "justiça" pelas próprias mãos em sociedades desiguais. O apoio a chacinas e a grupos de extermínio que atuam nos bairros mais pobres vem desse sentimento de vingança imediata, numa sociedade complexa que já perdeu os rituais e as instituições das ,sociedades primitivas e que não conta com seus meios de controle social nem mesmo com seus meios informais de negociação.

A preocupação com o domínio do território, junto com interesses econômicos poderosos, é parte importante das nações modernas, provocando guerras mundiais em que milhares de pessoas são dizimadas com armas de grande poder de destruição, inimagináveis para um homem das sociedades ditas primitivas ou tribais. Nas metrópoles modernas, em menor escala, encontra-se o domínio do território nas turmas de rua, nas gangues de bairro e nas quadrilhas de criminosos profissionais, que passam a ocupá-lo e sentir-se "donos da rua". Suas lutas constantes, suas guerras intermináveis devem-se a esse extremo zelo em afirmar um controle fictício do ponto de vista legal, pois o território defendido tão ferozmente é, na verdade, público, ou seja, de todos. No entanto, a defesa do local passa a ter grande importância na afirmação da identidade masculina dos jovens do lugar.

A África de hoje, assim como a Europa, tem obrigado antropólogos a pensar cada vez mais sobre os extremos e a destrutividade do tribalismo no mundo moderno. Quando a identidade étnica leva ao extremo a lógica da exclusão da comunidade e passa a considerar os outros como totalmente diferentes e inimigos, as possibilidades de destruição pela guerra aumentam perigosamente. Isso porque, sob a influência do pensamento que divide as identidades, o bem e o mal, o nós e os outros em mundos opostos ou entidades metafísicas, o tribalismo adquiriu contornos rígidos e perversos. É o que explica os terrores justificados pela "limpeza étnica", seja contra os judeus e os ciganos durante a Segunda Guerra Mundial, seja contra os sérvios na Bósnia de 1995. Além disso, no mundo moderno os recursos técnicos para a guerra capacitam seres humanos a matar seres humanos numa dimensão desconhecida nas sociedades tribais antigas. Nos países do mundo moderno, como deixaram de funcionar os controles rituais, informais e pessoais prevalecentes nas comunidades de pequena escala, os perigos da liberdade humana aumentaram infinitamente.

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