RACISMO COMO FORMA DE PLANEJAMENTO RACIAL
(Do Livro: "Modernidade e Holocausto", Zygmunt Bauman, Jorge Zahar Editor, 1989, pág. 88-95)
O racismo atua segundo as especificações no contexto de um projeto de sociedade perfeita e da intenção de realizar esse projeto através de um esforço planejado e consistente. No caso do Holocausto, o projeto era o Reich de mil anos - o reino do Espírito Alemão liberado. Um reino que só tinha lugar para o Espírito Alemão. Não tinha lugar para os judeus, uma vez que os judeus não podiam ser convertidos a abraçar o Geist do Volk alemão. Essa incapacidade espiritual foi elaborada como atributo da hereditariedade, do sangue - substância que pelo menos naquela época incorporavam o outro lado da cultura, o território que a cultura não podia sonhar em cultivar, um sertão que jamais se tornaria objeto de jardinagem. (As perspectivas da engenharia genética ainda não eram seriamente consideradas.)
A revolução nazista foi um exercício de engenharia social em grandiosa escala. O "gado racial" era o elo-chave na cadeia das medidas de planejamento. No conjunto de metas oficiais da política nazista, publicadas em inglês por iniciativa de Ribbentrop com o propósito de propaganda internacional e por essa razão expressa sem linguagem cautelosa e cuidadosamente moderada, o dr. Arthur Gutt, chefe do Departamento Nacional de Higiene do Ministério do Interior, define como principal tarefa do governo nazista "uma política ativa que busca consistentemente a preservação da saúde racial" e explica a estratégia que isso necessariamente implicava:
"Se facilitarmos a reprodução do gado saudável com a seleção sistemática e a eliminação de elementos doentios, poderemos melhorar os padrões físicos, não talvez da atual geração, mas daquelas que nos sucederão."
Gutt não tinha dúvida de que a seleção e eliminação que tal política contemplava ia "de par com as linhas universalmente adotadas em conformidade com as pesquisas de Koch, Lister, Pasteur e outros cientistas famosos", constituindo portanto uma extensão lógica - com efeito, uma culminação - do avanço da ciência moderna.
O dr. Walter Gross, chefe do Bureau de Instrução sobre Política Populacional e Bem-Estar Racial, explicou detalhadamente o lado prático da política racial: reverter a tendência de "natalidade declinante ente os habitantes mais ajustados e de reprodução desenfreada dos incapazes hereditários, dos mentalmente deficientes, dos imbecis e criminosos hereditários etc."
Como escreve para um púbico internacional improvavelmente simpático às políticas dos nazistas, não estorvados como era por coisas tão irracionais como a opinião pública ou o pluralismo político de ver as realizações da ciência e tecnologia modernas levadas a suas últimas conseqüências, Gross não se aventura além da necessidade de esterilizar os incapazes hereditários.
A realidade da política racial era, no entanto, muito mais horripilante. Ao contrário do que dava a entender Gutt, os líderes nazistas não viam razão para restringir suas preocupações àqueles "que nos sucederão".
De acordo com os recursos disponíveis, puseram-se a melhorar a geração presente.
A estrada imperial para esse objetivo passava pela remoção forçada de unwertes Leben (vida inútil). Tudo era usado para alcançar essa meta. Dependendo das circunstâncias, falava-se em "eliminar", livrar-se de", "evacuar" ou "reduzir" (leia-se "exterminar").
Seguindo as ordens de Hitler de 1º de setembro de 1939, foram criados centros em Brandeburgo, Hadamar, Sonnenstein e Eichberg que se disfarçavam sob duas mentiras: eram chamados à boca apequena, entre os iniciados, de "institutos de eutanásia", mas para ao amplo consumo apresentados sob nomes ainda mais enganadores e ilusórios, como Centro de Caridade para "Cuidados Institucionais" ou "transporte de doentes" - ou mesmo o inofensivo código "T4" (do endereço rua Tiergarten 4, Berlim, onde ficava o escritório de coordenação de toda a operação de morticínio).
Quando a ordem teve que ser anulada em 28 de agosto de 1941 em função da grita de eminentes autoridades da Igreja, o princípio de "administrar ativamente as tendências populacionais" não foi de modo algum abandonado. Apenas desviou o foco, como a tecnologia do gás que a campanha de eutanásia ajudou a desenvolver, para um alvo diferentes: os judeus. E para locais diferentes, como Sobibor ou Chelmno.
O tempo todo o alvo foi a unwertes Leben. Para os planejadores nazistas da sociedade perfeita, o projeto que perseguiam e estavam decididos a realizar através da engenharia social dividia a vida humana em útil e inútil, com ou sem valor, aquela a ser amorosamente cultivada e receber Lebensraum (espaço vital), a outra a ser "afastada" ou - se o afastamento se revelasse infactível - exterminada.
Os simplesmente alienígenas não eram objeto de política estritamente racial: a eles podiam ser aplicadas velhas e provadas estratégias tradicionalmente associadas à inimizade competitiva - deviam ser mantidos além de fronteiras estreitamente vigiadas. Os deficientes físicos ou mentais eram um caso mais difícil e exigiam uma política nova, original: não podiam ser expulsos ou colocadas atrás de cercas, uma vez que não pertenciam de direito a nenhuma das "outras raças", embora indignos também de participar do Reich de mil anos.
Os judeus constituíam caso essencialmente similar.
Não eram uma raça como as outras; eram uma anti-raça, uma aça que minava e envenenava todas as outras, que solapava não apenas a identidade de qualquer raça em particular, mas a própria ordem racial . (Lembrem-se dos judeus como a "nação sem nacionalidade', como o inimigo incurável da ordem nacional como tal.). Com aprovação e prazer, Roseberg cita o conceito autodepreciativo de Weiniger para os judeus como "uma invisível rede coesiva de fungo limoso (plasmódio) que existe desde tempos imemoriais e se espalha por toda a terra".
Assim, o isolamento dos judeus só podia ser um paliativo, ume estágio no caminho para a meta final.
A questão possivelmente não seria resolvida com a simples extirpação dos judeus da Alemanha.
Mesmo vivendo bem longe das fronteiras alemãs, os judeus continuariam a produzir erosão e desintegração da lógica natural do universo.
Ao ordenar as sua tropas que lutassem pela supremacia da raça alem, Hitler acreditava que a guerra que ele desencadeava travava-se em nome de todas as raças, era em suma um serviço que prestava à humanidade racialmente organizada.
Nessa concepção de engenharia social como obra cientificamente fundada com vistas à instituição de uma nova e melhor ordem (obra que necessariamente implica a contenção ou, de preferência, a eliminação de quaisquer fatores de ruptura), o racismo refletia de fato a visão de mundo e a prática da modernidade. E isso pelo menos em dois aspectos vitais.
Primeiro, com o Iluminismo, foi entronizada uma nova divindade, a Natureza, junto com a legitimação da ciência como seu único culto ortodoxo e dos cientistatas como seus profets e sacerdotes. Tudo, em princípio, fora aberto à investigação objetiva; tudo podia, em princípio ser conhecido de forma confiável e verdadeira. A verdade, a bondade e a beleza, aquilo que é e o que devia ser, tudo tornou-se objeto legítimo de observação sistemática e precisa. Por outro lado, só podiam legitimar-se pelo conhecimento objetivo que resultaria de tal observação.
Como George L. Mosse resumiu sua história do racismo, documentada de modo bastante convincente, "é impossível separar os questionamentos filosóficos do Iluminismo sobre a natureza e o exame que fez da moralidade e do caráter humano... (Desde) o início... a ciência natural e os ideais morais e estéticos dos antigos se deram as mãos.".
Da forma em que foi moldada pelo Iluminismo, a atividade científica era marcada por uma "tentativa de determinar o lugar exato do homem na natureza através da observação, mensurações e comparações entre grupos de homens e animais" e da "crença na unidade do corpo e da mente".
Esta última "supostamente se expressava de forma tangível, física, que podia ser medida e observada".
A frenologia (arte de medir o caráter pelas medidas do crânio) e o fisiognomonia (medir o caráter pela aparência facial) resumiam muito bem a confiança, a estratégia e a ambição da nova era científica.
O temperamento, o caráter , a inteligência, os talentos estéticos e até as inclinações políticas do homem eram determinados pela Natureza; de forma que exatamente podia-se descobrir pela diligente observação e comparação do "substrato" visível, material, mesmo do mais esquivo ou encoberto atributo espiritual. As fontes materiais das impressões sensoriais eram outras tantas chaves dos segredos da Natureza, sinais a serem lidos, registros feitos num código que a ciência tem que desvendar.
O que restava ao racismo era meramente postular uma distribuição sistemática e geneticamente reproduzida de atributos materiais do organismo humano responsáveis por traços de caráter, morais, estéticos ou políticos. Mesmo essa tarefa, porém, já tinha sido executada para eles por respeitáveis e justamente respeitados pioneiros da ciência que raramente ou quase nunca são citados entre os luminares do racismo.
Observando sine ira et studio a realidade tal como a encontraram, dificilmente poderiam deixar de perceber a palpável, concreta, material, indubitavelmente "objetiva" superioridade desfrutada pelo ocidente sobre o resto do mundo habitado.
Assim, o pai da taxinomia científica, Lineu, registrou a divisão entre os habitantes da Europa e os da África com a mesma e escrupulosa precisão que usou para definir a diferença entre crustáceos e peixes.
Só podia descrever e descreveu a raça branca como "inventiva, engenhosa, organizada e governada por leis... em contraste com os Negros, dotados de todas as qualidades negativas que faziam deles um canhoto da raça superior: eram considerados preguiçoso, desonestos e incapazes de governar a si mesmos."
O pai do "racismo científico", Gobineau, não teve que usar grande inventiva para definir os negros como uma raça de pouca inteligência, embora superdotada de sensualidade e portanto de um poder bruto aterrador (exatamente como a multidão desgovernada), e os brancos como uma raça que ama a liberdade, a honra e tudo o que é espiritual.
Em 1938, Walter Frank descreveu a perseguição aos judeus como a saga da "cultura alemã em luta contra a Judiaria Mundial".
Desde o primeiro dia do regime nazista, as instituições científicas dirigidas por professores universitários de renome em biologia, história e ciência política, foram colocadas para investigar "a questão judaica" segundo os "padrões internacionais da ciência avançada".
O Reichinstitut fur Geschichte des neuen Deutschlands (Instituto Imperial para a Pesquisa da Nova Alemanha), o Institut zum Studium der Judenfrage (Instituto para o Estudo da Questão Judaica), o Institut zur Erforschung des judischen Einflusses auf das deutsche kirchliche Leben (Instituto para Investigação da Influência Judaica na Vida eclesiástica alemã) e o famoso Institut zur Erforschung der Judenfrage, de Rosenberg, foram apenas alguns dos centros científicos que atacaram questões teóricas e práticas da "política judaica" aplicando uma metodologia culta e que nunca tiveram falta de pessoal qualificado, com credenciais acadêmicas. Uma típica exposição de princípios de sua atividade dizia que:
Toda a vida cultura, durante décadas, esteve mais ou menos sob a influência do pensamento da biologia, particularmente a partir de medos do século passado, com os ensinamentos de Darwin, Mendel e Galton, e depois desenvolvido pelos estudos de Plotz, Schallmayer, Correns, de Vries, Tschermak, Baur, Rudin, Fischer, Lenz e outros... Admitiu-se que as leis naturais descobertas para as plantas e animais deviam também ser válidas para o homem...
Além disso, a partir do Iluminismo o mundo moderno se caracterizou por uma posição ativa, planejada, em relação á natureza e a si mesmo.
A ciência não devia ser praticada por si mesmo; passou a ser vista, antes e acima de tudo, como um instrumento de poder tremendo que capacita seu detentor a melhorar a realidade, a moldá-la de acordo com os projetos e interesses humanos e a contribuir para o seu auto-aperfeiçoamento.
A jardinagem e a medicina davam os arquétipos da postura construtiva, enquanto a normalidade, a saúde e o saneamento forneciam as arquimetáforas para as tarefas e estratégias humanas na condução dos negócios humanos.
A existência e a coexistência humanas viraram objeto de planejamento e administração; como plantas num jardim ou um organismo vivo, não podiam ser abandonadas á própria conta, do contrário seriam infestadas de ervas daninhas ou destruídas por tecido cancerígeno.
A jardinagem e a medicina são formas funcionalmente distintas da mesma atividade de separar elementos úteis destinados a viver e prosperar, isolando-os de elementos perigosos e mórbidos que devem ser exterminados.
O discurso, a linguagem de Hitler era carregada de imagens de doença, infecção, infestação, putrefação, pestilência. Ele comparava o cristianismo e o bolchevismo à sífilis e à peste, falava dos judeus como bacilos, micróbios da decomposição, vermes.
"A descoberta do vírus judaico", disse a Himmler em 1942, "foi uma das grandes revoluções que tiveram lugar no mundo. A batalha em que estamos empenhados hoje é semelhante à que travaram, no século passado, Pasteur e Koch. Quantas doenças têm sua origem no vírus judaico... Só recobraremos a saúde eliminando o judeu.".
Em outubro do mesmo ano, Hitler proclamou: "Exterminando a peste, estaremos servindo á humanidade."
Os executores da vontade de Hitler falaram do extermínio dos judeus como Gesundung (cura) da Europa, Selbstreinigung (autopurificação), Judensauberung (expurgo dos judeus).
Num artigo em Das Reich publicado em 5 de novembro de 1941, Goebbels saudou a adoção do símbolo da estrela de Davi para marcar os judeus como uma medida "higiênica profilática".
Isolar os judeus de uma comunidade racialmente pura era "regra elementar de higiene, racial, nacional e social". Havia pessoas boas e pessoas más, argumentava Goebbels, assim como há bons e maus animais.
"O fato de que o judeu ainda vive entre nós não significa que ele pertence ao meio, assim como uma mosca não vira animal doméstico pelo fato de viver na casa."
A questão judaica, nas palavras do assessor de imprensa do Ministério do Exterior, era "eine Frage der politischen Hygiene" ("uma questão de higiene política").
Dois cientistas alemães de reputação mundial, o biólogo Erwin Baur e o antropólogo Martin Stammler, colocaram na linguagem comum e precisa da ciência aplicada o que os líderes da Alemanha nazista expressavam com freqüência no vocabulário emotivo e passional da política:
Todo fazendeiro sabe que se abater os melhores animais, sem deixar que procriem, continuando a criar em vez disso espécimes inferiores, seu gado vai inevitavelmente degenerar. Tal erro, que nenhum fazendeiro cometeria com seus animais e plantas de cultivo, permitimos que em larga medida persista no nosso meio. Por consideração à nossa humanidade atual, devemos cuidar para que essa pessoas inferiores não se reproduzam. Simples operação executada em poucos minutos torna isso possível sem mais demora... Ninguém é mais favorável do que eu às novas leis de esterilização, mas devo repetir e insistir que constituem apenas um começo... A extinção e a salvação são os dois pólos em torno dos quais gira todo o cultivo da raça, os dois métodos com os quais tem que trabalhar... Extinção é a destruição biológica do hereditariamente inferior através da esterilização, da repressão quantitativa dos doentes e indesejáveis... A tarefa consiste em proteger o povo de uma reprodução excessiva de ervas daninhas.
Resumindo: bem antes das câmaras de gás, os nazistas tentaram, por ordem de Hitler, exterminar seus próprios compatriotas com deficiências físicas ou mentais recorrendo ao "assassinato de misericórdia" (falsamente chamado de "eutanásia") e criar uma raça superior através da fertilização de mulheres racialmente superiores por homens racialmente superiores (eugenia).
À semelhança dessas tentativas, o assassínio de judeus foi um procedimento de administração racional da sociedade. E um esforço sistemático de colocar a seu serviço a postura, a filosofia e os preceitos da ciência aplicada.