SOBRE A PENA DE MORTE

Hélio Bicudo

(Do livro: "Violência – o Brasil cruel e sem maquiagem", Hélio Bicudo, Ed. Moderna, São Paulo, 1994, pág. 84 a 96)

 

Crimes violentos envolvendo celebridades - como o assassinato da atriz Daniela Perez - ou caracterizados por extrema crueldade por exemplo, o seqüestro seguido de morte da menina Miriam Brandão, em Belo Horizonte - são divulgados com grande sensacionalismo por toda a imprensa. E nessas ocasiões sempre volta à tona a questão da legalização da pena de morte no país.

Falamos em legalização porque a pena de morte extralegal já se encontra institucionalizada na sociedade brasileira há muito tempo. Em São Paulo a Polícia mata e divulga o número de assassinatos cometidos por seis integrantes: só em 1992 foram mais de 1.500 pessoas, entre crianças, meninas, meninos, jovens, trabalhadores e, inclusive, delinqüentes, além de mais de cem detentos massacrados no Presídio do Carandiru. O exemplo de São Paulo pode ser estendido ao resto do país, onde a Polícia e as organizações parapoliciais - os esquadrões da morte e os justiceiros matam impunemente nas cidades e nos campos. Em Brasília, no dia 2 de fevereiro de 1993, um antigo membro dos chamados "setores da inteligência do Exército" - o major Sebastião Curió - protagonizou uma operação em tudo semelhante à atuação dos esquadrões da morte. Ele matou um adolescente e feriu outro, ambos desarmados, sob a alegação de que os rapazes, supostamente, furtavam mansões de militares na periferia da cidade.

Ora, se a pena de morte tivesse algum conteúdo intimidativo, ou seja, funcionasse como elemento de prevenção geral, os delitos violentos no Brasil apresentariam índices de incidência cada vez menores. Mas as evidências negam essa hipótese.

Na verdade, grande parte da responsabilidade pelo aumento dos índices de criminalidade pode ser creditada à propaganda direta ou subliminar da violência, que, graças ao poder da mídia eletrônica, empolga o conjunto da população. O rádio e a televisão multiplicam os fatos, e eles penetram em nossas casas como se estivessem sendo praticados naquele momento, diante de nossos olhos. Sempre existiu violência contra o povo. Assassinatos, roubos e crimes sexuais são praticados há tempos – quem se der ao trabalho de pesquisar o noticiário dos jornais de décadas passadas, irá encontrar os mesmos crimes, executados por tarados sexuais, homicidas cruéis ou assaltantes audazes.

Entretanto, esses delitos não recebiam uma divulgação maciça, sensibilizando tão-somente as comunidades onde ocorriam. Hoje, um crime cometido em qualquer lugar repercute imediatamente em todo o país e até fora dele. Afinal os meios de comunicação estão incessantemente à cata do sensacionalismo, que aumenta os índices de audiência, com reflexos evidentes no faturamento das empresas de rádio e televisão.

Então, o povo passa a acreditar em um nível de violência que, apesar de elevado e de exigir medidas de contenção, lhe é apresentado como de uma intensidade insuportável e irremediável. E cujo único antídoto possível encontra-se na violência maior - a pena de morte.

No artigo "Democracia e pena de morte: as antinomias de um debate", publicado na edição n.º 13 (maio/agosto de 1992) de Travessia, revista do migrante, o professor Sérgio Adorno adverte:

Pesquisa conduzida pelo Datafolha, em setembro de 1991, revelou que 48% dos 7.018 brasileiros entrevistados votariam a favor da pena de morte. O perfil dos cidadãos favoráveis à pena de morte é constituído por indivíduos majoritariamente do sexo masculino, com idade entre 26 e 40 anos, com escolaridade até primeiro grau, simpatizantes dos partidos políticos de direita, habitantes das regiões Norte e Centro-Oeste e moradores dos municípios de médio porte. Ao que tudo indica esse perfil é semelhante ao perfil das forças sociais e políticas conservadoras.

Curioso é observar que, mesmo em um dos templos sagrados do aprendizado do Direito - a Faculdade de Direito da USP -, é possível encontrar esses defensores.

Levantamento promovido pelo Cediso (Centro de Estudos Direito e Sociedade), da Faculdade de Direito da USP, encontrou, em uma amostra de quatrocentos futuros advogados, 22% de estudantes favoráveis à aplicação da pena capital, sobretudo para estupro (81%), seqüestro (75%) e roubo (63%), seguidos de morte. Do mesmo modo, o perfil desses futuros bacharéis associa-se ao conservadorismo. Entre aqueles que opinaram favoravelmente, 50% votaria em candidato do PDS (atual PPR), Paulo Maluf, à Presidência da República. Aqui também parece haver coincidência entre opções político-ideológicas e as atitudes favoráveis à adoção de medidas extremas de contenção da violência criminal. Essas coincidências parecem ser tão sólidas e arraigadas a ponto de anular o próprio Direito moderno, cujo principio fundamental é, como se sabe, preservar o mais importante bem das coletividades humanas - a vida - contra tudo o que o limite ou o coloque em risco, parta de quem quer que seja, dos indivíduos privados ao Estado. Mais curioso é notar que inclinações favoráveis à pena de morte são igualmente percebidas entre presos, justamente os candidatos a essa pena. Enquete realizada na Casa de Detenção de São Paulo verificou que 44% dos presos manifestaram opinião favorável. Entre esses, encontram-se 50% dos que cometeram latrocínio (roubo seguido de morte) e 45% daqueles que praticaram homicídio, modalidades delituosas para as quais se reivindica a legalização da pena capital. Em outra pesquisa, realizada junto à mesma população, pôde-se confirmar essas inclinações. De modo geral, em virtude de suas experiências de vida e do contato, quase sempre violento, com as agencias de contenção à criminalidade, mais particularmente com a Polícia, os delinqüentes aca bam internalizando o autoritarismo dos agentes e das instituições de controle da ordem pública. Acreditam que para diminuir os crime, notadamente os mais violentos, é necessário empregar uma mão forte, capaz de intimidar os delinqüentes.

Contra a força da violência, apenas uma força superior e temível pode contê-la. Nesse particular, a despeito das diferentes posições sociais que diversos cidadãos podem ocupar na sociedade, em algo alguns deles estão de acordo: tanto cidadãos "de bem", respeitadores da lei e da ordem, conservadores em suas convicções político-ideológicas, quanto aqueles que afrontaram essa mesma ordem social, rompendo com o "pacto de bem-viver", aceitam a pena de morte como solução para a criminalidade urbana violenta.

Mas não é só. Temos uma Polícia despreparada, dividida em dois segmentos que disputam espaço para mostrar "eficiência" no desempenho de suas atividades e, assim , impor, acima do bem comum, o seu corporativismo. Temos uma magistratura e um Ministério Público muitas vezes inoperantes, preocupados com as exterioridades do poder representado por seus juízes e promotores públicos, julgando apenas fatos e não pessoas. E temos um sistema penitenciário falido, incapaz de encontrar suas verdadeiras finalidades centradas no ideal de recuperação dos criminosos. Diante desse quadro, o Povo, sentindo-se inteiramente desprotegido, busca a solução para o problema da violência na pena de morte. E, evidentemente, essa não é a solução.

Em 1985, uma onda de delitos graves abateu-se sobre a comunidade de São Mateus, na Zona Leste da cidade de São Paulo, uma das áreas mais carentes da periferia paulistana. Abalados, os habitantes da região perguntaram-se se a pena de morte não coibiria a violência que os apanhava tão desprevenidos. As mulheres de São Mateus resolveram promover um debate sobre a questão. Ouviram pessoas, chamaram especialistas e, por fim, concluíram que a pena de morte iria alcançar principalmente os mais pobres, aqueles que são os clientes preferenciais de nossas prisões. Portanto, a pena de morte consistiria em mais um instrumento do Estado para reprimir e, em conseqüência, oprimir o povo.

A pena de morte não solucionou o problema da criminalidade violenta sequer nos países que a adotaram ou ainda a adotam.

Nações civilizadas, como a Inglaterra, a França, a Alemanha e a Itália, já aboliram a pena de morte. Em outras, como nos Estados Unidos 39 estados norte-americanos aplicam a pena capital - não se pode dizer que a criminalidade tenha arrefecido, embora o número de execuções aumente a cada ano. Ali, segundo a reportagem An eye for an eye, publicada em 24 de janeiro de 1983 na revista Time, usam-se a cadeira elétrica, a câmara de gás, o fuzilamento, o enforcamento e até overdose de tóxicos. Naquele ano, registraram-se 9,7 homicídios por 100 mil habitantes. No entanto, em 1960 ocorreram 4,7 homicídios por 100 mil habitantes, cifra que pulou para 9,4 em 1973 e 9,8 em 1993. Enquanto isso, no Canadá a taxa caiu de 3,09 em 1975 - quando se aboliu a pena de morte - para 2,74 em 1983. E no Irã, em 198 I, no auge da campanha contra o uso de drogas, 459 pessoas foram executadas em 17 meses, o que não amenizou o problema do narcotráfico, já que continuam ocorrendo numerosas execuções pelos mesmos motivos.

Como se vê, a pena morte nada resolveu nos Estados Unidos, onde a criminalidade cresce de maneira espantosa, ou no resto do mundo. Mas também é certo que o povo em geral, tanto nos Estados Unidos como no Brasil, diante do aumento da criminalidade violenta, tende a aprovar a pena de morte (revista Veja, de 12 de agosto de 1984). Mas isso se deve, de um modo geral, à falta de maiores esclarecimentos e, em particular, a motivações emocionais, estimuladas por uma propaganda sistemática da violência. No Brasil, frente à inoperância de uma Polícia desfalcada em seus quadros e muitas vezes até corrupta e tendo em vista um poder Judiciário elitista, cada vez mais afastado dos problemas que afligem a população, clama-se por uma solução. E a pena de morte pode parecer que é a solução. Mas não o é, nem aqui nem em qualquer outro lugar, como demonstram as estatísticas.

O MITO DA INTIMIDAÇÃO

Na Inglaterra, de 250 criminosos enforcados no início do século XX, 170 confessaram ter assistido a uma ou duas execuções capitais. E também nos Estados Unidos a pena de morte - seja executada em público, como no passado, ou restrita, presenciada por um número limitado de testemunhas - nunca produziu efeitos intimidativos. (De outro modo, cidades como Nova Iguaçu ou mesmo São Paulo, palcos de assassínios de delinqüentes e de marginais pela Polícia e pelos esquadrões da morte, seriam o paraíso da Terra.) Em 1983, o então governador de Nova Iorque, Mario M. Cuomo, afirmou não existirem evidências de que a pena de morte fosse intimidativa. Aliás, em 1978, a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos já havia chegado à mesma conclusão.

Ora, a intimidação, o grande argumento para a inclusão e morte na legislação, requer, antes de tudo, que o delinqüente possa avaliar os prováveis custos de mo se enquadrariam os homicídios cometidos por indivíduos sob o efeito de drogas ou não-lúcidos no momento do delito? O professor de Direito Anthony Amsterdam, da Universidade de Nova Iorque, questiona se alguém faz a si mesmo perguntas como: "eu tenho medo da pena de morte, eu não estaria intimidado?" Ele concluiu que as pessoas não cometem homicídios por inúmeras razões, entre as quais não se inclui a existência ou não da pena de morte.

CRUEL E IRREPARÁVEL

Há outros aspectos relevantes. A pena de morte é cruel. Nos Estados Unidos, em 1983, I.137 i condenados, entre eles uma dúzia de menores de 20 anos, aguardavam o momento da execução nos chamados "corredores da morte". O sofrimento de esperar a "sua vez de morrer", assistindo à passagem dos demais condenados à cadeira elétrica, constitui uma brutalidade inominável.

E, para aumentar o peso dramático da situação, existem as falhas mecânicas: se o primeiro choque não for suficiente, repete-se a operação uma ou duas vezes ... e o condenado é literalmente fritado em vida.

Mas o questionamento da pena de morte não termina aí. Como entender que exista uma morte ilegal e outra legal?. O que transforma a morte aplicada pelo Estado em morte legal? Se eu rapto alguém e confino essa pessoa em um quarto contra a sua vontade, isso é um seqüestro. E se eu a mato, cometi um assassinato. Mas, se eu sou um agente do Estado e visto um uniforme, o primeiro fato passa a chamar-se prisão e o segundo, execução de pena de morte.

E há mais: o que dizer da possibilidade, sempre presente, de se executar inocentes? Nos Estados Unidos, ficaram célebres os casos Sacco-Vanzetti, Hauptmann e casal Rosenberg.

Somem-se, ainda, as deficiências na defesa dos réus pobres. Delinqüentes ricos dispõem de facilidades para contratar advogados hábeis, que intervêm já na fase do inquérito policial - por exemplo, recorrendo ao tráfico de influências, ou mesmo ao pagamento de propinas, para manipular as provas que depois serão levadas à apreciação do juiz. Enquanto isso, os réus pobres têm contra si o peso das provas colhidas unilateralmente pela Polícia, de modo que, em juízo, a sua condenação é uma decorrência obrigatória. Condenado e executado, o mesmo que posteriormente se verifique a sua inocência, a reparação se reduziria a uma indenização a seus possíveis herdeiros. Como se vê, a pena de morte traz uma enorme carga de autoritarismo, tanto que constitui um instrumento bastante apreciado, e até usado em larga escala, no grupo das nações totalitárias. E não é por outro motivo que no VI Congresso das Nações Unidas sobre prevenção do delito e tratamento do delinqüente os representantes do então bloco comunista e dos países árabes colocaram-se francamente favoráveis à pena de morte.

A FALÁCIA DOS CUSTOS MENORES

Um argumento que vez por outra aparece no debate sobre a pena de morte refere-se ao alto custo, para a sociedade, da manutenção de um réu condenado no sistema penitenciário. Sugere-se que nos casos de períodos longos, determinados pela imposição de penas nos delitos mais graves, seria mais econômico sentenciá-lo à morte e executá-lo.

Trata-se de um argumento que não resiste a uma análise ética, pois não se pode avaliar a vida apor padrões econômicos, para então recomendar a morte. Além disso, a proposta não se fundamenta em quaisquer dados objetivos. Calcula-se que, nos Estados Unidos, o custo de uma prisão perpétua seja de 500 mil dólares, contra uma despesa média de l milhão de dólares de um processo de condenação à morte, montante que pode superar a casa dos 5 milhões de dólares.

Essas cifras elevadas decorrem da irreversibilidade da pena de morte. Um processo que visa eliminar a vida de uma pessoa deve, obrigatoriamente, estar cercado de garantias, para reduzir as possibilidades de erro; pressupõe alto grau de especialização dos profissionais envolvidos nas investigações que apontam a autoria do crime; exige uma decisão preliminar fundamentada na perfeição técnica; e requer a multiplicação de instâncias julgadoras, aumentando assim a margem de segurança das conclusões judiciais.

Segundo a Anistia Internacional, em 1990, os processos de indiciados executados nos Estados Unidos duraram em média 7 anos e 11 meses. O custo de um processo desse tipo, transcorrido num período entre 8 e 15 anos, é invariavelmente superior aos gastos com um preso, por mais longo que seja o período de reclusão.

A questão da violência jamais encontrará solução na violência, venha ela de onde vier, do próprio povo ou dos poderes constituídos. Nas nações Européias chamadas "abolicionistas", a incidência de crimes violentos diminuiu a partir da abolição da pena de morte. Mesmo assim, diz-se que os índices de violência crescem vertiginosamente nesses países. Na França, por exemplo, setores da direita mais radical clamam pelo restabelecimento da pena de morte.

Alegam que o aumento da violência deve-se, sobretudo, ao fluxo de migrantes do Terceiro Mundo (cuja adaptação a uma nova vida, cheia de tensões, diga-se, não é cuidada pelos organismos do Estado). Essas pessoas seriam, então, alvo das grandes pressões nos sofisticados centros urbanos onde passaram a viver, e daí explode, muitas vezes, a violência.

No entanto, documentos publicados pelos ministérios franceses do Interior e da Segurança Pública e da Defesa, com dados estatísticos relativos a 1991, desmentem que tal aumento irrefreável da violência origine-se da abolição da pena de morte. Segundo o relatório, no início da década de 60, os crimes contra as pessoas representavam 10% do total da criminalidade. Nos anos 90, esse índice estabilizou-se em menos de 4%, permanecendo também estável o número de homicídios (1.355 em 1991, o mesmo de 1990).

Já a Polícia nacional francesa registrou os seguintes dados em 1991: 77% de roubos (o mesmo percentual de 1990); 74% de infrações à legislação sobre tóxicos, à paz pública e aos regulamentos (idem em 1990); 60% dos crimes contra as pessoas (idem em 1990); 35% de processos por infrações econômicas e financeiras (36% em 1990). No mesmo ano, a Polícia provincial francesa apresentou os seguintes fatos: 23% de roubos (o mesmo percentual de 1990); 26% de infrações à legislação sobre tóxicos, à paz pública e aos regulamentos (idem em 1990); 40% dos crimes contra as pessoas (idem em 1990); 65% de processos por infrações econômicas e financeiras (64% em 1990).

E o fenômeno não privilegia apenas as grandes cidades dos países ricos do hemisfério norte. Ele ocorre também nos países pobres. No Brasil, diante das condições de vida no campo, levas de trabalhadores rurais acorrem às cidades à procura de emprego, de educação, de saúde, enfim,

do mínimo exigível para uma existência digna. Como já se ressaltou, na cidade grande, sem infra-estrutura, a família se desintegra e seus membros podem ceder aos apelos da delinqüência........

Convém ainda lembrar a tradicional questão: "devem-se extirpar os ramos podres de uma árvore para que ela possa sobreviver".

Isso tem ensejado grandes massacres, porque a determinação dos galhos a serem cortados parte sempre daqueles que dominam a sociedade num dado instante. Foi, sem dúvida, a partir da dicotomia "fins e meios" que o nazismo sacrificou milhões de vidas humanas.

No Brasil, país habitado por milhões de pessoas marginalizadas por uma ordem social reconhecidamente injusta, a legalização da pena de morte apenas delegaria ao Estado mais poder para a opressão do povo, como já concluíram as mulheres de São Mateus. No caso brasileiro, a pena de morte irá agravar a problemática da morte em vez de, como se pretende, defender a vida.

E finalmente, na ordem constitucional estabelecida, a pena de morte é indefensável, conforme estabelece o Artigo 5º, da Lei Maior, ao assegurar, com absoluta prevalência, o direito à vida. Nesse particular, convém ressaltar a absoluta inconstitucionalidade da emenda apresentada a exame pelo Congresso Nacional, que pretende instituir um plebiscito para que o povo opte pela manutenção do sistema vigente ou pela inclusão da pena de morte.

Vejamos os principais problemas dessa proposta. Em primeiro lugar, o plebiscito nem sempre representa a melhor forma de expressão da soberania popular. As massas desinformadas, manipuladas e levadas ao paroxismo da emoção - como ocorre no Brasil - não têm condições para opinar serenamente. A esse propósito, podemos lembrar um episódio acontecido há 2.000 anos: quando Pôncio Pilatos, entre o dever e o medo, renunciou às suas atribuições específicas e entregou a decisão ao povo, a turba preferiu Barrabás a Cristo. Talvez assistamos a um espetáculo semelhante, caso o Congresso abdique de sua representatividade e de suas responsabilidades e coloque a decisão que lhe compete nas mãos do POVO. Isso não é democracia, mas democratismo, populismo ou o que mais seja, aconselhado Pelo mais nefasto comodismo na adoção de posições políticas, éticas e morais. Não vamos, mais uma vez, lavar as mãos.

Acrescente-se, por último, que a proposta e respectiva emenda em debate contrariam o Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos, aprovado pela Assembléia Geral das Nações Unidas a 16 de dezembro de 1966 (Resolução 2.200, A, XXI) e ratificado pelo governo brasileiro. Nesse acordo, os países subscritores adotam o princípio da progressividade. Isso significa que eles não podem, sob qualquer pretexto, admitir restrições ou menosprezo a nenhum dos direitos humanos fundamentais já reconhecidos ou vigentes em um dos Estados signatários, em virtude de leis, convenções, regulamentos ou costumes.

Pode-se mencionar, ainda, o Pacto de São José - celebrado na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em São José da Costa Rica, a 22 de novembro de 1969 -, que contém o mesmo teor e também foi subscrito pelo Brasil e ratificado pelo Congresso Nacional.

Em resumo: o projeto de emenda constitucional é inconstitucional e, além disso, ofende a letra e o espírito de tratados já subscritos pelo Brasil. E, se não compartilharmos da idéia de que acordos assinados resumem-se a meros farrapos de papel, temos a obrigação ética e moral de nortear a legislação ordinária no sentido por eles apontados. O primeiro, aprovado na Câmara Federal com parecer favorável de autoria do deputado Nilson Gibson e unanimemente aceito, foi encaminhado ao Senado em 1996, onde, infelizmente, ainda permanece. O segundo já passou pela aprovação da Câmara e do Senado, e encontra-se ratificado.

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, em 15 de março de 1993, o jurista Antonio Augusto Cançado Trindade dá uma lúcida contribuição à polêmica:

A reabertura do debate sobre a pena de morte no Brasil pareceria prima facie sugerir que se contempla a possibilidade, como chegou a veicular um órgão de nossa imprensa, de "revisão" de nossa posição quanto à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Muito ao contrário, ao aderir à convenção, o propósito do Brasil não pode er sido outro que o de cumprir devidamente a clara obrigação que contraiu do não-estabelecimento da pena de morte no país. Se violada essa obrigação convencional, estaria configurada a responsabilidade internacional do Brasil. Uma denúncia bizarra da convenção seria uma vergonha nacional, que nos lançaria de volta à idade das trevas em matéria de direitos humanos, e exporia o país ao opróbrio da comunidade internacional. Os direitos e garantias consagrados na convenção Americana constituem uma conquista definitiva da civilização, e qualquer sugestão de sua denúncia haveria assim de deparar-se com o pronto repúdio de nossos dirigentes mais esclarecidos, da vasta maioria de nossos círculos jurídicos e acadêmicos e das entidades de direitos humanos como porta-vozes da sociedade civil. A este repúdio somar-se-ia uma pronta mobilizarão de influentes setores da comunidade internacional dos direitos humanos, para a qual não hesitaríamos em contribuir decididamente.

Precisamos, a todo custo, ter em nossas mentes que a Constituição é a nossa Lei Maior. Tudo que possa, de qualquer maneira, solapar seus mandamentos deve ser recusado, submetendo-se todos ao seu império. Não mais nos encontramos - ou pretendemos não nos encontrar - num regime de arbítrio, em que leis ordinárias, regimentos, circulares ou avisos têm maior força que a Constituição. Vamos defendê-la com todo o nosso empenho, pois só assim estaremos abrindo os caminhos para o restabelecimento da democracia no Brasil. E, assim, faremos coro com Bernard Shaw, que disse: "até o fim dos tempos, homicídio vai gerar homicídio, sempre em nome do direito, da honra e da paz, até que os deuses se cansem de sangue e criem uma raça que possa compreender".

Concluindo, poderíamos reafirmar a convicção de que, sob quaisquer ângulos que se encare a questão, não tem sentido a legalização da pena de morte. Tal projeto esbarra em obstáculos constitucionais incontornáveis e não serve como prevenção da criminalidade. E, sob o aspecto teológico, são inaceitáveis os argumentos que apontam a violência como atitude compatível com as mensagens de amor e de compreensão contidas no Velho e no Novo Testamento, ambos indicando os rumos para uma sociedade nova, solidária, fraterna, justa e com paz.

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